quarta-feira, 4 de março de 2020

Pensamento do Dia

A morte de 241 pessoas não é normal

Com o fim do motim dos policiais do Ceará, o Brasil deveria aproveitar a oportunidade e mudar a forma displicente com que vem tratando as insubordinações que violam a Constituição, deixam a população indefesa e contribuem para o aumento de assassinatos no país. Há mais de 20 anos motins acontecem e pouco depois, para espanto da nação, os insubordinados são anistiados. Ora por iniciativa de governadores e Assembleias Legislativas, ora do Congresso Nacional e do presidente da República.

É dessa maneira que os motins se retroalimentam e multiplicam. Nos últimos anos tivemos duas anistias amplas, gerais e irrestritas a policiais e bombeiros: em 2011, promulgada por Dilma Rousseff, e em 2016, por Michel Temer.

No bojo da sublevação de policiais há quebra de hierarquia e se instala a anarquia nos quartéis, com a conivência da cadeia de comando. O novo exemplo disso veio do coronel da Polícia Militar cearense, Antônio Agnaldo Oliveira, diretor da Força Nacional de Segurança. Na assembleia que marcou o fim do motim do Ceará, como se fosse líder de central sindical, o coronel Aginaldo chamou os policiais amotinados de “corajosos” e “gigantes”.


Os políticos também dão mau exemplo. Em 2016, durante a votação do projeto de lei que anistiava policiais e bombeiros de 19 estados, a então senadora Vanessa Grazziotin (PCdoB-AM) defendeu o perdão como “uma questão de justiça”, apesar da Constituição e o Código Penal Militar serem claríssimos na proibição de greves de corporações militares. Na mesma votação, o senador João Capiberibe (PSB/AP) protestou contra a prisão de militares insubordinados, considerando a medida como herança da ditadura!

Mesmo quando há um ponto fora da curva, como aconteceu em 2017 no motim da polícia do Espírito Santo, a mudança de atitude vai por água abaixo por causa da demagogia política. À época o então governador Paulo Hartung (hoje sem partido) não cedeu à chantagem e expulsou da corporação os principais responsáveis pela sublevação cujo saldo foi a morte violenta de 219 pessoas. Pois bem, uma das primeiras medidas do seu sucessor, Renato Casagrande (PSB), foi anistiar os amotinados de 2017.

No Ceará houve nova quebra de paradigma, mas ainda é cedo para saber se vingará. O Governador Camilo Santana (PT) não cedeu à chantagem e encaminhou à Assembleia do Estado uma emenda constitucional que proíbe anistia a policiais amotinados. No Congresso Nacional, hoje é praticamente zero a probabilidade de se votar uma nova anistia.

A despeito de divergências políticas, o governo estadual e o governo federal encontraram um terreno comum e atuaram num clima colaborativo, reconhecido pelo próprio governador cearense.

Mas nem tudo foram flores nessa relação.

O clã dos Gomes e o ministro Sérgio Moro disputaram os louros pelo fim do motim mas saíram arranhados. Os Gomes, porque Ciro tem aquela lamentável incontinência verbal e seu irmão Cid que, tresloucado, esqueceu sua condição de senador da República ao protagonizar, de forma irresponsável, o episódio em que jogou uma retroescavadeira nos insubordinados para tentar tomar um quartel ocupado.

Já o ministro deixou expostas as dificuldades do governo Bolsonaro de ter uma postura mais firme diante de rebeliões das corporações policiais, um dos redutos eleitorais do presidente.

Difícil concordar com a avaliação de Moro segundo a qual tudo ocorreu dentro da normalidade. Não é normal a morte por violência de 241 pessoas – quase 28 por dia – durante o motim. Tampouco dá para tolerar policiais encapuçados que depredaram e sequestraram viaturas policiais, além de terem ocupado, manu militari, quartéis da corporação.

A mudança de atitude não acontecerá enquanto houver partidarização da polícia ou instrumentalização dela por lideranças oportunistas que fazem dos motins trampolim para obter mandato parlamentar. Os cabos Dacciolos, Sabinos, Julios ou sargentos Idallícios ou soldados Priscos deram esse pulo do gato. São resultado da banalização da anistia à amotinados e da pusilanimidade no combate de insubordinações que afrontam a Constituição.

Velha história

É a mesma história de sempre. Nós entramos com a fome para que os outros comam
Gabriel García Márquez, "Ninguém escreve ao coronel"

Bolsonaro é parasita que quer matar o hospedeiro

Bolsonaro não tem projeto político. Seu liberalismo foi tomado de empréstimo —e de última hora—, e seu conservadorismo é grosseiro, primitivo e sem substância. Sua política é de uma negatividade abstrata e é tão obtusa que ninguém responsável cogitaria colocá-la em prática.

No campo da educação, por exemplo, não é possível saber o que o bolsonarismo realmente quer. Sabemos apenas o que critica: pensa que a educação foi reduzida a doutrinação política, que as universidades se transformaram em balbúrdia da esquerda festiva e que cientistas e professores querem apenas mamar nas tetas do governo.

Ele parece genuinamente ignorante do papel da ciência brasileira no desenvolvimento da nossa indústria aeronáutica, da indústria petroquímica e do agronegócio, assim como do papel da educação e do ensino das humanidades na formação dos trabalhadores.


Sua oposição generalizada e abstrata contra as universidades e os professores, se levada a cabo, produziria um colapso econômico e social sem precedentes, destruindo o longo esforço intergeracional de institucionalização da ciência e da educação brasileiras.

Em todas as áreas conflagradas pelo bolsonarismo é assim. Afinal, o que será que ele pretende?

Quer trocar o ensino de humanidades nas escolas e universidades pelos seminários de filosofia de Olavo de Carvalho? Quer trocar a produção jornalística de Folha, O Estado de S. Paulo e O Globo pelas manchetes sem apuração do site República de Curitiba? Quer trocar o monitoramento do desmatamento realizado pelas ONGs pelo autointeresse sem freios dos madeireiros? Quer trocar o robusto financiamento da Ancine que nos tem dado prêmios em Veneza, Cannes e Berlim pela produção de apenas filmes "cristãos"?

O lado positivo da negatividade antissistêmica é uma piada.

Pode ser que por trás da gritaria e da agitação exista algum bom senso e que, embora em público culpe instrumentalmente universidades, meios de comunicação, ONGs e artistas pelos problemas do Brasil, não pense realmente em destruí-los, já que não tem nada para colocar no lugar.

Nessa hipótese, o bolsonarismo seria uma espécie de parasita que precisa de um hospedeiro (as elites, o sistema) para se definir negativamente e colocar a culpa pelos fracassos. Como bom parasita, não deveria matar o hospedeiro.

Mas não podemos desprezar a hipótese de que o bolsonarismo seja a expressão de uma revolta selvagem, irresponsável e desgovernada. Ele não seria uma estratégia retórica para sustentar um grupo político, mas um verdadeiro impulso suicida.
Pablo Ortellado

Tios

Quem são? O que significam? Só os antropólogos fazem essas perguntas que todos sabem. Tios são os irmãos dos pais e ponto final.

Sim, mas os pais não precisam de mediadores para defini-los. Os pais têm um elo direto conosco: são genitores; os que nos inventaram biológica e moralmente. Para nós, aliás, o ideal é que o genitor seja também o pater — o pai. Se a mãe-geradora é uma só pessoa, tal não ocorre com o pai, que pode ou não ser o nosso genitor. Quando não há simultaneidade entre genitor pater, entramos — para dizer o mínimo — num espaço pantanoso...

Os antigos romanos diziam: “Mãe certa, pai incerto”, traduzindo o ideal de o genitor ser o pai, uma dimensão ausente como axioma no caso materno, de cuja barriga todos saímos. Mas quem lá colocou a semente?

Os romanos também usavam um mesmo termo — avunculus— para designar o tio materno e o avô chamado de avus. Avoengos e tios, exceto pelo diminuitivo, eram chamados pelo mesmo termo. Tal prática não é incomum, e eu mesmo testemunhei tal identificação nos grupos tribais jê-timbira que pesquisei, entre os quais é o tio materno (ou o avô chamado pelo mesmo termo de parentesco) é quem transmite o seu nome para o sobrinho (ou neto). E como nestas sociedades os nomes dão direitos a pertencer a grupos e associações, há uma identidade entre tios-avôs e sobrinhos-netos.

Aliás, em muitas sociedades o casamento preferido é com a filha do tio materno. O que seria uma prima é, em outros mundos culturais, uma “esposa” potencial. O tio vira um sogro, papel relacionado ao de cunhado entre nós...


Isso relativiza o papel de pai. Entre nós, a figura paterna tem prioridade como fundador de uma família, formando o triângulo consagrado constituído por pai, mãe e filho. E muitas sociedades monoteístas o simbolizam como o Criador do Mundo como no cristianismo.
Os avós e os tios um tanto marginalizados são figuras destacadas nas sociedades onde a transmissão de propriedade ocorre pelo lado materno. Nelas, quem tem autoridade é o tio materno, e não o pai. Entre nós, é o pai quem “dá a mão da sua filha em casamento”; em outros sistemas, os tios e os avôs é que, como se diz em antropologia, “doam” as mulheres. Sem tais trocas (pois quem doa, recebe) seríamos — como demonstrou Lévi-Strauss num estudo fundador — incestuosos, pois estaríamos recusando a reciprocidade e a comunicação. A essa altura, cabe rememorar o axioma: “Não nos casamos com nossas irmãs (ou filhas) confiando que você faça o mesmo; pois, deste modo, trocamos de irmãos e filhos, estabelecendo laços com outros grupos sociais.”

Escrevo essa introdução acadêmica motivado pela irreparável perda de minha tia Lucília Gonzaga da Matta, mulher de meu tio Mario; filho caçula de minha avó Emerentina e do meu avô Raul. Esse tio Mario que, com meus tios Silvio e Marcelino, foram formadores de minha persona social, compensando a silenciosa autoridade de meu pai. Foi no embalo triste do funeral que enxerguei o papel de tia e tio. Realmente, os tios (como os avôs) servem como amortecedores das proibições contidas nas paternidades. Mãe e pai têm tudo a ver com a fabricação e o cuidado do corpo, ao passo que o elo com tios e com os avoengos é crucial como um apadrinhamento para a vida fora do corpo (da nossa “alma” ). A constituição de nossa pessoa como uma entidade pública. Com o direito a escolher e ser livre.

Se o pai tem que manter com o filho uma relação permeada de respeito, tal não é o caso dos tios, que têm com os sobrinhos um laço mais solto e livre, conforme foi o meu caso.

Foram meus tios que me ensinaram a dançar e namorar. Foi deles que ouvi anedotas e histórias de sexo absolutamente ausentes na casa natal. Meus tios e alguns empregados foram básicos na minha educação sentimental. Hoje, sei como eles desafiaram os limites da figura do pai-genitor e, como ensinou Freud, castrador. Se o pai não fala, os tios revelam; se o pai nega; os tios oferecem o cigarro ou o copo de cerveja. Se o pai não contou jamais uma aventura ou mentira, os tios podem abusar dessas narrativas.

Tia Lucília não foi uma mulher comum. Além de esposa perfeita para um amazonense um tanto perdido em Niterói, ela era filha do grande dramaturgo (hoje lamentavelmente esquecido) Armando Gonzaga, autor de um conjunto notável de comédias nas quais tudo se passa entre casais, padrinhos e empregados. Entre os dilemas do viver melhor do que se pode ou deve; entre as motivações de uma sociedade que tem sérias dúvidas se o trabalho é maldição e o emprego público, uma dádiva divina. Lucília foi um bálsamo na vida de tio Mario.

E ele, por seu turno, foi um bálsamo na minha vida realizada, como todas as vidas, entre o profundo respeito pelo pai imediato e restritivo e as aventuras e intimidades consentidas pelos tios — essas figuras situadas entre a rua e a casa; entre os sagrados genitores e os amigos que nos levam às experiências sem as quais jamais seríamos seres humanos conhecedores da importância dos de fora — esses abençoados tios.

P.S.: Meu mentor, professor, brasilianista consagrado, Richard Moneygrand disse o seguinte: “O Brasil precisa de menos pais e mais tios”.

A mecânica da polarização

A maior parte dos votos nos Trump’s do mundo não são exatamente votos no “trumpismo”, que ninguém sabe definir o que é. São reações pós-traumáticas do senso comum quando, ainda em pleno gozo de sua saúde inata, é agredido pelos “pogroms conceituais” que as patrulhas liberal, hegemônicas nos “meios de difusão cultural da burguesia”, promovem recorrentemente.

Cada horda de inquisidores torturando um entrevistado para “provar” que uma frase infeliz define-o irreversivelmente como racista, misógino, homofóbico ou qual seja das marcações a ferro infamantes das últimas ordenações do misterioso oráculo planetário da “correção política” reafirma o voto reativo de todo aquele que, mesmo fazendo restrições às grosserias e estupidezes dele, disseram uma frase infeliz alguma vez na vida.

Cada malabarismo semântico para designar com novas composições de expressões ridículas aquilo que os Shakespeares e Camões de todas as línguas sabiam expressar desde sempre, com todas as nuances de conotação desejadas, para esconjurar preconceitos sentidos com preconceitos institucionalizados, incentiva o voto nevrálgico de todo sujeito que já superou o pensamento mágico e a crença no poder dos exorcismos.


Cada torção do braço dos fatos para impor como absolutas verdades apenas relativas; cada tentativa de ditar regras universais de comportamento pessoal ou enfiar o Estado fronteira adentro do círculo da intimidade da família; cada tentativa de obrigar deus e o mundo a ver o que não está lá ou a não ver o que obviamente está reassegura o voto pós-traumático de todos quantos recusam a condição de manada e insistem em aprender apenas observando o que de fato acontece. E o advento das ferramentas de internet que propiciam o disparo de respostas geradas no fígado antes da intervenção ponderada do cérebro acelerou vertiginosamente a marcha da insensatez, adicionando a esses ódios todos uma conotação pessoal.

O maior prejuízo da violência retórica não-lógica é que ela dispensa os contendores de elaborar propostas para o mundo real. Permite a cada um manter-se vago em tudo o mais desde que tome posição clara contra a estupidez do outro. E isso deixa inteiramente desassistidos os problemas verdadeiramente problemáticos.

No Brasil o ódio da direita da privilegiatura pela esquerda da privilegiatura, e vice- versa, bastam-se um ao outro num debate cada vez mais movido a bílis, o que dispensa os dois lados de discutir a única coisa que interessa, qual seja, a existência de privilégios de classe institucionalizados em pleno 3º Milênio, 240 anos depois do fim do feudalismo.

Nos Estados Unidos o ódio dos “liberal” pelos “conservadores”, e vice-versa, açulado por uma elite empanturrada para a qual ele é a melhor droga contra o tédio, dispensa os dois lados de discutir a única coisa que interessa, qual seja, que aceitar os termos dos “capitalismos de estado” na disputa pelo mercado global é permitir que sejam devoradas por dentro as democracias ocidentais pois enquanto os Sanders e os Trump’s se escoiceiam os Estados Unidos reais, levando o mundo de arrasto, afundam cada vez mais, de recorde em recorde de fusões de empresas, de volta na lógica dos monopólios que foram a base do poder dos reis e seus barões no passado e hoje são a dos donos dos estados bandidos e seus “empresários” amestrados em que se travestiram as ditaduras comunistas.

O único remédio concreto que historicamente se lhes deu foi o da reorientação antitruste da democracia americana a partir da virada do século 19 para o 20. “Make America great again” – ou o Brasil pela primeira vez – é recuperar a capacidade da sua economia de dar a cada cidadão a condição de conquistar com trabalho tudo que a vida pode oferecer e continuar mandando no Estado como lindamente mandou ao longo de todo o século 20. E isso se faz “desachinezando-se” o mercado de trabalho doméstico e forçando a ocidentalização do das chinas do mundo mediante a instituição de impostos contra produtos em que não estejam embutidos os custos de pesquisa e desenvolvimento, da dignidade no trabalho e das liberdades básicas do cidadão como trabalhador e como consumidor.

Não há muito que inventar mas há tudo a relembrar sobre os marcos fundamentais da luta da humanidade contra a opressão: 1) que tudo que quem nasce sem nada tem de seu é a sua capacidade de criar e de trabalhar, e que sem a garantia do direito de propriedade – intelectual inclusive – até isso lhe roubam; 2) que liberdade, para além do blábláblá conceitual onde todas as prisões com jeitinho podem ser acomodadas, é a de ser disputado por múltiplos patrões e fornecedores concorrendo pela sua preferência; 3) que democracia existe nas sociedades onde todo mundo sabe quem representa quem, todos são iguais perante a lei e, sendo assim, a maioria é que manda no governo; 4) que esse rearranjo da hierarquia só se materializa com o voto distrital puro e o direito do povo de retomar mandatos (recall), recusar leis vindas de cima (referendo) e propor as suas próprias (iniciativa).

O resto é só barulho para impedir você de pensar.