Aquela época ficou para trás, mas o que permanece imperturbável é o medo. Um medo de baixa intensidade, às vezes indefinível e vago, indecifrável, o medo de ficar de fora. Quando se fala da crise que atinge hoje a democracia, com frequência olhamos para o período entre guerras do século XX, para a ascensão fulgurante de ideologias mobilizadoras e radicais que propunham desferir um golpe no velho mundo podre das elites, permitindo que de suas cinzas brotasse o homem novo. É verdade que aquela época pode dar muitas pistas, salvando todas as distâncias, a propósito das ameaças que presenciamos na atualidade: o despontar de líderes messiânicos, a consolidação de um rebanho fiel que os aplaude e lhes dedica seu voto, a força dessa cola que procede dos nacionalismos e da xenofobia para alimentar as causas imaginárias que os sustentam, as mensagens falsas que oferecem soluções fáceis para problemas complexos.
“Como é possível” —eis a pergunta que se repete— “que possam comprar tantos simplismos numa realidade cada vez mais inabarcável e, com frequência, incompreensível?” É então quando se fala da eficácia das novas tecnologias para colocar a propaganda específica no lugar adequado e manipular e modelar as ideias dos usuários das redes sociais.
A ênfase costuma ser feita nas ideias e nas mensagens. A resposta a essa guinada inquietante, que está destruindo lentamente a democracia por dentro, costuma ser a de combater as mentiras, trazer à tona todas as falsidades, desmontar os enganos. Mas esse caminho nem sempre funciona. Dá a impressão de que se fala num deserto para os que já estão convencidos de que existe um problema, um grave problema: uma parte cada vez maior dos cidadãos sentiu-se seduzida pela melodia entoada pelos atuais flautistas de Hamelin (os Trump, Putin, Xi Jinping, Erdogan, Bolsonaro, Maduro, Orbán, Salvini...) e decidiu segui-los. Um dia chegarão à beira, como no conto, e cairão no abismo.
Por isso, talvez, seja preciso buscar a essência do que ocorre não tanto nas ideias e nas mensagens, nem tampouco na possibilidade de manipular para mobilizar uma longa procissão de cândidos fiéis. A resposta talvez esteja em outra coisa. Quem sabe, na melodia. Ou seja: numa atmosfera, num clima de relações, no sentido sutilmente gerado pela repetição de certas rotinas. É ali onde opera o medo de ficar de fora. E onde surge a necessidade, cada vez mais urgente, de reconhecimento.
Um like nas redes sociais é um aceno a uma reivindicação. E pode ser um primeiro passo para sair da intempérie. Se durante o século XIX foram necessárias as academias e as associações de montanhistas para gerar uma rede de cumplicidades entre as pessoas que buscavam o calor de uma tarefa comum, hoje a web facilita as coisas de maneira extraordinária. Nela você pode encontrar os seus cúmplices. E o que por fim sela as afinidades com eles não são tanto as ideias ou, se preferir, a construção de um discurso mais ou menos articulado, e sim os rituais, a repetição de gestos, de anedotas, de referências. “O único real, essencial, necessário e eterno da religião é o cerimonial e a liturgia”, escreveu Eça de Queiroz no século XIX; “o artificial, complementar, dispensável e transitório é a teologia e a moral”. Se isso é verdade para as religiões, tanto mais será para os oratórios políticos do nosso tempo. Os habitantes do século XXI já não comparecem às paróquias para encontrar o calor de um cerimonial ou uma liturgia. Encontram-nos em seus celulares a cada momento. É ali onde toca a melodia dos novos flautistas de Hamelin. E uma melodia não se combate com argumentos —e esse é certamente o problema mais grave de nossas democracias atuais.
Nenhum comentário:
Postar um comentário