Um relatório divulgado em Estocolmo pelo Idea (Instituto Internacional para a Democracia e a Assistência Eleitoral) aponta a decadência da democracia brasileira.
Na semana passada, escrevi um longo artigo sobre isso. Reconheço que Bolsonaro é um dos principais responsáveis, da gestão da pandemia aos ataques à imprensa e ao STF. No meu entender, contudo, Bolsonaro não inventou a decadência da democracia brasileira. Apenas aproveitou-se dela para aprofundá-la ainda mais com seus impulsos autoritários.
Gostaria de anotar alguns pontos que escapam ao radar dos grandes observadores internacionais, coisas miúdas do cotidiano, que, de certa maneira, são o dínamo da decadência, pois têm o poder de arruinar o apoio popular à democracia.
O clima de Brasília mudou nos últimos tempos. Formou-se uma frente bastante ampla de parlamentares, e até setores da Justiça, destinada a favorecer a impunidade.
Durante muito tempo, vigorou o orçamento secreto, uma aberração no sistema democrático. Em menos de dois meses, surgiram duas propostas de emenda constitucional com o mesmo apelido: PEC da Vingança. Uma delas visava ao Ministério Público; a outra, ao próprio STF. Nesta última, então, a vingança parecia mais explícita: queriam aposentar exatamente a ministra Rosa Weber, que bloqueou o orçamento secreto.
É vingança, vingança, vingança, como dizia a antiga canção popular. No momento, discutem a vingança que impediu a sabatina de um candidato ao STF: André Mendonça. Foi indicado por ser terrivelmente evangélico, e querem que a sabatina seja realizada no Dia do Evangélico.
Não pode haver impedimento a um evangélico em qualquer cargo do governo. Mas escolher um ministro apenas por sua fidelidade a uma confissão religiosa distorce completamente o sentido de formação de um tribunal superior baseado no saber jurídico.
Por falar em Justiça, aqui e ali surgem casos de pessoas presas por roubar comida. Em Minas, estava presa desde julho uma mulher acusada de roubar água da Companhia de Saneamento de Minas Gerais.
Enquanto isso, o senador Flávio Bolsonaro consegue no STJ anular todas as provas contra ele acumuladas pelo Ministério Público do Rio. É um trabalho de Sísifo: recolhem-se as provas, e as instâncias superiores mandam jogá-las no lixo.
A própria campanha presidencial, que teoricamente aponta para o futuro, apresentou problemas no trato com a democracia. Bolsonaro visitou os Emirados Árabes e o Bahrein e relativizou as ditaduras do Oriente Médio.
Por sua vez, Lula, em Madri, comparou Daniel Ortega com Angela Merkel e não aceitou a tese de que é possível ser contra o embargo americano a Cuba e, simultaneamente, condenar a repressão às manifestações políticas na Ilha.
Entre os livros que saíram sobre o declínio da democracia, logo após a eleição de Trump, um deles pode ser usado ao alinhar tantas pequenas preocupações. Chama-se “O povo contra a democracia”, de Yascha Mounk. O livro mostra como “o toma lá dá cá” da política exclui o povo da tomada de decisões, criando um sistema de direitos sem democracia.
Aventureiros do tipo Bolsonaro prometem restituir o poder ao povo lutando contra as instituições, dispostos a criar uma democracia sem direitos.
Por isso sempre relembro que a política mesquinha e autorreferenciada que se faz em Brasília é, no fundo, uma política suicida. Favorecer um processo de decadência que coloque o povo contra a democracia cairá na cabeça de todos nós, menos, é claro, na do ditador de plantão e de sua tropa de apoio.
Com as mudanças que uma campanha presidencial promete, será possível reduzir o abismo entre o sistema político e o povo? Uma questão-chave é como se relacionar com o Parlamento sem ser engolido pela voracidade fisiológica ou bloqueado pela sabotagem destrutiva.
É uma linha muito tênue, um desafio a nossa sobrevivência como regime democrático.
Não foram necessárias as demissões ocorridas no Inep e a “guerra ideológica” que cercou o Enem 2021 para que se vislumbrassem os dilemas do sistema educacional brasileiro. Sua situação atual assemelha-se ao topo de uma montanha que se entrevê em meio a nuvens ameaçadoras.
Os três últimos anos levaram ao extremo a crise desse sistema, hoje bastante arruinado. Em parte isso ocorreu como efeito da covid-19, mas a parte maior se deveu à conduta governamental, que cavalgou a pandemia e se apoiou tanto no menosprezo pela educação quanto no apreço pela ideologização dos temas pedagógicos e na incompetência dos ministros encarregados de formular e gerir a política educacional. Deu-se uma perversa combinação de fatores, que põe em risco o futuro do País.
Aulas remotas precárias, despreparo para o ensino à distância, falta de equipamentos adequados e impossibilidade do convívio presencial ajudaram a rebaixar a qualidade do ensino e a afastar muitos estudantes do estudo e da própria ideia de “escola”. A ausência de uma política educacional criteriosa completou o quadro.
A escola deixou de ser vista como estrada civilizatória que prepara para a vida, o trabalho, a convivência social. A situação vinha de antes, mas foi turbinada pelos estragos da pandemia e por tudo o que houve de esdrúxulo na gestão da área. O governo simplesmente fugiu da obrigação moral de transmitir aos jovens o que a sociedade tem de melhor, a cultura universal, o conhecimento acumulado, os instrumentos básicos para se mover na vida moderna, a leitura, a escrita, o cálculo, a História e a ética cívica. A ação governamental dirigiu-se deliberadamente para desorganizar o sistema escolar.
O Ministério da Educação (MEC) está agora com o quarto ministro de uma série em que cada um conseguiu ser pior do que o outro. Copiando seus antecessores, o atual ocupante do cargo nada faz de relevante, não demonstra conhecimento da área, esforça-se para dizimar as instituições técnicas da área, não leva alento algum às escolas distribuídas pelo País, deixando ao relento milhões de estudantes e suas famílias. Atuando como um Weintraub sem a estupidez cênica, o ministro Ribeiro é um bajulador que não se envergonha de propor uma universidade “para poucos”, de sugerir A educação sangra no Brasil. Mas seu coração não parou de pulsar, seja pelas exigências da vida moderna, seja pelo desejo de evoluir da maioria dos jovens que currículos e livros didáticos sejam expurgados de “questões ideológicas”. Flutua por sobre os nossos gravíssimos problemas educacionais.
A educação sangra no Brasil. Mas seu coração não parou de pulsar, seja pelas exigências da vida moderna, seja pelo desejo de evoluir da grande maioria dos jovens. Estão ativos os gestores escolares e os professores, que continuam resistindo e buscando saídas, aparando os muros que ameaçam ruir, muitas vezes sem recursos para atuar com maior eficiência. São mal remunerados, tratados com desdém pelo governo, pouco valorizados em termos profissionais, mas são a base para a reconstrução de que se necessita.
A volta às aulas presenciais trará consigo problemas complexos. Como será quando tudo for retomado de fato? Não está claro quanto houve de aprendizado nos últimos anos, nem como atuarão os estudantes com o retorno às salas de aula, nem como será feita a recuperação dos conteúdos perdidos. Não sabemos como estarão os professores, por mais que saibamos que não haverá falta de empenho e disposição.
Com a pandemia, os mestres afastaram-se de seu território específico, a sala de aula. Viram sua missão e sua função social serem submetidas a pressões e ataques. Foram estigmatizados como corporativistas. E tiveram atropelados seus planos de estudo e aperfeiçoamento, que são teóricos mas, acima de tudo, práticos, na lida diária com os estudantes. Escolas não se movem por leis e portarias, mas por atividades humanas, dentre as quais o relacionamento professor/aluno é a mais decisiva.
Um livro recentemente lançado nos ajuda a refletir sobre este quadro, cuja dimensão ética (o diálogo, a cooperação, a responsabilidade cívica, o uso crítico do saber) quase nunca é devidamente considerada. Em Educação e Ética na Modernidade (São Paulo: Edições 70), a professora Carlota Boto, da Faculdade de Educação da USP, acompanha o percurso teórico de grandes mestres da filosofia da educação para nos convidar a um mergulho no universo educacional de nossa época, tão carregada de dilemas existenciais, de fragmentação do saber, de ausência de certezas compartilhadas, de redes hiperativas que produzem muitas trocas, mas pouca reflexão.
Carlota Boto nos faz pensar no fundamental: o que significa educar hoje, “qual o papel da escola e da família perante o império de uma sociedade da informação”, de uma mídia onipresente e da disseminação acelerada das ferramentas da tecnologia digital? Uma questão intensa, instigante, estratégica.
O livro não fornece respostas pontuais. Seu objetivo é organizar o que já se pensou sobre o tema, para que possamos ir além e agarrar os problemas urgentes que nos angustiam hoje. Precisamente o que mais falta faz hoje na educação brasileira.
No dia em que a Europa interditou os voos de e para Maputo, Moçambique tinha registado 5 novos casos de infeção, zero internamentos e zero mortes por COVID 19. Nos restantes países da África Austral a situação era semelhante. Em contrapartida, a maioria dos países europeus enfrentava uma dramática onda de novas infeções.
Cientistas sul-africanos foram capazes de detetar e sequenciar uma nova variante do SARS Cov 2. No mesmo instante, divulgaram de forma transparente a sua descoberta. Ao invés de um aplauso, o país foi castigado. Junto com a África do Sul, os países vizinhos foram igualmente penalizados. Em vez de se oferecer para trabalhar juntos com os africanos, os governos europeus viraram costas e fecharam-se sobre os seus próprios assuntos.
Não se fecham fronteiras, fecham-se pessoas. Fecham-se economias, sociedades, caminhos para o progresso. A penalização que agora somos sujeitos vai agravar o terrível empobrecimento que os cidadãos destes países estão sendo sujeitos devido ao isolamento imposto pela pandemia.
Mais uma vez, a ciência ficou refém da política. Uma vez mais, o medo toldou a razão. Uma vez mais, o egoísmo prevaleceu. A falta de solidariedade já estava presente (e aceite com naturalidade) na chocante desigualdade na distribuição das vacinas. Enquanto, a Europa discute a quarta e quinta dose, a grande maioria dos africanos não beneficiou de uma simples dose. Países africanos, como o Botswana, que pagaram pelas vacinas verificaram, com espanto, que essas vacinas foram desviadas para as nações mais ricas.
O continente europeu que se proclama o berço da ciência esqueceu-se dos mais básicos princípios científicos. Sem se ter prova da origem geográfica desta variante e sem nenhuma prova da sua verdadeira gravidade, os governos europeus impuseram restrições imediatas na circulação de pessoas. Os governos fizeram o mais fácil e o menos eficaz: ergueram muros para criar uma falsa ilusão de proteção. Era previsível que novas variantes surgissem dentro e fora dos muros erguidos pela Europa. Só que não há dentro nem fora. Os vírus sofrem mutações sem distinção geográfica. Pode haver dois sentimentos de justiça. Mas não há duas pandemias.
Os países africanos foram uma vez mais discriminados. As implicações económicas e sociais destas recentes medidas são fáceis de imaginar. Mas a África Austral está longe, demasiado longe. Já não se trata apenas de falta de solidariedade. Trata-se de agir contra a ciência e contra a humanidade.
Williams Tavares, de 19 anos, interrompe o telefonema com a reportagem para ajudar uma mulher e uma criança a transportar água para dentro da comunidade Muvuca, no Vergel do Lago, uma das regiões mais pobres de Maceió, capital de Alagoas. Ele retorna à ligação ofegante.
"Aqui, tudo é precário. Se em alguns dias falta o dinheiro até mesmo para comprar o pão ou a mistura, o que dá para fazer quando falta a água de beber ou de tomar banho?", diz Páscoa, como o morador da comunidade é conhecido.
Há 3,6 mil barracos na Muvuca, diz ele. Em alguns, vivem sete pessoas "espremidas". A BBC News Brasil esteve ali em visita intermediada pelo projeto Consultório na Rua, de acolhimento a pessoas vulneráveis, promovido pela Prefeitura de Maceió.
Era uma tarde, e a comunidade estava em silêncio, com muitos animais e moscas por entre as casas, bicicletas e motos paradas.
Só as mulheres estavam presentes. Os homens saem de casa antes das 7h da manhã para trabalhar. Eles são, em sua maioria, carroceiros e marisqueiros. A maioria volta no fim da tarde.
Não há saneamento básico, e apenas duas torneiras abastecem todas as famílias. Uma das moradoras contou que faz as necessidades fisiológicas em uma sacola, que é descartada na lagoa ou num descampado, hábito comum na região.
Com os alimentos mais escassos e a fome crescendo, os trabalhadores precisam pegar restos de comida em hotéis na parte nobre da cidade e levá-los para casa. É a chamada "lavagem".
"Essa comida antes era destinada aos porcos, mas agora as pessoas selecionam e trazem para dentro de casa", conta Páscoa.
Apesar da pobreza extrema e da falta de infraestrutura, o preço dos barracos foi inflacionado pela pandemia. Há 12 anos, Alexsandra* pagou R$ 5 mil no dela. Agora, alguns já valem mais de R$ 30 mil.
"As coisas apertaram quando essa pandemia chegou. Meu marido é carroceiro, eu sou dona de casa. Ele vive trabalhando, eu fico aqui ajeitando uma coisa, ajeitando outra", conta ela.
Na casa de Alexsandra, a água chega bem fraquinha. Seu marido, Marivaldo, foi um dos moradores que ajudaram a cavar um buraco a 200 metros da Muvuca, onde fica o "cano-mestre" de água da região.
Graças a doações, os moradores conseguiram interligá-lo a cinco barracos, que daí distribuem a água para os vizinhos.
"Passamos semanas, até um mês, sem água, que não é limpa. É suja. Nós ficamos com dor de barriga, e muita gente fica doente. (Mas) serve para a gente beber, cozinhar e tomar banho. Usamos baldes. Tem dia que um balde serve para cinco, seis pessoas tomarem banho."
Na Muvuca, a distribuição de água é responsabilidade da BRK Ambiental, empresa privada que assumiu os serviços de saneamento na região metropolitana de Maceió em julho deste ano.
A companhia reconhece a falta de uma rede local e explica que "os ramais existentes na localidade e utilizados pela população não fazem parte da rede pública, foram construídos no passado como uma solução informal, não regularizada no município".
A concessionária diz que ainda avalia, junto aos órgãos competentes, como atuará em áreas não regularizadas pelo poder público, mas estima que, até 2027, deve universalizar o acesso à água em toda a Região Metropolitana de Maceió, com investimento de R$ 2,6 bilhões.
Outra moradora, Marleide, de 44 anos, conta que uma forma de contornar a falta de água é pagar a alguém para buscar no Rio do Remédio, que se encontra com a lagoa ali perto. "E nem sempre está boa para beber, viu?"
Marleide ajuda a cuidar da sogra, a ex-marisqueira Maria, de 56 anos, conhecida como Vaninha, que ficou cega por conta da diabetes e passa a maior parte do tempo deitada na cama.
Ela depende da família para ter água para o banho e se sustentar, porque o dinheiro da aposentadoria não tem sido suficiente para comprar comida e remédios.
Páscoa vive em um barraco com a avó e a irmã mais nova. Por não serem marisqueiros ou carroceiros e trabalharem com outras coisas, estão em condições um pouco melhores que a maioria dos moradores da Muvuca.
Antes, quando a família dividia o mesmo espaço entre sete pessoas, ele pedia dinheiro nos sinais de trânsito. Atrasou os estudos por conta disso — hoje, está no segundo ano do ensino médio, e quer cursar Direito.
"Eu fiz um curso de almoxarife, tento fazer bicos, faço um curso técnico de assistente administrativo e quero passar numa faculdade. Dá pra contar numa mão quem tem carteira fichada [emprego CLT] aqui na Muvuca", diz.
"Aqui é a gente pela gente. A Muvuca fica mais afastada de tudo. Não tem médico, remédio, exame, nada. Eu mesmo já fui para uma UPA [Unidade de Pronto-Atendimento] em cima de uma carroça", conta.
Alexsandra, que estava por perto, completa: "Nós somos esquecidos''.
Cícero Péricles Carvalho, professor da Universidade Federal de Alagoas (Ufal) e doutor em economia regional, diz que, em comunidades como a Muvuca, a pobreza estrutural se soma à dependência de políticas públicas.
"O fenômeno da pobreza não é recente. Podemos dizer que houve uma queda até 2015, mas o processo [de empobrecimento] vem se acentuando desde então."
De acordo com o Ministério da Cidadania, Alagoas tem 689 mil famílias inscritas no CadÚnico de programas sociais federais, das quais 425 mil recebiam o Bolsa Família.
No ano passado, o auxílio emergencial cobriu 1,2 milhão de pessoas no Estado, com um valor que variava entre R$ 600 e R$ 1,2 mil. No segundo semestre, caiu pela metade e, na parcela mais recente, foi fornecido a 717 mil pessoas no Estado, com valores entre R$ 150 e R$ 370.
Durante a pandemia, de acordo com dados do Ministério da Cidadania, Alagoas teve mais 38,6 mil pessoas empurradas à pobreza extrema, sobrevivendo com até R$ 89 por mês. O número total chega a quase 1,2 milhão de pessoas, o que corresponde a 35% da população do Estado.
A crise que o país atravessa se revela ainda pior em Alagoas, que tem a quarta maior taxa de desemprego do Brasil (18,8%), acima da média nacional (13,7%), conforme a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) de agosto.
"Qualquer aumento de desemprego e inflação dificulta muita coisa para essas pessoas. Quando a renda média cai, as pessoas passam necessidade", explica Carvalho.
Amanda, de 25 anos, está grávida e, enquanto segura uma filha, observa outro filho ao seu lado. Na geladeira, tinha só um refrigerante, um saco de banana, um pouco de água e mais dois pacotes de leite em pó.
Eram 15h, e ela ainda esperaria mais três no mínimo até que o marido chegar do trabalho com o pão e uma mistura — ou nada. Ela conta que se pegou chorando ao encarar a geladeira que anos atrás já esteve cheia.
A pandemia foi uma época diferente para Amanda, de 25 anos, e sua família. No começo, por ter dois filhos, recebia o auxílio emergencial no valor de R$ 1,2 mil e conseguia assim pagar as contas. Beneficiada pelo Bolsa Família por conta dos filhos, Amanda também disse não saber o que seria dela com o fim do benefício.
"Todo dia é assim a luta da gente. Tem dia que Deus manda [comida], tem dia que não manda. Aumentou o preço de tudo, e já estão falando que o gás vai aumentar de novo. Meu Deus do céu, onde a gente vai parar?", diz.
Fizeram piada quando um político, por descuido ou coragem, repetiu num discurso, há alguns anos, uma das joias da chamada sabedoria popular: é melhor ser rico e saudável do que pobre e doente. Típica de para-choque de caminhão, a frase pode ser um lugar-comum, mas é também uma dura descrição de um país onde cerca de 100 milhões de pessoas, quase 50% da população, vivem sem coleta de esgoto. A oferta de água tratada é mais ampla, mas carecem desse atendimento cerca de 35 milhões de habitantes. Destes, 5,5 milhões vivem nas cem maiores cidades. Esses números, do Instituto Trata Brasil, foram publicados em março e remetem, obviamente, à distribuição individual e regional da renda e da riqueza. Segundo o Atlas de Saneamento, recémeditado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), só 60,3% dos municípios tinham coleta de esgoto em 2017.
Também a inflação prejudica mais os pobres. Nos 12 meses até outubro, os preços ao consumidor subiram 11,39% para as famílias de renda muito baixa, 11,13% para as de renda baixa, 9,76% para as de renda média alta e 9,32% para as da faixa mais alta, segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). No estrato mais pobre, a renda mensal domiciliar correspondeu a R$ 1.808,79 em junho de 2021. No grupo mais abonado, superou R$ 17.764,49. Além de ser frequentemente mais elevada para os mais carentes, a inflação é especialmente penosa para esses consumidores quando a alta de preços, como tem ocorrido, envolve itens como alimentos, eletricidade e gás de cozinha.
Saúde e dinheiro, dois aspectos das enormes desigualdades nacionais, estão claramente vinculados a fatores como educação, formação profissional, oportunidades de trabalho, prioridades políticas e programas de investimento. Candidatos e prováveis candidatos à eleição presidencial de 2022 começam a falar desses temas, essenciais para a reconstrução do Brasil nos próximos anos – se voltar a existir em Brasília algo parecido com um governo nacional. O País estará novamente em risco, se o discurso anticorrupção prevalecer, como em 2018, sobre propostas e planos de desenvolvimento econômico e social. Compromisso de honestidade é obrigação mínima de todo candidato. Não é programa de governo, mas dezenas de milhões de eleitores parecem ter caído nessa confusão.
Qualquer programa sério terá de cuidar, direta ou indiretamente, do combate às desigualdades. Isso deverá envolver atenção à saúde e à distribuição das oportunidades. Será preciso, como ação básica, manter a ajuda aos pobres em condições semelhantes às da Bolsa Família ou de sua antecessora, a Bolsa Escola. Mas o combate efetivo às desigualdades só ocorrerá com expansão da economia e das possibilidades de realização pessoal. Não adianta falar em “porta de saída” quando falta, como tem faltado, um lugar para onde ir.
Só haverá para onde ir – e isso vale para a maioria dos cidadãos – se o governo retomar as políticas de ampliação e modernização produtiva, de aumento de eficiência e de integração no mercado global. Será necessário, obviamente, reconstruir o setor industrial, devastado em dez anos de retrocesso.
Alguns segmentos cresceram, ganharam vigor e conquistaram mercados nesse período. Mas a estatística oficial conta uma história de retrocesso iniciada antes da recessão de 2015-2016. Pessoas distraídas confundiram esse desmonte com a passagem, no mundo rico, para a fase pós-industrial. Na economia brasileira ocorreu algo muito diferente: um recuo histórico. Ao mesmo tempo, outros países, avançados e emergentes, continuaram progredindo e ampliando a distância em relação ao Brasil.
Não se pode falar de expansão e modernização da economia sem cuidar, embora algumas pessoas abominem a expressão, do capital humano. Será preciso resgatar o ensino fundamental, fortalecer os cursos médios e profissionais e investir no desenvolvimento científico e tecnológico. Este esforço foi, para usar uma linguagem suave, amplamente negligenciado no regime anticientífico e antiacadêmico do presidente Jair Bolsonaro.
Nem o agronegócio está seguro. Eficiente ao produzir, o setor perde poder de competição ao depender do transporte rodoviário e, pior que isso, de um transporte realizado em rodovias insuficientes e frequentemente mal conservadas. Isso remete à urgência de retomar o investimento em infraestrutura, com base em planos bem elaborados e, tanto quanto possível, com participação de capital privado. A atual administração avançou nessa área muito menos do que havia prometido.
É muito difícil esperar um quadro melhor no próximo ano. Concentrado na reeleição e nos interesses pessoais e familiares, o presidente sobrepõe seus objetivos às normas da responsabilidade fiscal e da boa administração. Dispõe, para isso, da cooperação do ministro da Economia, do apoio cada vez mais caro do Centrão e da boa vontade dos presidentes da Câmara e do Senado, tolerantes, até agora, às práticas orçamentárias sem transparência. Aos pobres sobra uma ajuda calibrada para os planos eleitorais.