sábado, 27 de fevereiro de 2021

Imagem do Brasil

 

Gerard Alsteens (Bélgica)

A milícia do presidente

O presidente Jair Bolsonaro parece inspirar-se no seu grande desafeto ideológico, o populista autoritário presidente Nicolás Maduro (que sucedeu o falecido coronel Hugo Chavez) na missão muito bem sucedida de destruição da Venezuela. Os dois decretos assinados por Bolsonaro, facilitando a posse de armas de fogo pela população, é um instrumento a mais de formação de grupos armados, que pode levar à escalada de violência e intimidação na política brasileira. A simplificação do acesso a volumes mais amplos de armas, fora do controle das Forças Armadas, facilita o armamentismo dos grupos criminosos que atuam e controlam amplas áreas das cidades brasileiras, principalmente no Rio de Janeiro (narcotraficantes e milicianos), e permite a formação das milícias bolsonaristas com os fanáticos seguidores do presidente. Esta é a intenção de Bolsonaro. “Eu quero todo mundo armado!”, disse ele mais de uma vez. Quando diz isso, Bolsonaro sabe quem vai comprar armas e organizar pequenos arsenais: os caçadores e atiradores (autorizados a comprar até 60 armas sem necessidade de autorização do Exército), numa fachada para todo tipo de criminoso e fanatismo político.


O governo autoritário da Venezuela, segundo declaração recente de Maduro, já conta com “3,3 milhões de milicianos organizados, treinados, armados e dispostos a defender a união da Venezuela”. O dado é exagerado, segundo especialistas, mas esta Milicia Nacional Bolivariana supera em muito os 123 mil homens do contingente das Forças Armadas. Este é o povo armado dos sonhos de Bolsonaro, milicianos bolsonaristas, para copiar, no Brasil, o modelo bolivariano de intimidação e violência política contra os adversários, que mantém o governo no poder, apesar da devastadora crise econômica, social e política. Mas o presidente brasileiro diz que pretende armar o povo brasileiro porque não quer uma ditadura. Logo ele, que não cansa de defender e louvar a ditadura militar brasileira, e que afirmou, lá atrás (1999), que o Brasil só iria mudar “quando nós partirmos para uma guerra civil aqui dentro. E fazendo um trabalho que o regime militar não fez, matando uns 30 mil!”

Raul Jungmann tem razão quando adverte, em carta aberta aos ministros do STF-Supremo Tribunal Federal, que os decretos de Bolsonaro que facilitam o acesso a armas estimulam uma guerra civil no país. “Ao longo da história, diz ele, o armamento da população serviu a interesses de ditaduras, golpes de Estado, massacre e eliminação de raças e etnias, separatismos, genocídios e de ovo da serpente do fascismo italiano e do nazismo alemão”. O povo armado nunca serviu à democracia. Muito pelo contrário, empurra a política para o terreno pantanoso da violência, substitui os argumentos e a negociação política pela disputa armada, quebra o monopólio da força pelo Estado, e permite a formação de milícias e exércitos partidarizados. Tem sido assim na Venezuela de Chavez e Maduro. Pode vir a ser assim também no Brasil, se Bolsonaro continuar com seu projeto de armar o “seu” povo para o enfrentamento político que se avizinha com as eleições de 2022, lembrando que, seguindo o exemplo de Donald Trump, ele já antecipou que podem vir a ser fraudadas, se ele não for reeleito.

O mais absurdo e chocante desta iniciativa armamentista de Bolsonaro é o seu lançamento num momento em que morrem cerca de mil brasileiros por dia por Covid-19, em grande parte por conta de sua irresponsabilidade na condução (ou ausência de condução) da política sanitária do Brasil. Já são mais de 250 mil mortos, que se somam às 60 mil vítimas anuais de homicídios, quase sempre por arma de fogo. O presidente Jair Bolsonaro é o senhor das armas, e parece ter um desprezo especial pela vida dos brasileiros.

Cortem-lhe a cabeça!

A conduta do presidente é permanente, ele tem um projeto, não se trata de omissão.

O que realmente funcionaria seria o afastamento do presidente e a instituição de um governo de salvação nacional
José Gomes Temporão., ex-ministro da Saúde

Numa fábula de Kafka, a letargia que a pandemia provocou no Brasil

É parca a literatura acerca da peste iniciada há um ano. Era de se esperar. A catástrofe só piora, seu pico parece se afastar, não chegar nunca. Será preciso tempo, reflexão e fantasia para se obter relatos que revolvam a tragédia, que avaliem o peso de milhares e milhares de mortes, de milhões de vidas viradas de cabeça para baixo —como a sua.

A literatura dá forma a sentimentos difusos, a pensamentos sem nome, e faz assim com que se perceba o que os indivíduos e a espécie são. Por isso a pandemia reavivou o interesse por “Decameron”, de Boccaccio, “Um Diário do Ano da Peste”, de Defoe, “A Peste”, de Camus.

Mas há um autor que, sem abordar expressamente calamidades bombásticas, diz muito dos dias que correm —dias de enclausuramento individual e anomia social. Talvez porque tenha escrito entre duas carnificinas, a Primeira e a Segunda Guerra. Ou porque, no interregno da grande guerra civil de 1914 a 1945, viu o que viríamos a ser: Kafka.

Numa prosa de tabelião, ele anteviu o sem sentido, o mal-estar permanente e sem escape no qual nos precipitamos. A ladeira impele a pessoa rumo ao muro no qual baterá a cara e cairá —e a bota do ogro lhe pisará para sempre o rosto. Não obstante, vamos em frente.

“Pequena Fábula” é um microconto de três frases que Kafka escreveu ao redor de 1920. Às vésperas da morte, pediu ao amigo Max Brod que o destruísse, assim como todos os seus inéditos. Publicado postumamente, foi traduzido por Modesto Carone e está no livro “Narrativas do Espólio”.

 “Ah”, disse o rato, “o mundo torna-se a cada dia mais estreito. A princípio era tão vasto que me dava medo, eu continuava correndo e me sentia feliz com o fato de que finalmente via a distância, à direita e à esquerda, as paredes, mas essas longas paredes convergem tão depressa uma para a outra que já estou no último quarto e lá no canto fica a ratoeira para a qual eu corro.”
“Você só precisa mudar de direção”, disse o gato, e o devorou.

É uma fábula porque nela os bichos falam. Mas não tem nada de Esopo ou La Fontaine, não se encerra com uma lição de moral. Os contos e romances de Kafka nunca chegam a conclusões. E estão cheios de animais, vários inexistentes —e que aos poucos se descobre não serem humanos.

O mais ilustre deles é o “inseto monstruoso” de “A Metamorfose”, no qual Gregor Samsa se vê transformado ao acordar. Sem porquê nem quando, virou um bicho marrom e cheio de pernas, desprezado pela própria família. Desumanizado, morrerá desentendido de si mesmo.

Os personagens da “Pequena Fábula” são híbridos que falam como humanos e agem como animais. O “ah” inicial combina surpresa e constatação. Ele inaugura e sintetiza as oposições binárias que percorrem o curto diálogo de uma ponta à outra: estreito/vasto, paredes/canto, direita/esquerda, princípio/último, rato/gato.

Amálgama de felicidade e medo, a correria do rato serve de figura para os dias de hoje, nos quais a peste nos empareda progressivamente. O que era vasto se estreita até desembocar no canto onde duas alternativas aguardam o rato, a ratoeira ou o gato. Elas são na verdade uma —mutilação e morte.

Há ironia na terceira alternativa, oferecida pelo gato ao rato: é só mudar de direção, e em seguida o devora. O final surpreende, mas não chega a ser engraçado porque Kafka, realista, faz com que o mais forte triunfe inapelavelmente. Seu gato e seu rato são o oposto de Tom e Jerry.

O desenho animado é uma repetição obsessiva de agressões. Tom e Jerry normalizam a violência subjacente à vida real. Educam as crianças para o exercício e a submissão à violência. Ensinam a mesclar força e esperteza. Festejam o frenesi de um mundo movido a tiros e socos sem fim.

Kafka, não. Sem ilusões, incorpora tal mundo à arte. É por isso que sua literatura retrata tão bem a crise provocada pela peste. Sobretudo no Brasil. É como ratos que corremos entre paredes que convergem e nos conduzem ao canto onde o golpe nos aguarda. Um golpe político, coletivo e existencial —que nos animalizará de vez.

Nossa única chance é mudar de rumo. Mas como, se a letargia é geral? Em “Uma Mensagem Imperial”, a resposta imaginada por Kafka não chega nunca a seu destinatário, que “sonha com ela quando a noite chega”.

Em “Na Galeria”, o espectador, inerte diante das desgraças à sua volta, afunda “num sonho pesado, chora sem o saber”. A um amigo, Gustav Janouch, Kafka disse: “Existe muita esperança, mas não para nós”.

Pazuello descobre a pólvora

Há um ano, bem no começo da pandemia da covid-19, se discutia se era uma “gripezinha”, como disse o presidente Jair Bolsonaro, ou uma grave crise sanitária. O então ministro da Saúde, Henrique Mandetta, insistia que era preciso adotar a política de distanciamento social, para achatar a curva de contaminação e evitar o colapso do Sistema Único de Saúde (SUS), enquanto se esperava uma vacina eficaz contra o novo coronavírus. Acabou demitido por contrariar Bolsonaro. O oncologista Nelson Teich, que o substituiu, pediu demissão rapidinho. Bem-mandado, o general de divisão Henrique Pazuello foi nomeado para o cargo.

Naquela ocasião, já se sabia que a pandemia cresceria exponencialmente. Entretanto, incentivados por Bolsonaro, os negacionistas embarcaram na canoa furada da gripezinha, nem mesmo máscaras usavam, e colocavam em dúvida a eficácia das vacinas, que, finalmente, estão chegando, mas em quantidade menor do que a necessária para conter a expansão da doença. Desprezaram o conhecimento e a experiência de sanitaristas, infectologistas e cientistas. O primeiro escalão do Ministério da Saúde foi substituído por um grupo de militares neófitos em saúde pública.

Bolsonaro agiu como aquele rei persa que apostou e perdeu a partida de xadrez. Como recompensa, o seu vizir pediu um grão de trigo no primeiro quadrado do tabuleiro, dois no segundo, quatro no terceiro e assim por diante, dobrando sempre as quantidades. O rei achou a recompensa insignificante, oferecendo joias, odaliscas, palácios, mas o vizir recusou. Só desejava os montes de trigo. Na hora de pagar a aposta, porém, o rei teve uma surpresa muito desagradável. O número de grãos começou pequeno: 1, 2, 4, 8, 16, 32 (…) e foi crescendo, 128, 256, 512, 1.024… Quando chegou à última das 64 casas do tabuleiro, era de quase 18,5 quintilhões.


A história foi contada pelo físico norte-americano Carl Sagan ("Bilhões e bilhões: reflexões sobre vida e morte", Companhia das Letras, 1998) para chamar a atenção para a importância de se levar em conta os números exponenciais na análise da escala dos mais variados assuntos. É o caso da pandemia de coronavírus, que pode virar uma endemia, se a política de vacinação do governo continuar errática, para não dizer toda errada, como está sendo realizada.

Na quarta-feira, chegamos a 250 mil óbitos, com média móvel recorde de 1.129 mortes por dia. Estudo da Fiocruz referente à Semana Epidemiológica 7 de 2021 (período de 14 a 20 de fevereiro) mostra que oito dos 27 estados apresentam sinal de crescimento de casos de Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG) e da covid-19 (95,4% do total de testes positivos), enquanto seis apresentaram tendência de queda. Entretanto, todas as regiões do país estão em risco. Ceará, Santa Catarina e Tocantins apresentam sinal forte (probabilidade maior que 95%) de crescimento na tendência de longo prazo (seis meses). Bahia, Espírito Santo, Paraíba, Pernambuco e Rio Grande do Sul mostram sinal moderado (probabilidade maior que 75%). Ceará e Paraíba acumulam cerca de seis semanas consecutivas de crescimento, enquanto Tocantins apresenta cinco semanas. Alagoas, Goiás, Maranhão e Rondônia, embora estejam com sinal de estabilidade na tendência de longo prazo, vêm de longo período de crescimento.

Na quinta-feira, o ministro Pazuello anunciou que o governo tem três estratégias para enfrentar a pandemia: atendimento imediato em unidades básicas de saúde, estruturação de leitos de UTI e de enfermaria e impulsionamento da vacinação. Ou seja, descobriu a pólvora. Admitiu que a nova cepa do coronavírus, que surgiu em Manaus, já está em várias regiões do país. Citou aumento da contaminação no Pará, no Rio Grande do Norte, na Paraíba, em Goiás, em Santa Catarina e no Rio Grande do Sul. Na verdade, os sinais de que o SUS pode entrar em colapso, como aconteceu em Manaus, vêm da escassez de leitos em Santa Catarina, Tocantins, Rondônia, Rio Grande do Sul, Bahia, Ceará, Paraíba, Maranhão e Sergipe.

Quando Pazuello fala em pronto atendimento nas unidades básicas de saúde, não fica claro qual é o tipo de tratamento. Segundo a revista científica New England Journal of Medicine, a pesquisa Solidarity (Solidariedade) mostrou que medicamentos como hidroxicloroquina, remdesivir, lopinavir e interferon tiveram pouco ou nenhum efeito em pacientes hospitalizados com o novo coronavírus. A pesquisa é organizada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e, no Brasil, conduzida pela Fiocruz. Esse coquetel faz parte do chamado “tratamento precoce”, que era recomendado pelo Ministério da Saúde e foi desaconselhado pelo Conselho Nacional de Saúde (CNS).

Bolsonaro, o rei do asfalto

Viajei pelo Brasil nas últimas semanas. Estive no Rio Grande do Sul e em Mato Grosso, mas também em lugares exóticos do Rio, como Gávea e Leblon, redutos dos muito ricos. Durante as viagens acabou sendo inevitável encontrar apoiadores do presidente Jair Bolsonaro. Fiz um grande esforço para não iniciar discussões extenuantes com eles ou até brigas. Queria escutá-los, aprender algo com eles. Porque ainda é um mistério para mim como os brasileiros puderam votar em um homem que disse que 30 mil deles deveriam ser mortos.

Nesses encontros, uma coisa continuou chamando minha atenção. Um fenômeno que eu também já havia observado nos grupos ultraconservadores de Whatsapp que eu acompanho por interesse profissional (e sociológico).

O bolsonarismo está se tornando um culto de estradas. Sempre que perguntei aos bolsonaristas o que o governo fez nos últimos dois anos, recebi uma resposta: construiu estradas! Disseram que ele consertou, completou ou construiu essa ou aquela BR. E, todos pareciam ter certeza, sem corrupção nenhuma.

Nos grupos bolsonaristas de Whatsapp, fotos de projetos de construção de estradas são frequentemente compartilhadas (claro, quando não há assuntos mais urgentes que são suprimidos pela grande mídia e que todos os membros do grupo devem compartilhar em massa – por exemplo, que os cristãos na Venezuela estão sendo forçados a comer Bíblias).


A inspiração para o fã-clube das estradas vem do mais alto nível. O presidente frequentemente compartilha nas mídias sociais fotos do início ou da conclusão de qualquer projeto de infraestrutura regional.

De fato, não há nada de errado com estradas boas e seguras (embora novas linhas de trem fossem preferíveis). Mas também é verdade que elas são a arma polivalente e tradicional de governos populistas em todo o mundo. Porque construir uma estrada é mais rápido e fácil do que construir um bom sistema de educação ou saúde. E traz um efeito imediato. Ao fim e ao cabo, todo mundo prefere dirigir em bom asfalto do que constantemente batendo em buracos.

Também não deve ser esquecido que estradas, como todos os grandes projetos de infraestrutura, são uma ótima maneira de desviar dinheiro público para bolsos privados da forma mais discreta possível.

Seja como for, a coisa mais surpreendente sobre o tema vai além. Porque eu não me lembro de Bolsonaro ter concorrido a presidente como candidato das estradas. Lembro que ele falou em erradicar a corrupção no país e fortalecer a Operação Lava Jato. Dizia que queria cuidar da segurança pública. Também prometeu privatizar as rígidas empresas estatais, bem como soltar algumas das amarras de uma burocracia kafkiana que trava a economia. (Houve um quarto ponto – Deus, família e pátria – mas foi apenas uma brincadeira de um homem que aprova a tortura, é casado pela terceira vez e entende por pátria que, como presidente, você não precisa dizer uma palavra de empatia sobre a morte de 250 mil compatriotas pelo coronavírus).

É clara a razão pela qual a construção de estradas gera tanta euforia entre os bolsonaristas. Não há mais nada. O herói deles quebrou as suas promessas. A luta pela corrupção efetivamente terminou – possivelmente porque é bem provável que pelo menos um de seus filhos seja corrupto. A péssima situação da segurança pública no Brasil não mudou e vai piorar com os decretos de Bolsonaro para simplificar a posse de armas. E a promessa de liberalização da economia foi reduzida ao absurdo o mais tardar com a intervenção de Bolsonaro na Petrobras.

Então o que resta para este movimento, além da hidroxicloroquina, das fake news e das armas? O glorioso asfalto.

Embora eu deteste estragar a festa, é necessário mencionar um estudo feito pela plataforma de verificação de informações "Aos Fatos". Ela descobriu em 2019 que 54% das ações celebradas por Bolsonaro no Twitter são herança de governos anteriores. No ano passado, Bolsonaro inaugurou orgulhosamente a conclusão da BR-163. Mas a verdade é que entre 2007 e 2014 foram investidos R$ 1,5 bilhão pelos governos do PT. Em 2018 ao redor de 75% das obras já haviam sido concluídas e restavam apenas 51 quilômetros. Foi isso que Bolsonaro inaugurou. Parabéns!
Philipp Lichterbeck