terça-feira, 12 de agosto de 2025

Trump 451 e o sonho da liberdade muda

Os primeiros 6 meses decorridos desde o início de Trump 2.0 são suficientes para destacar uma mudança qualitativa nas forças de articulação e no rigor das políticas implementadas. Se, no primeiro mandato, a ausência de maior musculatura sociopartidária de apoio mostrou-se um entrave à implementação de certas medidas, agora, com uma base mais radicalizada e nomes responsáveis por algumas das maiores corporações de tecnologia e comunicação do mundo ao seu lado, seja pelo medo da retórica persecutória, como no caso de Zuckerberg, ou por interesses ideológicos comuns, como Elon Musk (o que não foi suficiente para mantê-lo no governo por mais que alguns meses), Trump tem sido capaz de influenciar grandes ondas de sectários e impor medidas draconianas que inserem seu segundo mandato no epicentro de profundos processos de cisão na sociedade estadunidense.

Sob o signo do America first, sua retórica inflamada, salpicada de insatisfação e sedenta por comoção popular, estabelece prerrogativas claras: recuperar o país aos seus pujantes dias de outrora, obscurecidos por sucessivos anos de rapinagem predatória das forças do Deep State, resgatar a soberania que fora usurpada por relações bilaterais desleais e organizações internacionais mancomunadas com o globalismo e, acima de tudo, e para que os anteriores sejam possíveis, reavivar os valores tradicionais, o patriotismo e o excepcionalismo do povo americano.

Doravante, há uma batalha inicial que precisa ser travada antes de se voltar ao poderio econômico chinês ou mesmo aos interesses geopolíticos russos, uma estirpe identitária que germinou no cerne da sociedade, como um parasita que se alimenta do coração pulsante da nação e gradativamente o enfraquece. Seu objetivo? A doutrinação radical das crianças, a corrupção dos valores e a usurpação da instituição familiar.

Para tanto, seus artifícios são variados: A disseminação de ideologias antiamericanas e a imposição de ideias radicais de gênero, raça e sexualidade, que servem somente para diluir os valores tradicionais e discriminar trabalhadores e pessoas honestas como tiranas, opressoras; a trans sexualização dos jovens e a corrupção de suas mentes, graças à difusão da agenda “woke”, que distorce suas percepções de mundo e os faz odiar suas famílias; por último, uma sistemática tentativa de normalização dessa engenharia social por meio da ditadura do politicamente correto, buscando usurpar a Primeira Emenda constitucional, que garante o direito fundamental da liberdade de expressão, e impedir que os cidadãos de bem defendam a pátria.

Àqueles que apontam o potencial despótico no posicionamento imponente e combativo de Trump, sempre suscitando a existência destes variados e sórdidos inimigos internos, que espreitam à espera da oportunidade para desferir o golpe fatal, costuma ser rotulada uma imagem de alarmismo insensato, vitimismo e fraqueza moral. Os efeitos da narrativa governamental, no entanto, não se limitam ao resgate de valores patronais seculares, que por si só são dignos de questionamento, mas desdobram-se em medidas reais que, sustentadas por ordens presidenciais com efeitos imediatos à publicação, tornam o comportamento excludente, persecutório e violento em uma marca cultural e institucionalizada da sociedade americana.

Evidenciando o que tem se revelado uma verdadeira cruzada contra formas alteras de existência, dentre os atos iniciais no poder, Trump restringiu o reconhecimento do gênero às categorias biológicas masculino e feminino, além de proibir políticas e conteúdos vinculados às pautas de diversidade, equidade e inclusão (DEI), classificadas por ele como iniciativas radicais e discriminatórias, que lesam trabalhadores qualificados e entregam seus empregos para indivíduos que recorrem ao vitimismo no lugar de empenho árduo para ascender economicamente. Acompanhando a marcha, grandes conglomerados empresariais liquidaram seus programas internos de diversidade, e o combate à “cultura woke” ganhou força nas redes, fortalecendo a percepção de uma sangria moral e cultural que precisa ser estancada.

O agouro contra visões alternativas de mundo, enviesando sua existência como ameaça, está longe do campo da casualidade. Como Foucault bem elaborou, o exercício do poder sobre uma sociedade é condicionado pela produção de verdades. Não se trata de uma verdade una e dogmática, no sentido positivista, mas de uma percepção de mundo partilhada que surte efeitos sobre as mentes e o comportamento dos indivíduos. Isto significa que o controle das massas, essencial à realização de qualquer interesse das classes dirigentes, não é uma condição estável, mas um contínuo e tortuoso campo de disputa. A criação de legitimidade e apoio para qualquer projeto político denota um processo de identificação, um propósito no qual exista a crença de benefício comum do corpo social. Para tanto, é preciso criar uma narrativa dominante, e garantir que suas dissidentes, especialmente aquelas lastreadas em dados e análises que questionem a legalidade dos grupos no poder, sejam deslegitimadas e relegadas ao mutismo.

Por esta razão, não surpreende a criação de uma verdadeira inquisição moderna. Mais de 26 mil imagens e documentos foram apagados de sites oficiais do governo, por referenciarem questões de DEI, debates de gênero, racialidade e, inclusive, o holocausto, iniciativa justificada sob a alcunha de “combate à tirania da diversidade”. Por esta mesma razão, em fevereiro, quase 70 mil estudantes das 160 escolas do Pentágono tiveram seus acessos às bibliotecas impedidos, devido um processo de “verificação”, responsável pela retirada das prateleiras de “conteúdo nocivo”. Dois meses depois, o secretário de Defesa, Pete Hegseth, determinou o banimento de 380 livros da biblioteca da Academia Naval. No mesmo mês, uma ordem presidencial compeliu que o Smithsonian, maior complexo de museus do mundo, realizasse uma revisão completa em seu acervo, para impedir os efeitos de “narrativas revisionistas, de orientação ideológica, que pretendem enfraquecer as conquistas históricas do povo americano”.

Tais ações constroem um cenário que provavelmente teria sido o prólogo de Fahrenheit 451, obra ficcional publicada por Ray Bradbury em 1953, mas cujas críticas não poderiam ser menos ardentemente atuais. Em seu universo, bombeiros servem como uma tropa de fiscalização de um governo autoritário, não combatendo, mas fazendo do fogo sua ferramenta de trabalho, responsável pela destruição de todo e qualquer livro que possam encontrar. O intuito? Manter a dominação sobre uma população leiga, cujos saberes são única e exclusivamente selecionados e condicionados pela conveniência à manutenção do regime.

Em complemento à redução do acervo intelectual que se impõe às massas, a linguagem da informação mediada pelo regime exerce papel maestral. Por meio de uma composição silábica astuta, induz desafetos e engaja admirações, conduz interpretações com orientações sutis, travestidas de altruísmo. Quando analisadas, as ordens presidenciais de Trump, se não personificam a novilíngua orwelliana de 1984, ao menos reproduzem sua essência. Por um lado, as medidas impostas pelo governo são invariavelmente descritas com um furor glorioso, verdadeiros empenhos em recuperar a admiração patriótica e os incríveis valores americanos, como a ordem presidencial de 27 de março, intitulada “restaurando a verdade e a sanidade à história americana”. Do lado oposto da trincheira, perversos grupos insurgentes buscam impor suas “crimideias”, focando nas mentes mais vulneráveis e influenciáveis, para minar seu pensamento crítico e aliená-las com desconfiança quanto à sua identidade, família e pátria. 

Tão logo estas percepções ganham capilaridade, pouco importam conteúdo, debate ou a ciência contida por detrás das páginas, o pânico moral, e o medo do desconhecido ao qual está associado, tornam qualquer investigação um sacrilégio contra a ordem pública. Se Bradbury escrevia em crítica aos efeitos danosos do abandono dos livros em detrimento da popularização da televisão, não seria capaz de imaginar o poder catalizador que seriam os tablets, smartphones e redes sociais que, agindo em mímese às teletelas de Orwell, nos vigiam constantemente, capturando predileções políticas, tendências de personalidade e os traços psicométricos exatos que permitem fornecer estímulos para orientar, induzir e sugestionar.

Neste afã, torna-se vital suprimir os “fomentadores da discórdia”. E que locais serviriam melhor de antro à doutrinação sistemática que as universidades? Além de intimidar inúmeros centros universitários com ameaças de cortes de verbas e tentativas de violar a liberdade de cátedra e regular os temas abordados por institutos de pesquisa, a administração Trump impôs uma fiscalização ideológica a alunos estrangeiros. Desde junho, a concessão de vistos passou a ser condicionada à inspeção das redes sociais (que obrigatoriamente devem ser tornadas públicas), em busca de barrar indivíduos com “atitudes hostis aos cidadãos, cultura, governo, instituições ou princípios fundadores americanos”. Em outros termos, o pensamento-crime se materializa no questionamento, na investigação e em qualquer forma de oposição que decorre, automaticamente, na classificação de todo e qualquer desalinhamento com os ditames do governo não como um opositor, mas um inimigo da nação.

Disto surge o que talvez figure a maior falha cognitiva deste governo: a liberdade de expressão. Se, por um lado, todos os presos pela invasão do Capitólio em 2021, que tentavam intervir no resultado eleitoral que postergou por 4 anos Trump 2.0, foram liberados sob o pretexto de “uma grave injustiça nacional” contra a liberdade de expressão, a mesma lógica não parece se estender a outros segmentos da sociedade. No dia 12 de junho, durante uma coletiva de imprensa em Los Angeles, Alex Padilla, senador democrata, foi jogado no chão por forças policiais e algemado ao tentar fazer uma pergunta à secretária de Segurança Interna do governo, Kristi Noem. Não obstante, mais de mil estudantes foram presos em universidades espalhadas pelo país, ao protestar em favor da Palestina e contra o apoio estadunidense a Israel. O governo alegou apoio a ações terroristas, antissemitas e antiamericanas.

Da mesma forma que Fahrenheit representa um mundo invertido, no qual bombeiros não combatem, mas se valem do fogo para semear a destruição do conhecimento, Trump opera sobre inversões lógicas e falhas cognitivas para mobilizar as massas e encontrar sustentação às suas ações. Logo, grupos extremistas armados que invadem e depredam o capitólio, repleto de membros do legislativo estadunidense, são defensores legítimos da liberdade de expressão, acuados por um governo autoritário. Estudantes que denunciam as mazelas da guerra e a crise humanitária que se intensifica são associados a organizações terroristas e antipatrióticas. Gays, lésbicas e transsexuais, historicamente perseguidos e silenciados, ao clamar por integridade, física e moral, estão impondo uma agenda ideológica subversiva, enquanto a disseminação de discursos de ódio nas redes, que instigam a perseguição e violência contra este grupos, são expressões despretensiosas de pontos de vista pessoais, sem qualquer impacto real. imigrantes, que acreditam na propaganda do sonho americano e se submetem às mais precárias condições, às quais nenhum nativo se interessa, são criminosos tresloucados que querem roubar os cargos de Wall Street.

Notadamente, não se trata de uma defesa genuína e universal pelas liberdades individuais. Em momento algum se encontra um esforço real de preservação da juventude frente aos conteúdos nocivos do mundo digital, que se estendem da pornografia e violência desenfreada a trends virais com desafios que envolvem automutilação, ao que seriam coerentes políticas de regulação das redes. Não há um cerco, como se tenta projetar, para extinguir persecutoriamente os valores tradicionais e implodir o modelo familiar heterossexual. Em verdade, este é um subterfúgio para avivar a sensação de ameaça e mobilizar os afetos coletivos em um projeto político de resgate de um status quo que passara a ser disputado a partir da criação de novos saberes.

Em suma, todo e qualquer sujeito ou movimento que conteste o status do sistema, figura-se automaticamente como ameaça a ser combatida a todo custo, uma força fantasmática que opera catalisando pânicos morais de uma população que, vendo suas condições de vida degradarem, anseia por respostas que indiquem o caminho de retorno aos tempos de outrora, sempre vislumbrados com um toque de idealismo.

Na obra de Bradbury, o título faz referência à temperatura de combustão do papel, medida em fahrenheit. Fora das páginas, no mundo da política real, tomado pelo ardor de decisões despóticas de lideranças radicais, que tolhem as regras do sistema para testar seus limites, até que temperatura resistiremos antes que a democracia e as estruturas que a sustentam, cuja crescente debilidade torna-se cada dia mais evidente, pereçam em generalizada combustão?
Fellipe Souza Sena

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