segunda-feira, 7 de janeiro de 2019

Os novos populistas se aproveitam da necessidade de reconhecimento

Quando no século XIX era construído o nacionalismo alemão, que tanta potência chegaria a adquirir com o tempo, uma boa opção para soldar os laços entre os seguidores da nova causa era conseguir que se inscrevessem numa academia ou num clube de excursionistas. Ali, ao longo dos treinos e entre um passeio e outro, era fácil introduzir algumas atividades rituais para reforçar os vínculos de solidariedade e estabelecer possíveis estratégias de sedução. A camaradagem, o fato de participarem juntos de uma mesma tarefa ou rotina, as canções que celebram os traços próprios, a tarefa envolvente de um esforço físico, a percepção imediata de fazer parte de algo que extrapola o mais imediato: todo esse arsenal de elementos facilitou a construção de um projeto comum sem a necessidade de enfatizar especialmente as ideias. Estas importavam, claro, mas quase sempre eram mais um pano de fundo, como uma cantiga simples que a pessoa nem sequer escuta com atenção, pois a partir de um certo momento sabe que a carrega dentro de si. Era disso que se tratava, de se reconhecerem como iguais e ao mesmo tempo diferentes dos outros —dos que ficaram de fora. A eficácia da estratégia foi indiscutível. É que faz frio sob a intempérie, e dá medo caminhar sozinho pelo mundo. Além disso, não há nada melhor em tempos adversos do que se reconhecer dentro de algo maior, que empurra, que propõe um sentido, que garante ilusões e fortalezas que não encontraríamos em outro lugar.


Aquela época ficou para trás, mas o que permanece imperturbável é o medo. Um medo de baixa intensidade, às vezes indefinível e vago, indecifrável, o medo de ficar de fora. Quando se fala da crise que atinge hoje a democracia, com frequência olhamos para o período entre guerras do século XX, para a ascensão fulgurante de ideologias mobilizadoras e radicais que propunham desferir um golpe no velho mundo podre das elites, permitindo que de suas cinzas brotasse o homem novo. É verdade que aquela época pode dar muitas pistas, salvando todas as distâncias, a propósito das ameaças que presenciamos na atualidade: o despontar de líderes messiânicos, a consolidação de um rebanho fiel que os aplaude e lhes dedica seu voto, a força dessa cola que procede dos nacionalismos e da xenofobia para alimentar as causas imaginárias que os sustentam, as mensagens falsas que oferecem soluções fáceis para problemas complexos.

“Como é possível” —eis a pergunta que se repete— “que possam comprar tantos simplismos numa realidade cada vez mais inabarcável e, com frequência, incompreensível?” É então quando se fala da eficácia das novas tecnologias para colocar a propaganda específica no lugar adequado e manipular e modelar as ideias dos usuários das redes sociais.

A ênfase costuma ser feita nas ideias e nas mensagens. A resposta a essa guinada inquietante, que está destruindo lentamente a democracia por dentro, costuma ser a de combater as mentiras, trazer à tona todas as falsidades, desmontar os enganos. Mas esse caminho nem sempre funciona. Dá a impressão de que se fala num deserto para os que já estão convencidos de que existe um problema, um grave problema: uma parte cada vez maior dos cidadãos sentiu-se seduzida pela melodia entoada pelos atuais flautistas de Hamelin (os Trump, Putin, Xi Jinping, Erdogan, Bolsonaro, Maduro, Orbán, Salvini...) e decidiu segui-los. Um dia chegarão à beira, como no conto, e cairão no abismo.

Por isso, talvez, seja preciso buscar a essência do que ocorre não tanto nas ideias e nas mensagens, nem tampouco na possibilidade de manipular para mobilizar uma longa procissão de cândidos fiéis. A resposta talvez esteja em outra coisa. Quem sabe, na melodia. Ou seja: numa atmosfera, num clima de relações, no sentido sutilmente gerado pela repetição de certas rotinas. É ali onde opera o medo de ficar de fora. E onde surge a necessidade, cada vez mais urgente, de reconhecimento.

Um like nas redes sociais é um aceno a uma reivindicação. E pode ser um primeiro passo para sair da intempérie. Se durante o século XIX foram necessárias as academias e as associações de montanhistas para gerar uma rede de cumplicidades entre as pessoas que buscavam o calor de uma tarefa comum, hoje a web facilita as coisas de maneira extraordinária. Nela você pode encontrar os seus cúmplices. E o que por fim sela as afinidades com eles não são tanto as ideias ou, se preferir, a construção de um discurso mais ou menos articulado, e sim os rituais, a repetição de gestos, de anedotas, de referências. “O único real, essencial, necessário e eterno da religião é o cerimonial e a liturgia”, escreveu Eça de Queiroz no século XIX; “o artificial, complementar, dispensável e transitório é a teologia e a moral”. Se isso é verdade para as religiões, tanto mais será para os oratórios políticos do nosso tempo. Os habitantes do século XXI já não comparecem às paróquias para encontrar o calor de um cerimonial ou uma liturgia. Encontram-nos em seus celulares a cada momento. É ali onde toca a melodia dos novos flautistas de Hamelin. E uma melodia não se combate com argumentos —e esse é certamente o problema mais grave de nossas democracias atuais.

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