segunda-feira, 30 de janeiro de 2023

Brasil carrega a canalha

 


O dízimo golpista

‘Em nome do pai, dos filhos, dos espíritos e dos santos, amém’ é o enredo de 2023 da Gaviões da Fiel. As alas da escola reunirão na avenida espíritas, evangélicos, católicos e seguidores do candomblé e da umbanda. Contra a intolerância religiosa, a alegria da música e a irreverência carnavalesca.

No ano passado, a mesma Gaviões desfilou sob o tema “Basta!”, em referência direta aos desmandos na saúde, educação e política esperneados por aquele ex-líder da extrema direita. Dizia a letra do samba: A democracia alienada e a ditadura disfarçada/basta de hipocrisia/é hora da luta sair do papel.

E, logo depois das eleições presidenciais, a torcida da Gaviões protagonizou a mais linda reação aos golpistas, quando, a caminho do Rio, em razão de um jogo contra o Flamengo, rompeu os bloqueios dos caminhoneiros em avenidas de São Paulo. Os bolsonaristas em fuga ainda puderam ver pelo retrovisor, no alto de um viaduto, a faixa estendida pela torcida corintiana: “Somos pela Democracia”.

O samba pela concórdia religiosa chega à avenida depois da prisão de alguns pastores golpistas. Não apenas postaram a catilinária habitual contra as urnas eletrônicas, como invadiram os palácios no 8 de janeiro. Ancorados no dízimo arrecadado — aquele que não paga imposto —, ajudaram a destruir o patrimônio público.

Não é de hoje, sempre existiram maus religiosos disfarçados em nome da fé. Ainda sob tal escudo, perpetraram muitos crimes. Na eleição passada, o discurso de campanha escondeu a incompetência na gestão da pandemia — quase 700 mil vítimas — para vociferar o discurso fundamentalista de algumas denominações evangélicas contra religiões afro. A começar pela célebre ex-primeira dama Michelle Bolsonaro. Tudo depois ecoado por parlamentares tuiteiros de cabelo pintado.

O número de golpistas presos, tamanha a barbárie da tentativa de golpe, deixou em segundo plano a prisão e a conspiração urdida por pastores evangélicos, sob inspiração do capitão e de seus militares de pijama (nem todos). Sob o governo bolsonarista, os religiosos conservadores sentiram-se confortáveis na sedição contra a democracia, como na propagação de suas aversões. Releram a Bíblia de acordo com seus interesses financeiros e políticos. Com sucesso, incentivaram ataques aos terreiros de religiões afro e a seus seguidores.

Logo depois da tentativa de golpe do 8 de janeiro, ao postarem opiniões e vídeos para caracterizar como manifestações democráticas o que foi um ataque ao resultado das eleições, praticaram outras ações criminosas. Protegidos pelo lero-lero da liberdade de expressão, buscam destruir o Estado Democrático e difundir entre a população narrativas escusas sempre pintadas pelo verniz da fé.

Durante a pandemia, em lugar de pedir compras rápidas de vacinas ou de respiradores, para proteger seu rebanho, revelaram seus interesses ao lutar para que seus templos não ficassem fechados. Afinal, o dízimo on-line não se mostrava tão eficiente como a coleta presencial.

O Brasil de 2023 precisa não apenas discutir o papel dos militares na sociedade, sem medo de golpe ou de quarteladas, como deveria enfrentar a sedição empreendida pelos pastores de extrema direita. Por décadas, o catolicismo conservador se viu confrontado por reações de quem não comungava com atrasos civilizatórios — como a luta contra o divórcio ou a pílula anticoncepcional. Eram duros debates, porém não se colocava, tal como posto agora por setores evangélicos, preconceito religioso. Tratava-se de rejeitar a proverbial catequização, em nome da fé, de igualar a todos sob as mesmas crenças.

É ainda o caso de usar a liberdade de opinião para discursar malquerenças dentro dos templos contra os gays. Embora a homofobia seja considerada crime pela Constituição, os pastores brigam para mostrar seus púlpitos como espaços livres da lei geral. Assim, pela enviesada fé, a recorrência no preconceito.

A França, de maneira mais grave, enfrenta há alguns anos o que se avizinha no Brasil. Os imãs brigam para impor preconceitos e costumes estranhos à sociedade francesa. Também querem espaços onde valham seus preceitos islâmicos fundamentalistas — quase sempre contrários à secular tolerância legal religiosa do país, num evidente caráter de retrocesso civilizatório. Lá, como aqui, a extrema direita se esconde atrás das liberdades civis para exterminar conquistas como… a liberdade de opinião. Isso não é um samba.

A descoberta da Amazônia

Quando Márcio Souza, amazonense, escritor, diretor de teatro, crítico de cinema, autor do conhecido e festejado livro “Galvez, o Imperador do Acre”, foi convidado pela Universidade de Berkeley, na California, para ministrar curso sobre a Amazônia, ele descobriu que não havia uma única obra sobre história desta imensa e rica região. O professor organizou a primeira história geral da Amazônia numa edição de mimeógrafo para seus estudantes californianos.

Depois de várias versões, ele concluiu sua “História da Amazônia: do período pré-colombiano aos desafios do século XXI”, editora Record, 2019. A questão dos índios amazônicos, especificamente dos ianomanis, se insere dentro do desconhecimento generalizado da região. No entanto, pilantras de diversas nacionalidades perceberam meios de gerar renda. Por exemplo, ingleses se depararam, séculos atrás, com indígenas jogando esporte parecido com futebol na Amazônia ocidental. A bola quicava e tinha elasticidade. Descobriram a seringueira. Levaram sementes para a Malásia e destruíram importante atividade comercial da região.



Os índios sempre constituíram uma espécie de ser humano que não encontra explicação razoável nos chamados civilizados. O Marechal Candido Mariano da Silva Rondon andou pela selva fazendo contato com índios arredios. Mas o militar era uma ilha entre seus colegas. Ele criou a primeira reserva indígena. No entanto, o branco chamado civilizado não compreende e nem aceita povos sem propriedade privada ou moeda, que não negocia mercadorias. Além disso, a sabedoria de seus anciãos sabe misturar ervas que produzem curas milagrosas. Vez por outra, grandes laboratórios multinacionais recorrem a produtos amazônicos para produzir remédios que rendem milhões de dólares.

Se a Amazônia é uma grande área desconhecida dos brasileiros, os índios constituem uma incógnita ainda mais ignorada. Os exemplos do continente americano não são edificantes. Os norte-americanos fizeram da conquista do oeste um exercício de matança de índios. O general Custer dizia que “índio bom é índio morto”. Os argentinos também trataram de exterminar os povos originários desde os patagones até os fueguinos, da Terra do Fogo.

A alegada ignorância sobre o que se passa na Amazônia incentiva as práticas de uma terra sem lei. Vigora a opinião do mais forte, dos mais armados e daquele que tem mais dinheiro. O garimpo é atividade especial. Envolve risco, investimento importante, coragem e disposição para viver de maneira precária. Naturalmente produz riqueza. Ouro tem valor em qualquer lugar do mundo, em qualquer latitude, em qualquer situação. No Brasil e no exterior. Garimpeiro sabe do risco, mas conhece a extensão do ganho. Com uma vantagem: Ninguém paga imposto. E há muitos garimpos porque há muito ouro.

Os ianomanis estão localizados no norte de Roraima, ao redor do grande rio Uraricoera. A reserva fica próxima da BR 174, que liga Boa Vista a fronteira com a Venezuela. Estrada boa, asfaltada. Quem quiser, pode viajar por terra até Caracas. Já fiz essa aventura. Beleza de paisagem na grande savana, na Venezuela. A principal atividade econômica na região é ouro e a extração de diamantes. A riqueza da Amazônia é indescritível.

Aos olhos dos brancos e do finado governo Bolsonaro os índios atrapalham o progresso e o desenvolvimento da região. O resultado é este: mais de mil indivíduos daquela etnia foram internados em hospital de campanha da Aeronáutica, em Boa Vista, em situação crítica de saúde. Segundo informações do Ministério dos Povos Indígenas cerca de 570 crianças morreram nos últimos meses por doenças, fome ou contaminação por mercúrio, utilizado pelos garimpeiros para separar ouro de outros minerais.

O chanceler alemão Olaf Scholz virá a Brasília para conversar com o presidente Lula sobre integração do Mercosul com a União Europeia. O brasileiro falou por mais de uma hora sobre o mesmo assunto por telefone com Emmanuel Macron, presidente da França. O acordo é vantajoso para as duas partes. Mas envolve, em primeiro lugar, a preservação da Amazônia e dos povos indígenas. Os europeus agora se preocupam com a matéria por causa do alegado aquecimento do planeta. E se não obtiverem garantias neste assunto, não haverá acordo.

Os brasileiros, no governo Lula, descobriram a Amazônia, perceberam a catástrofe dos ianomanis e a vasta corrupção ocorrida no propalado apoio aqueles indígenas. Há uma corrente de interesses escusos que vai desde o guarda da FUNAI até o poderoso político eleito para supostamente defender a região. Não há mais argumentos para esconder a ignorância sobre o que ocorre no norte do território nacional.

Mata-'bicho'


Eles [indígenas] têm que se aculturar, não podem mais ficar no meio da mata, parecendo bicho.
Antonio Denarium (PP), governador de Roraima,

Brasil desperta para o genocídio dos yanomamis


Tanto as imagens de crianças yanomamis famintas quanto aquelas de sobreviventes dos campos de concentração nazistas envergonham os cidadãos, alemães ou brasileiros, surpresos, como se aquela realidade estivesse escondida. No caso alemão, a censura não permitia o conhecimento da realidade, no nosso caso, há décadas a imprensa denuncia, há quatro anos o governo se manifestava sobre o risco de os yanomamis proclamarem uma nação independente do Brasil. Havia estratégia ou ao menos o desejo de que houvesse uma limpeza étnica, para proteger a soberania nacional. Faz parte desta visão negar apoio sanitário, permitir que as terras yanomamis fossem ocupadas e que a água de seus rios contaminada.

Todos sabiam o que acontecia com os yanomamis, faltavam as fotos.


Da mesma forma, todos sabem o genocídio que há séculos se pratica contra os brasileiros pobres ao negar-lhes educação de qualidade. O ser humano tem corpo e mente: o genocídio pode ser com o assassinato de corpos, ou com o impedimento da prática cultural dos povos originários; ou a negação de escola na sociedade moderna, impedindo a vida plena por falta de emprego e renda. Por 350 anos, o Brasil cometeu genocídio contra os negros escravos, ao negar-lhes tudo; a partir de 1888 soltaram as algemas dos corpos, mas não libertaram os negros, nem os pobres brancos: para libertar é preciso ensinar a usar o mapa que orienta o solto na sua caminhada. Não demos o mapa para a vida contemporânea: escrever bem português, falar outros idiomas, ter noção de ciência, arte, história, geografia, conhecer as ferramentas do mundo, dispor de um ou mais ofício.

Desde a abolição da escravatura, estamos cometendo genocídio educacional, deixando os analfabetos e os alfabetizados sem educação necessária, sobrevivendo como se estivessem em uma câmara sem oxigênio, incinerando seus cérebros, no vácuo de conhecimento. Há alguns anos despertamos para o que ocorre na Amazônia, ao vermos florestas queimando, agora, para o genocídio contra os yanomamis: as fotos mostram ossos aflorando nos corpos, mas não mostra o cérebro de cada pessoa que vive sem saber ler.

Uma parte dos brasileiros continua vivendo na ignorância do genocídio cometido ao seu redor, por desrespeito aos povos originários ou negando escola de qualidade para que os brasileiros sem educação substituam os escravos com baixos salários. Faltam fotos mostrando o cérebro de quem não sabe ler e de cada excluído de escola com qualidade. Difícil entender que a foto de escola pública do presente é um retrato do país no futuro.

Por falta de foto, empresários, universitários, políticos e sindicalistas não se chocam com o genocídio educacional. Em grau diferente de maldade, toda criança sem escola de qualidade é um pequeno yanomami, e todos os outros brasileiros somos grandes genocidas. Porque sabemos o que acontece, mas não vemos as fotos do horror. Sabemos da realidade, mas a ignoramos por não a vermos fotografada.