terça-feira, 11 de agosto de 2020

O epitáfio que deveria ser gravado nos túmulos das vítimas

São 100.000 vidas perdidas. 100.000 histórias de dor e milhões de lágrimas derramadas. É um número que assusta, entristece e enluta o país. Basta chorar por elas? Não, porque foi uma tragédia anunciada. O dia de silêncio informativo sobre outros temas, que este jornal quis oferecer aos leitores para dedicá-lo à tragédia, deve ser também um grito contra o poder que poderia ter evitado muitas das mortes e preferiu fechar os olhos. Será a história que julgará o silêncio, se não a cumplicidade com essa matança.

Dessa tragédia ficará tristemente na história a frase do presidente Jair Bolsonaro pronunciada em 27 de abril, quando o número de mortes chegou a 5.017. Indagado sobre o que sentia, respondeu com desprezo: “E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê? Sou Messias, mas não faço milagre”. A frase deveria ser gravada, como trágico epitáfio, nos 100.000 túmulos das vítimas.

É verdade que o presidente Bolsonaro, cujo nome do meio é Messias, não poderia fazer milagres. Mas poderia ter cumprido seu dever como representante máximo do país. Poderia pelo menos não ter zombado da tragédia chamando-a de “gripezinha”. Poderia ter nos poupado do constrangimento de zombar dos preceitos da medicina e da ciência respeitados nos outros países, em vez de propagandear remédios sem nenhuma garantia científica de eficácia como se fosse um curandeiro de rua.

Poderia ter nos poupado da humilhação de retirar os ministros médicos do Ministério da Saúde, substituídos por um punhado de militares sem experiência no assunto. Em vez de pedir que suas hostes fossem espiar os hospitais onde pessoas estavam morrendo, poderia ter ido pessoalmente consolar as vítimas e seus familiares. Não fez isso.


Os 100.000 mortos de hoje são um atentado do poder contra as vidas que poderiam ter sido salvas e ensombrecem ainda mais a já desgastada imagem do Brasil no exterior.

É possível que Bolsonaro —se não acabar sentado no banco dos réus do Tribunal de Haia acusado de crime contra a humanidade, como tantas vozes, até de especialistas em direito, estão pedindo− queira tentar ser reeleito em 2022. Nesse caso, é possível que as 100.000 vítimas da pandemia, e as que ainda morrerem até lá, apresentem-se nas urnas eleitorais para sussurrar à consciência dos eleitores: “Não, nesse não!”. O Brasil já chorou o suficiente. Precisa, diante de tantas mortes de inocentes e de tanta política suja, de novos ares de ressurreição.

A esperança daqueles que ainda não perderam o senso de justiça e que respeitam o mistério da morte e da dor, própria e alheia, é que essas 100.000 vítimas e aquelas que, infelizmente, ainda virão não tenham sido sacrificadas em vão. Que elas assombrem os sonhos dos vivos que acreditam ser eternos.
Juan Arias 

Pensamento do Dia

 

Abandonar mitos e entender a história

De um ex-banqueiro, o que se espera é que entenda o mundo do capital, mas Paulo Guedes errou também nisso. Sua fala no Aspen Institute sobre a Amazônia e a questão indígena mostra que ele não se atualizou em assuntos decisivos para entender o mundo de hoje. Além disso, afugenta ainda mais os fundos de pensão e os fundos soberanos. Eles já avisaram que suas normas de compliance limitam investimentos, dos trilhões de dólares que administram, em países que desmatam e ameaçam povos originários.

Guedes tem com o presidente Bolsonaro total afinidade em assuntos como direitos humanos, liberdades democráticas e proteção da Amazônia. Não foi Guedes a convencer Bolsonaro das virtudes do liberalismo econômico, mas o presidente é que o conquistou para seu conjunto de crenças, aliás, incompatíveis com o liberalismo. Eis o paradoxo deste governo. Ele não pode ser liberal, pela simples inadequação desse ideário com o elogio do regime ditatorial, por natureza, inimigo de qualquer liberdade.

Ficou muito mal para o ministro sua sequência de erros conceituais. Como ele é uma autoridade pública, isso prejudica o Brasil. Guedes mostrou desconhecimento do estado atual das coberturas florestais em outros países, sustentou argumentos vencidos e confundiu estoque com fluxo, o que é constrangedor. No caso da floresta, nosso estoque é bom. O Brasil tem uma área considerável de mata preservada. Mas o fluxo é muito ruim. Estamos desmatando a um ritmo crescente nos últimos anos, chegando a 10 mil km2 no ano passado e abandonamos a política com a qual o país reduziu em 80% as taxas anuais de destruição entre 2004 e 2012. A partir daí, o fluxo é contra nós, e piorou muito no governo Bolsonaro. A objetividade e os argumentos sóbrios são mais eficientes para afastar os riscos de o país ser desprezado nas decisões de alocação de recursos. Estamos em um momento de disputa por capital de qualidade.

De um economista não se espera queixa contra as artimanhas da competição. O lógico é que entenda o jogo do capitalismo e não facilite a vida de eventuais competidores. Afirmar que países europeus “usam a desculpa ambiental” para nos barrar não ajuda em nada. O que funciona é não fornecer provas contra nós. E o ministro deu a eles farta munição com o seu destempero.


A frase “vocês mataram seus índios, não miscigenaram” é muito ruim. O ministro não deve desconhecer que aqui matamos também, infelizmente. Extinguimos inúmeras etnias, ameaçamos outras e, neste momento, estamos colocando povos em risco. O governo tem estimulado atividades que agora são mais perigosas do que nunca, e só por ordem do STF foi instalada uma sala de situação para as ações de proteção aos índios isolados.

Outra frase infeliz: “As grandes histórias de como matamos nossos índios são falsas.” Antes fossem mentirosas as histórias que pesam sobre a nossa História. Aimoré, Caeté, Tupiniquim, Tupinambá, Carijó, são tantos os que não podem confirmar a impressão do ministro por não estarem mais aqui. Seus nomes repousam na lista de povos extintos feita pelo IBGE. Ela é longa.

Uma indicação importante de leitura é o livro “As flechas e os fuzis” de Rubens Valente. Ele conta como os militares agiram na época da ditadura contra os índios. São eventos dolorosos como os que vitimaram os Waimiri-Atroari. É difícil saber quantos índios dessa etnia morreram para dar passagem à BR-174. Havia um cálculo de que eles eram 3.000 antes de 1970, quando as obras começaram. Em 1978, havia 350. Valente usou um levantamento feito de avião por indigenistas da Funai e registra que morreram pelo menos 240. Logo na abertura do livro ela fala da morte de um grupo de Kararaô, de gripe, de sarampo, logo nos primeiros contatos nos anos 1960.

Há casos reconhecidos oficialmente. Na Cabanagem, foram massacrados os Tapuia. Na luta contra as Missões, tombaram os Guarani. Uma carta régia decretou a “guerra justa”, no Vale do Rio Doce, contra os Krenak, chamados botocudos. Em 1901, o Exército fez três expedições contra os Guajajara da etnia Tenetehara. O massacre ocorreu em Alto Alegre do Pindaré, no Maranhão.

Abandonar mitos e conhecer a história, mesmo em suas páginas infelizes, não reduz o amor à pátria, apenas nos permite ter uma visão realista e, quem sabe, um compromisso com um futuro diferente e melhor.

É o diabo a cada dia


Dias sujos de crueldade covarde
José Gomes Ferreira, "Dias comuns"

 


Quem está falhando? Governo ou instituições?

Nesse final de semana o noticiário dá conta de que o Brasil ultrapassou a trágica marca de cem mil mortes pelo novo coronavírus. O maior impacto dessa tragédia humanitária tem sido os mais vulneráveis, tanto do ponto de vista das condições de saúde, como socioeconômicas. São pessoas idosas, de classes sociais mais baixas, negros e pardos e portadoras de doenças pré-existentes. A covid-19 expôs de forma cristalina e seletiva a enorme desigualdade social e de renda do país.

Para muitos essa hecatombe sanitária seria evidência de que as instituições brasileiras não apenas não estariam funcionando, mas também de que estariam completamente falidas. Esse diagnóstico, entretanto, peca por atribuir às instituições o que seria consequência das políticas governamentais escolhidas.


Daren Acemoglu e James Robinson argumentam em seu último livro Narrow Corridor: State, Societies, and the Fate of Liberty que desenvolvimento com preservação de liberdades requer equilíbrio entre Estado e a sociedade. O Estado precisa ser forte e poderoso para proteger as pessoas, garantir direitos e proporcionar serviços para seus cidadãos. Mas a sociedade também precisa ser forte, vigilante e atuante, para impedir que o Estado faça mal uso de seus poderes. Para os autores, o “corredor estreito”, gerado pelo equilíbrio dinâmico entre sociedade e Estado, proporcionaria as condições para a emergência virtuosa de uma espécie de “Leviatã algemado”.

O desenho institucional brasileiro que emergiu na Constituição de 1988 criou um Estado forte, dotado de um executivo poderoso, com uma burocracia profissionalizada e meritocrática e organizações de controle (i.e., judiciário, ministério público etc.) independentes. Ao mesmo tempo, preservou um sistema político inclusivo e representativo, capaz de acomodar praticamente todos os interesses da sociedade. Ninguém fica de fora do jogo político no Brasil. Ainda por cima, estimulou o desenvolvimento de uma sociedade livre, complexa e, acima de tudo, vigilante para conter potenciais desvios ou arroubos iliberais de governos de plantão.

O resultante dessa combinação tem sido o desenvolvimento de instituições nitidamente inclusivas, mas não necessariamente eficientes. No livro Brazil in Transition: Beliefs, Leadership and Institutional Change, eu e meus coautores argumentamos que o perfil de inclusão, na realidade, tem sido dissipativo, em que a estabilidade democrática seguida de redistribuição e inclusão social são efetivamente alcançadas, mas também esse processo é acompanhado por distorções e ineficiências. É importante lembrar que esse perfil é o comum em países em desenvolvimento, e não apenas no Brasil.

Mas a existência de dissipação não cancela a natureza transformadora das mudanças que o Brasil tem vivido com o desenho institucional atual. Ou seja, dissipação não significa necessariamente ausência de funcionalidade institucional. Como esse processo ainda está em curso, é muito difícil identificar a parcela que é inclusão efetiva daquela que é dissipação. Depende, essencialmente, do viés da lente do observador. Se favorável ao governo de plantão, enfatizará aspectos que confirmem a inclusão. Já observadores de oposição tenderão a encontrar mais dissipação.

O arcabouço institucional não é uma “camisa de força” que aprisiona os atores políticos. Mas dá os limites. Existe espaço para escolhas de como governar e das políticas que serão implementadas. As dissipações podem ser minoradas ou maximizadas a partir dessas escolhas.

Dizer que as instituições não funcionam é tão ingênuo quanto o seu oposto, ou seja, que as instituições funcionam perfeitamente. As mazelas que o Brasil tem vivido são decorrências de falhas de governo, mas não necessariamente evidenciam uma falha institucional.

As vítimas da irresponsabilidade

O Brasil ultrapassou neste fim de semana oficialmente a marca de 100 mil mortos por covid-19. O número carrega em si uma tristeza imensurável. São 100 mil famílias que não puderam velar seus mortos, enterrados às pressas devido a protocolos de segurança sanitária. Em milhares e milhares desses casos, as famílias não puderam visitar seus entes queridos em seus últimos dias. É uma tragédia inominável.

E, ainda assim, era previsível. Embora tivesse tido tempo de se preparar, já que o primeiro caso de covid-19 foi registrado em São Paulo quando a doença já havia infectado mais de 80 mil pessoas em 40 países, o Brasil reagiu à chegada da pandemia de forma descoordenada e ineficiente, perdendo rapidamente o controle sobre a disseminação do vírus, porque quem deveria estar coordenando os esforços nacionais preferiu fazer pouco caso da pandemia.

O Brasil não poderia ter escolhido presidente mais despreparado para enfrentar uma crise como esta. No início de março, Jair Bolsonaro disse que o poder destruidor do novo coronavírus estava "superdimensionado" e que a imprensa promovia "histeria". Quando a situação na Itália já era crítica, o presidente disse que no Brasil a covid-19 mataria menos de 800 pessoas e que na Itália o número de mortes era alto porque a população era idosa.

Avaliações equivocadas, baseadas em palpites sem qualquer fundamento, como tantas outras que Bolsonaro fez ao longo desses quase seis meses – e por que não dizer de sua vida política. Sua postura negacionista e marcada por um notório desprezo pelo conhecimento científico mantém o país sem um ministro da Saúde desde o dia 15 de maio, quando o segundo ministro na pandemia deixou o governo por discordar do presidente.

No momento em que a epidemia começou a se agravar no Brasil, em vez de reconhecer o próprio erro e começar a trabalhar para proteger a população, Bolsonaro dobrou a aposta: criticou as regras de isolamento social impostas por governadores e prefeitos, incentivou o uso de medicamentos sem eficácia comprovada, promoveu aglomerações e vetou o uso obrigatório de máscaras em escolas e estabelecimentos comerciais e religiosos. Não ajudou e ainda atrapalhou.

Quando o país se aproximava de 40 mil mortes por covid-19, o presidente passou a se esquivar da própria responsabilidade e, de forma covarde, jogou a culpa do alto número de infecções sobre governadores e prefeitos.

E agora o país chora seus mais de 100 mil mortos. Em vez de se solidarizar com as famílias atingidas, o presidente preferiu usar suas redes sociais para destacar o número de recuperados, como se a morte de 100 mil pessoas pudesse, de alguma forma, ser relativizada.

Quantas vidas poderiam ter sido poupadas no Brasil não fosse o discurso ignorante e irresponsável do presidente da República é uma pergunta que pairará sobre a história. E que deve perseguir Bolsonaro e todos aqueles que, por ação ou omissão, o alçaram ao poder.
Francis França