terça-feira, 12 de agosto de 2025

Trump 451 e o sonho da liberdade muda

Os primeiros 6 meses decorridos desde o início de Trump 2.0 são suficientes para destacar uma mudança qualitativa nas forças de articulação e no rigor das políticas implementadas. Se, no primeiro mandato, a ausência de maior musculatura sociopartidária de apoio mostrou-se um entrave à implementação de certas medidas, agora, com uma base mais radicalizada e nomes responsáveis por algumas das maiores corporações de tecnologia e comunicação do mundo ao seu lado, seja pelo medo da retórica persecutória, como no caso de Zuckerberg, ou por interesses ideológicos comuns, como Elon Musk (o que não foi suficiente para mantê-lo no governo por mais que alguns meses), Trump tem sido capaz de influenciar grandes ondas de sectários e impor medidas draconianas que inserem seu segundo mandato no epicentro de profundos processos de cisão na sociedade estadunidense.

Sob o signo do America first, sua retórica inflamada, salpicada de insatisfação e sedenta por comoção popular, estabelece prerrogativas claras: recuperar o país aos seus pujantes dias de outrora, obscurecidos por sucessivos anos de rapinagem predatória das forças do Deep State, resgatar a soberania que fora usurpada por relações bilaterais desleais e organizações internacionais mancomunadas com o globalismo e, acima de tudo, e para que os anteriores sejam possíveis, reavivar os valores tradicionais, o patriotismo e o excepcionalismo do povo americano.

Doravante, há uma batalha inicial que precisa ser travada antes de se voltar ao poderio econômico chinês ou mesmo aos interesses geopolíticos russos, uma estirpe identitária que germinou no cerne da sociedade, como um parasita que se alimenta do coração pulsante da nação e gradativamente o enfraquece. Seu objetivo? A doutrinação radical das crianças, a corrupção dos valores e a usurpação da instituição familiar.

Para tanto, seus artifícios são variados: A disseminação de ideologias antiamericanas e a imposição de ideias radicais de gênero, raça e sexualidade, que servem somente para diluir os valores tradicionais e discriminar trabalhadores e pessoas honestas como tiranas, opressoras; a trans sexualização dos jovens e a corrupção de suas mentes, graças à difusão da agenda “woke”, que distorce suas percepções de mundo e os faz odiar suas famílias; por último, uma sistemática tentativa de normalização dessa engenharia social por meio da ditadura do politicamente correto, buscando usurpar a Primeira Emenda constitucional, que garante o direito fundamental da liberdade de expressão, e impedir que os cidadãos de bem defendam a pátria.

Àqueles que apontam o potencial despótico no posicionamento imponente e combativo de Trump, sempre suscitando a existência destes variados e sórdidos inimigos internos, que espreitam à espera da oportunidade para desferir o golpe fatal, costuma ser rotulada uma imagem de alarmismo insensato, vitimismo e fraqueza moral. Os efeitos da narrativa governamental, no entanto, não se limitam ao resgate de valores patronais seculares, que por si só são dignos de questionamento, mas desdobram-se em medidas reais que, sustentadas por ordens presidenciais com efeitos imediatos à publicação, tornam o comportamento excludente, persecutório e violento em uma marca cultural e institucionalizada da sociedade americana.

Evidenciando o que tem se revelado uma verdadeira cruzada contra formas alteras de existência, dentre os atos iniciais no poder, Trump restringiu o reconhecimento do gênero às categorias biológicas masculino e feminino, além de proibir políticas e conteúdos vinculados às pautas de diversidade, equidade e inclusão (DEI), classificadas por ele como iniciativas radicais e discriminatórias, que lesam trabalhadores qualificados e entregam seus empregos para indivíduos que recorrem ao vitimismo no lugar de empenho árduo para ascender economicamente. Acompanhando a marcha, grandes conglomerados empresariais liquidaram seus programas internos de diversidade, e o combate à “cultura woke” ganhou força nas redes, fortalecendo a percepção de uma sangria moral e cultural que precisa ser estancada.

O agouro contra visões alternativas de mundo, enviesando sua existência como ameaça, está longe do campo da casualidade. Como Foucault bem elaborou, o exercício do poder sobre uma sociedade é condicionado pela produção de verdades. Não se trata de uma verdade una e dogmática, no sentido positivista, mas de uma percepção de mundo partilhada que surte efeitos sobre as mentes e o comportamento dos indivíduos. Isto significa que o controle das massas, essencial à realização de qualquer interesse das classes dirigentes, não é uma condição estável, mas um contínuo e tortuoso campo de disputa. A criação de legitimidade e apoio para qualquer projeto político denota um processo de identificação, um propósito no qual exista a crença de benefício comum do corpo social. Para tanto, é preciso criar uma narrativa dominante, e garantir que suas dissidentes, especialmente aquelas lastreadas em dados e análises que questionem a legalidade dos grupos no poder, sejam deslegitimadas e relegadas ao mutismo.

Por esta razão, não surpreende a criação de uma verdadeira inquisição moderna. Mais de 26 mil imagens e documentos foram apagados de sites oficiais do governo, por referenciarem questões de DEI, debates de gênero, racialidade e, inclusive, o holocausto, iniciativa justificada sob a alcunha de “combate à tirania da diversidade”. Por esta mesma razão, em fevereiro, quase 70 mil estudantes das 160 escolas do Pentágono tiveram seus acessos às bibliotecas impedidos, devido um processo de “verificação”, responsável pela retirada das prateleiras de “conteúdo nocivo”. Dois meses depois, o secretário de Defesa, Pete Hegseth, determinou o banimento de 380 livros da biblioteca da Academia Naval. No mesmo mês, uma ordem presidencial compeliu que o Smithsonian, maior complexo de museus do mundo, realizasse uma revisão completa em seu acervo, para impedir os efeitos de “narrativas revisionistas, de orientação ideológica, que pretendem enfraquecer as conquistas históricas do povo americano”.

Tais ações constroem um cenário que provavelmente teria sido o prólogo de Fahrenheit 451, obra ficcional publicada por Ray Bradbury em 1953, mas cujas críticas não poderiam ser menos ardentemente atuais. Em seu universo, bombeiros servem como uma tropa de fiscalização de um governo autoritário, não combatendo, mas fazendo do fogo sua ferramenta de trabalho, responsável pela destruição de todo e qualquer livro que possam encontrar. O intuito? Manter a dominação sobre uma população leiga, cujos saberes são única e exclusivamente selecionados e condicionados pela conveniência à manutenção do regime.

Em complemento à redução do acervo intelectual que se impõe às massas, a linguagem da informação mediada pelo regime exerce papel maestral. Por meio de uma composição silábica astuta, induz desafetos e engaja admirações, conduz interpretações com orientações sutis, travestidas de altruísmo. Quando analisadas, as ordens presidenciais de Trump, se não personificam a novilíngua orwelliana de 1984, ao menos reproduzem sua essência. Por um lado, as medidas impostas pelo governo são invariavelmente descritas com um furor glorioso, verdadeiros empenhos em recuperar a admiração patriótica e os incríveis valores americanos, como a ordem presidencial de 27 de março, intitulada “restaurando a verdade e a sanidade à história americana”. Do lado oposto da trincheira, perversos grupos insurgentes buscam impor suas “crimideias”, focando nas mentes mais vulneráveis e influenciáveis, para minar seu pensamento crítico e aliená-las com desconfiança quanto à sua identidade, família e pátria. 

Tão logo estas percepções ganham capilaridade, pouco importam conteúdo, debate ou a ciência contida por detrás das páginas, o pânico moral, e o medo do desconhecido ao qual está associado, tornam qualquer investigação um sacrilégio contra a ordem pública. Se Bradbury escrevia em crítica aos efeitos danosos do abandono dos livros em detrimento da popularização da televisão, não seria capaz de imaginar o poder catalizador que seriam os tablets, smartphones e redes sociais que, agindo em mímese às teletelas de Orwell, nos vigiam constantemente, capturando predileções políticas, tendências de personalidade e os traços psicométricos exatos que permitem fornecer estímulos para orientar, induzir e sugestionar.

Neste afã, torna-se vital suprimir os “fomentadores da discórdia”. E que locais serviriam melhor de antro à doutrinação sistemática que as universidades? Além de intimidar inúmeros centros universitários com ameaças de cortes de verbas e tentativas de violar a liberdade de cátedra e regular os temas abordados por institutos de pesquisa, a administração Trump impôs uma fiscalização ideológica a alunos estrangeiros. Desde junho, a concessão de vistos passou a ser condicionada à inspeção das redes sociais (que obrigatoriamente devem ser tornadas públicas), em busca de barrar indivíduos com “atitudes hostis aos cidadãos, cultura, governo, instituições ou princípios fundadores americanos”. Em outros termos, o pensamento-crime se materializa no questionamento, na investigação e em qualquer forma de oposição que decorre, automaticamente, na classificação de todo e qualquer desalinhamento com os ditames do governo não como um opositor, mas um inimigo da nação.

Disto surge o que talvez figure a maior falha cognitiva deste governo: a liberdade de expressão. Se, por um lado, todos os presos pela invasão do Capitólio em 2021, que tentavam intervir no resultado eleitoral que postergou por 4 anos Trump 2.0, foram liberados sob o pretexto de “uma grave injustiça nacional” contra a liberdade de expressão, a mesma lógica não parece se estender a outros segmentos da sociedade. No dia 12 de junho, durante uma coletiva de imprensa em Los Angeles, Alex Padilla, senador democrata, foi jogado no chão por forças policiais e algemado ao tentar fazer uma pergunta à secretária de Segurança Interna do governo, Kristi Noem. Não obstante, mais de mil estudantes foram presos em universidades espalhadas pelo país, ao protestar em favor da Palestina e contra o apoio estadunidense a Israel. O governo alegou apoio a ações terroristas, antissemitas e antiamericanas.

Da mesma forma que Fahrenheit representa um mundo invertido, no qual bombeiros não combatem, mas se valem do fogo para semear a destruição do conhecimento, Trump opera sobre inversões lógicas e falhas cognitivas para mobilizar as massas e encontrar sustentação às suas ações. Logo, grupos extremistas armados que invadem e depredam o capitólio, repleto de membros do legislativo estadunidense, são defensores legítimos da liberdade de expressão, acuados por um governo autoritário. Estudantes que denunciam as mazelas da guerra e a crise humanitária que se intensifica são associados a organizações terroristas e antipatrióticas. Gays, lésbicas e transsexuais, historicamente perseguidos e silenciados, ao clamar por integridade, física e moral, estão impondo uma agenda ideológica subversiva, enquanto a disseminação de discursos de ódio nas redes, que instigam a perseguição e violência contra este grupos, são expressões despretensiosas de pontos de vista pessoais, sem qualquer impacto real. imigrantes, que acreditam na propaganda do sonho americano e se submetem às mais precárias condições, às quais nenhum nativo se interessa, são criminosos tresloucados que querem roubar os cargos de Wall Street.

Notadamente, não se trata de uma defesa genuína e universal pelas liberdades individuais. Em momento algum se encontra um esforço real de preservação da juventude frente aos conteúdos nocivos do mundo digital, que se estendem da pornografia e violência desenfreada a trends virais com desafios que envolvem automutilação, ao que seriam coerentes políticas de regulação das redes. Não há um cerco, como se tenta projetar, para extinguir persecutoriamente os valores tradicionais e implodir o modelo familiar heterossexual. Em verdade, este é um subterfúgio para avivar a sensação de ameaça e mobilizar os afetos coletivos em um projeto político de resgate de um status quo que passara a ser disputado a partir da criação de novos saberes.

Em suma, todo e qualquer sujeito ou movimento que conteste o status do sistema, figura-se automaticamente como ameaça a ser combatida a todo custo, uma força fantasmática que opera catalisando pânicos morais de uma população que, vendo suas condições de vida degradarem, anseia por respostas que indiquem o caminho de retorno aos tempos de outrora, sempre vislumbrados com um toque de idealismo.

Na obra de Bradbury, o título faz referência à temperatura de combustão do papel, medida em fahrenheit. Fora das páginas, no mundo da política real, tomado pelo ardor de decisões despóticas de lideranças radicais, que tolhem as regras do sistema para testar seus limites, até que temperatura resistiremos antes que a democracia e as estruturas que a sustentam, cuja crescente debilidade torna-se cada dia mais evidente, pereçam em generalizada combustão?
Fellipe Souza Sena

O mundo não é uma máquina

Se você só conhece os conservadores brasileiros —quase sempre mais reacionários que conservadores—, que tal olhar para fora? Que tal olhar para Kemi Badenoch, a líder dos Tories no Reino Unido?

É mulher. É negra. É ateia, como explicou recentemente à BBC. Acreditar em Deus deixou de ser uma opção depois do caso judicial de Joseph Fritzl, confessou ela.

Relembro —em 2008, Fritzl, então com 73 anos, foi preso na Áustria e condenado à prisão perpétua por manter a própria filha no porão durante 24 anos. Apesar das preces contínuas da vítima, foram 24 anos de cativeiro e abusos sexuais que geraram sete filhos. Um morreu, três viveram com a mãe no porão e os outros três com o avô.

Como acreditar em Deus diante de tamanha maldade? Como justificar o Seu silêncio?


Boas perguntas. Recorrentes perguntas na história da teologia e da filosofia. Se Deus é onipresente, onisciente e benevolente, como explicar a existência do mal? Mais do que isso, como explicar o sofrimento de inocentes que nada fizeram para merecer tal destino?

Para o ateu, a resposta é curta e grossa: o mal existe porque esse Deus superpoderoso não existe. Ou, numa variação, Deus não existe, o mal existe —e uma coisa não tem nada a ver com a outra.

A posição agnóstica é mais cautelosa: reconhece os limites do conhecimento humano. Quem não sabe se Deus existe também não sabe por que o mal acontece.

E mesmo admitindo a possibilidade da existência de Deus, isso não implica necessariamente que Ele seja todo-poderoso ou totalmente bom. A hipótese de um Deus limitado —ou até maligno— não pode ser descartada.


No fundo, o ceticismo serve tanto para assuntos terrenos quanto celestiais.

E para o crente? Aqui não há resposta única. Santo Agostinho explicava a presença do mal como consequência da liberdade humana —na visão dele, Deus criou criaturas livres, e somos nós que, por escolha própria, nos afastamos da luz. Depois da Queda, não nos cabe imputar a Deus as falhas que escolhemos cometer.

Mas e quando o mal não depende de nós? Como explicar os humores da natureza e a destruição que ela é capaz de causar —terremotos, enchentes, pandemias?

Leibniz confiava num plano divino invisível: somos demasiado limitados para compreender a totalidade da providência. E talvez certos males cotidianos sejam mesmo necessários para que um bem maior se realize.

Confesso —o otimismo de Leibniz, ridicularizado com precisão por Voltaire, nunca me convenceu. Também não deve ter convencido a filha de Joseph Fritzl, encerrada na masmorra, sem acesso a esse plano geral da providência.

A verdade é que não tenho resposta para o problema do mal. E essa ausência de resposta é a minha resposta mais honesta, que aprendi cedo, demasiado cedo, por obra e graça de um brasileiro.

Eu devia ter uns 16 anos, não mais, quando deparei com "A Máquina do Mundo", de Carlos Drummond de Andrade. É talvez o único poema brasileiro que sei de cor, porque o recito, internamente, quando o meu mundo treme ou desaba. Camões que me perdoe, mas a minha máquina do mundo é essa.

Então caminho com o poeta por uma estrada pedregosa de Minas, "no fecho da tarde", quando soa "um sino rouco".

Subitamente, a máquina do mundo se abre, "majestosa e circunspecta", disposta a revelar o segredo último das coisas —a "total explicação da vida", "tudo que define o ser terrestre", "as paixões e os impulsos e os tormentos", "a memória dos deuses".

Mas o homem prossegue o seu caminho: "baixei os olhos, incurioso, lasso,/ desdenhando colher a coisa oferta/ que se abria gratuita a meu engenho".

Há quem veja nos versos de Drummond a renúncia ao conhecimento, a desistência, a desesperança. Pessimismo em estado puro. Discordo. Sempre os vi como a afirmação mais bela e sábia de que não devemos exigir sentido para todas as experiências.

Quando o li, numa casa em luto, senti que Drummond me trazia de volta à superfície com essa lição tão aparentemente simples: o mistério nada nos deve se nós nada devermos ao mistério.

Para usar a linguagem da geopolítica, é uma espécie de coexistência pacífica —ou, pelo menos, um pacto de não agressão.

A senhora Kemi Badenoch, apesar de conservadora, exige demais. Exige tudo. Não admira que se desiluda tão profundamente quando a "máquina do mundo" não se abre para ela.

A degradação do Congresso

O recente episódio de obstrução da pauta legislativa na Câmara Federal, quando bolsonaristas promoveram um motim, impedindo, por dois dias, o trabalho regular do Congresso, sinaliza a continuidade da crise democrática que, há décadas, corrói a imagem de nossa representação política. Mas, convém lembrar que a degradação do Congresso Nacional não é apenas um problema conjuntural, mas estrutural, revelando o esgarçamento do pacto democrático e a crescente distância entre representantes e representados.


A esfera política nunca foi tão mal avaliada. Pesquisas recentes sobre a imagem dos congressistas revelam uma percepção majoritariamente negativa da atuação do Congresso Nacional. A desaprovação do Congresso é alta, com números semelhantes à reprovação do governo Lula e com uma visão mais negativa entre os eleitores de Bolsonaro.

A maioria da população desaprova a atuação do Congresso Nacional, com 51% de reprovação, segundo a última pesquisa realizada. A última pesquisa sobre a imagem dos políticos, realizada pela Datafolha, mostra que 78% dos brasileiros acham que o Congresso age em interesse próprio. E mais: o Legislativo tem a pior avaliação entre os três Poderes da República. Aproximadamente 42% aprovam o trabalho do Congresso. A pesquisa mostrou que os mais pobres tendem a aprovar mais o Congresso do que os mais ricos. Além disso, eleitores de Lula têm uma visão mais favorável ao Congresso do que os de Bolsonaro.

O fato é que o Congresso vem sofrendo um grave desgaste de legitimidade perante a opinião pública. A percepção geral é a de um parlamento tomado por interesses particulares, fisiológicos ou corporativos, desconectado das reais necessidades do povo. As figuras parlamentares cada vez mais se moldam à lógica das redes sociais. Deputados e senadores viram influencers, priorizando a viralização de falas agressivas ou “lacradoras” em detrimento da atuação legislativa substantiva. A política se reduz ao espetáculo, e o debate público é substituído por slogans e memes.

Além disso, o Congresso tem sido capturado por lobbies diversos: do agronegócio, das igrejas neopentecostais, das grandes empresas, de corporações armadas, entre outros. Comissões são loteadas e pautas são compradas ou negociadas em troca de vantagens. A agenda pública cede lugar à pauta de interesses.

A prática do “toma-lá-dá-cá” se institucionalizou de tal forma que cargos, verbas e emendas secretas tornaram-se moeda corrente para a manutenção do apoio ao governo da vez, independentemente de ideologias. A governabilidade passa pela barganha e não pelo convencimento democrático.

Casos de corrupção, rachadinhas, falsos pronunciamentos, manipulações regimentais e blindagem de aliados corroem a imagem institucional do Legislativo. O Parlamento, que deveria ser casa da transparência, é frequentemente visto como espaço de impunidade.

Em suma, o Congresso legisla menos e legisla mal. Muitas leis são aprovadas a toque de caixa, sem debates profundos ou audiências públicas. Outras vezes, renuncia a seu papel e delega competências ao Executivo, inclusive em temas sensíveis.

O que poderia ser feito para melhorar o conceito da instituição política? A resposta aponta para a educação política. Ao promover a educação política, é possível combater a descrença na política e na democracia, incentivando a participação ativa dos cidadãos na construção de um futuro melhor para todos. Essa meta inclui um conjunto de providências, entre as quais o debate de temas relevantes, a formação de jovens cidadãos, o investimento na formação de educadores e a criação de diálogo e participação.

Combater a corrupção, implementando mecanismos de controle e fiscalização eficazes, punindo exemplarmente os corruptos e promovendo a transparência na gestão pública. Fortalecer a democracia, estimular a participação cidadã em conselhos municipais, audiências públicas e outros espaços de discussão, além de garantir eleições justas e transparentes. Realizar reformas políticas, tornando as campanhas eleitorais mais justas e transparentes, além de garantir a representatividade e a governabilidade. Exigir conduta ética e transparente dos políticos, promovendo a responsabilização por seus atos e a punição de desvios de conduta. Reconhecer a importância da política como ferramenta de transformação social e promover o debate público sobre temas relevantes para a sociedade.

A educação política é um investimento no futuro da democracia, pois contribui para a formação de cidadãos conscientes, críticos e engajados, capazes de transformar a sociedade para melhor.

'Você está demitido': um jeito Trump para ditar a realidade

O presidente dos EUA, Donald Trump, é conhecido por demitir pessoas. A frase "Você está demitido", aliás, virou sua marca registrada no programa de TV "O Aprendiz". Agora, como presidente, não poderia ser diferente.

A demissão de Erika McEntarfer no início de agosto, no entanto, foi um tanto peculiar. Ela não perdeu o cargo de chefe do Bureau of Labor Statistics (Escritório de Estatísticas do Trabalho) por criticar Trump ou por ter se indisposto com os republicanos.

McEntarfer, cuja nomeação foi confirmada por ampla maioria bipartidária (86 a 8) no Senado dos EUA em janeiro de 2024, perdeu o cargo simplesmente por fazer o seu trabalho.
"Eu a demiti!"

No início de agosto, o gabinete de McEntarfer apresentou seu relatório periódico sobre a evolução do mercado de trabalho americano. Segundo o documento, a criação de empregos nos EUA foi menor do que o esperado nos últimos meses.

Poucas horas depois, McEntarfer foi demitida. A jornalistas, Trump qualificou os números como phony, o que pode significar falsos ou simplesmente estranhos, e acrescentou: "Eu a demiti".


Mas o que aconteceu exatamente? "O número de novos empregos criados teve que ser revisado significativamente para baixo; a previsão anterior não se concretizou", explica Hendrik Mahlkow, economista do Instituto da Economia Mundial (IfW), em Kiel.

"Nos últimos dois meses, foram criados mais de 200 mil empregos a menos do que o esperado. Isso mostra que as políticas de Trump estão enfrentando obstáculos", disse Mahlkow no podcast de negócios da DW (em alemão).

Em sua plataforma social Truth Social, Trump voltou a bater na mesma tecla, e chamou McEntarfer de "incompetente" e a acusou de alterar os números para prejudicá-lo.

Para Mahlkow, especialista do IfW, não há "nenhuma evidência" sobre isso. Fato é que o Bureau of Labor Statistics primeiro elabora um prognóstico – ou seja, uma estimativa de como o mercado de trabalho poderá se desenvolver nos próximos meses.

Essa estimativa é baseada em pesquisas de opinião. "Posteriormente, quando são disponibilizados os números reais de quantos novos empregos foram criados, as previsões precisam ser revisadas."

As revisões podem ir em ambas as direções. Neste caso, elas foram para baixo – o que irritou Trump. "O cerne da política de Trump é que ele se apresenta como um líder que promove a recuperação econômica", diz Mahlkow. "Se os indicadores econômicos não se encaixam nessa narrativa, o portador de más notícias é demitido."

Mas quem pensa que isso não passa de apenas mais um capricho de Trump está subestimando a importância dos dados oficiais para a economia.

Deste episódio, surgem algumas perguntas. Por exemplo: quão confiáveis serão esses dados no futuro? Será que em breve todas as estatísticas passarão a ser revisadas antes da publicação para determinar se podem ou não desagradar a Trump? E até que ponto tais números ainda refletem a realidade?

Investidores nas bolsas de valores americanas também se fizeram perguntas semelhantes, com os índices caindo significativamente no dia da demissão de McEntarfer. Demitir a chefe de estatísticas foi um "ataque deliberado à integridade dos dados econômicos dos EUA e de todo o sistema estatístico", disse Jed Kolko, do Instituto Peterson de Economia Internacional em Washington, D.C., à BBC.

Dados precisos sobre o mercado de trabalho também são fundamentais para o Federal Reserve (Fed, banco central dos EUA). Entre as funções do órgão, está viabilizar o pleno emprego por meio de sua política monetária.

"Se o Fed não puder mais confiar nos dados do mercado de trabalho, a política monetária não poderá mais reagir de forma confiável", disse o economista Mahlkow, do IfW.

Por décadas, os dados econômicos americanos eram apresentados como um modelo de excelência, disse Mahlkow. "Ter dados tão bons e detalhados para uma economia tão grande distinguia os EUA. Agora, isso está se deteriorando."
Os EUA estão se tornando como a China?

O exemplo da China, a segunda maior economia do mundo depois da americana, pode trazer algumas pistas sobre aonde isso tudo pode levar. Lá, a liderança comunista faz questão de garantir que seus planos sejam cumpridos – o que resulta em baixa confiança nos números oficiais de crescimento econômico.

"Investidores, bancos e organizações internacionais têm se esforçado para interpretar os números supostamente verdadeiros", diz Mahlkow. Eles comparam, por exemplo, os números oficiais sobre exportações de produtos chineses com dados de importação de outras economias ou tentam tirar conclusões sobre a atividade econômica a partir de dados de mobilidade.

O ceticismo em relação aos dados dos EUA ainda não é tão grande, diz Mahlkow. "Mas os acontecimentos dos últimos meses mostram a rapidez com que uma base de confiança construída ao longo de décadas se erode."

Isso especialmente porque a confiança é rara numa época em que ameaças alfandegárias, acordos e prazos mudam semanalmente.

"Trump nos ensinou que as regras não se aplicam mais a ele e aos EUA. Agora só existe o direito do mais forte, e as pessoas estão constantemente testando até aonde podem ir", avalia Florian Heider, diretor científico do Instituto Leibniz de Pesquisa de Mercado Financeiro e professor da Universidade Goethe em Frankfurt am Main.

A incerteza resultante é um veneno para os mercados financeiros, que recentemente tiveram uma leve recuperação achando que o pior das "tarifas recíprocas" já havia passado.

Uma nova demissão, porém, poderia causar pânico rapidamente. "Ele [Trump] só precisa demitir o presidente do Federal Reserve, Jerome Powell, por querer taxas de juros mais baixas", disse Heider. "Ao fazer isso, ele questiona a independência do banco central. E aí as coisas podem degringolar de novo muito rapidamente."