segunda-feira, 29 de abril de 2024

Pensamento do Dia

 


‘Dias perfeitos’ e o trabalho modesto

Este artigo é um pequeno contrabando. Não costumo escrever sobre filmes, embora veja sempre um antes de dormir. Na maioria, são tão inexpressivos que me esqueço deles no dia seguinte.

Pensei em escrever sobre “Zona de interesse”, destacando a maneira como trata o nazismo. O turbilhão de notícias me fez esquecer. Agora é diferente. Desde quando li sobre o filme de Wim Wenders “Dias perfeitos”, supus que tinha algo a ver com minha experiência pessoal.

O filme conta a história de um lavador de privadas em Tóquio que vive momentos felizes em seu cotidiano. Já trabalhei em limpeza na Suécia e, apesar do trabalho repetitivo e da crônica dor do exílio, também vivi bons momentos. Essas reflexões valem para países como Suécia e Japão, onde há algum reconhecimento por esse tipo de trabalho e salários dignos.


Aproveitei uma dessas tardes maravilhosas de abril no Rio para ver a estreia de “Dias perfeitos”. Creio ter entendido um pouco o que Wim Wenders quis dizer com a história do faxineiro Hirayama(Koji Yakusho). Ele acorda todas as manhãs em sua pequena casa despojada e olha para o céu, reconhecido por estar vivo, num novo dia. Não tem móveis, apenas um tatame, onde dorme, e usa os cotovelos apoiados no chão para ler diante do abajur. Hirayama compra livros a US$ 1 e está lendo “Palmeiras selvagens”, de William Faulkner.

Depois de comprar o café na máquina da rua, entra no carro e segue ouvindo fita cassete. Lou Reed (“Perfect day”), Patti Smith fazem parte de sua coleção. Hirayama tem uma vida cultural interessante, e creio que isso é o complemento ideal para esse tipo de trabalho. Ele tem uma vantagem sobre os outros, jornalismo, política, medicina, detetives. Quando você deixa a vassoura, o balde, o pano, não precisa pensar mais nisso. Muitas profissões intelectuais invadem o cotidiano, perseguem a pessoa mesmo depois do expediente, sobretudo num tempo de redes sociais.

Hirayama é analógico. Quando recebe a sobrinha Niko, ela pergunta se a música que ouvem está no Spotify. Hirayama responde: onde fica essa loja? Ele leva uma pequena câmera no bolso, fotografa as árvores. A sobrinha mostra sua própria câmera, embutida no telefone celular. Ao lado da sobrinha, ele vive um momento que, creio eu, é uma chave da própria sabedoria oriental. Diante de um rio, param suas bicicletas, e Niko pergunta se não quer ver o rio desaguar no mar.

—Numa próxima vez — Hirayama responde.

Niko pergunta:

— Agora?

—Uma próxima vez, agora não é uma próxima vez.

Saem de bicicleta cantando alegremente, agora não é a próxima vez.

Essa imersão no presente é apenas uma das chaves. No lugar onde compra livros, a vendedora sempre diz uma frase interessante sobre o autor, quando ele faz sua escolha:

—Patricia Highsmith me ensinou a diferença entre medo e ansiedade.

Filha da irmã mais rica, a sobrinha de Hirayama pergunta por que ele não se dá bem com a mãe dela. Ele responde algo assim: “no mundo há muitos mundos, e às vezes não se conectam”.

Mais uma pequena indicação sobre o universo de Hirayama. Ao encontrar com um homem que lhe confessa estar com câncer terminal, Hirayama não comenta nada. Aliás, fala pouquíssimo. Diante da pergunta do homem —se as sombras superpostas ficam mais escuras —, Hirayama o chama para brincar de sombras superpostas e encontrar na prática a resposta. Nada sobre câncer ou morte, apenas uma pequena fração de vida e humor.

A experiência de combinar uma vida cultural com o trabalho modesto foi algo que me deu a sensação de realidade na história de “Dias perfeitos”. Ele ouve Patti Smith em “Redondo Beach”, eu a ouvia em “Because the night” e descansava lendo o New York Herald Tribune.

O final do filme de Wenders me devolveu para o fim de tarde de abril no Rio, não sem antes Hirayma se despedir ouvindo Nina Simone em “Feeling good”, uma canção que parece resumir suas manhãs:

— Pássaros voando alto, você sabe como me sinto/Sol no céu, você sabe como me sinto/Brisa soprando, você sabe como me sinto/É um novo amanhecer, um novo dia, uma nova vida para mim, yeah.

Relaxe!

Brasil! Selva!

Pelo que se vê na mídia, toda a expertise e o dinheiro de Elon Musk não lhe valem uma fala com algum sentido. Ele padece da mesma afecção linguística da ultradireita brasileira, cujo vocabulário político ativo, fora as narrativas mentirosas, resume-se a "liberdade". Isolada, a palavra não significa nada.

O mesmo drama transparece nas investigações do ataque do 8 de janeiro: nos relatos quase etnográficos sobre o famigerado acampamento dos insurretos salta à vista a escassez de palavras de ordem coerentes.

Reconfortaram-se um dia ao saberem que a esposa de um general, ícone do golpismo, em visita ao local, faria um discurso. E ela fez: "Brasil! Selva!". Curto, não grosso, sem narinas dilatadas nem olhar de ódio.

Mas enigmático: isoladas, essas duas palavras não explicam grande coisa. Não são "action-words", no sentido concreto de indução ao ato. Presume-se que faziam parte de um vocabulário próprio à movimentação. O nexo entre uma e outra estaria implícito na mente de cada um por sintaxe oculta, talvez por condensação, como no sonho.

Por mais disparatado que seja, o golpismo precisa de algum discurso. É o que se infere de pensadores do liberalismo americano para os quais um movimento desse calibre carece de novo jogo de linguagem, que faça o anterior parecer ruim. O golpe de 1964 manejava o vocabulário do anticomunismo (supremacia do mercado, silêncio civil, fervor cristão etc.), compartilhado com a matriz americana. Aos golpistas de agora, faltam consentimento (mídia, apoio externo) e linguagem.

Por outro lado, é considerável o desgaste do vocabulário político e moral. E se os valores se esvaziaram por anacronismo, perde força a linguagem da esquerda contra o reacionarismo, por falta de vigor histórico-social das palavras. Daí a insuficiência do arrazoado progressista frente à cacofonia insensata das redes sociais.

Insuficiente também frente ao código moral do Velho Testamento, com emoções de vingança, ódio e guerra aos supostos inimigos do Senhor. É a porta de entrada exitosa dos neopentecostais na vida política. É igualmente uma perspectiva de linguagem para a ultradireita, porque oferece uma linha bíblica de interpretação maleável para acolher chaves do autoritarismo antidemocrático como racismo religioso, homofobia, negacionismo científico e misoginia.

É fala com mais sintaxe do que semântica, isto é, mais conexão do que significado, num contexto delirante. Um discurso de apenas duas palavras não diz nada, mas pode ter poder injuntivo. Donde o segredo da ultradireita: se o ódio é surdo, a sua comunicação, semanticamente muda, faz economia de reflexão, diálogo e sentido. Afinal, como bem sabe Musk, o foguete do delírio não precisa desse combustível.

Médico americano testemunhou o desespero da fome em Gaza

O médico americano Sam Attar avalia que deixou parte de sua alma em Gaza.

Foi a parte dele que viu o sofrimento e não conseguiu virar as costas. A parte que agora ele não consegue esquecer.

Ele pode estar às margens do Lago Michigan em um dia nublado de primavera, vendo o vento criar ondas na água verde. E ao mesmo tempo está de volta lá, em meio ao calor e à morte.


Os rostos desse outro mundo estão com ele: Jenna, a garotinha traumatizada definhando, pálida como um fantasma em uma cama de hospital, enquanto sua mãe mostrava a Attar um vídeo no celular do último aniversário da criança. Lembranças de dias felizes antes do desastre.

Outra mãe, cujo filho de 10 anos acabara de morrer, também são sai de seus pensamentos.

"A mãe acabara de me dizer, com um olhar vazio e entorpecido no rosto, que ele havia morrido cinco minutos antes. A equipe tentava cobrir seu corpo com cobertores, mas ela simplesmente se recusava a permitir. Ela estava de luto, soluçando e ficou assim por uns 20 minutos, ela só não queria sair do lado dele."

Depois teve o homem de 50 anos, esquecido num quarto, após ter as duas pernas amputadas.

"Ele havia perdido seus filhos, seus netos, sua casa", lembra Attar.

"E ele estava sozinho, no canto deste hospital escuro, com vermes saindo de suas feridas e ele gritava: 'Os vermes estão me comendo vivo, por favor me ajude'. Esse foi apenas um de… não sei, simplesmente parei de contar, mas essas são as pessoas em quem ainda penso porque elas ainda estão lá."

Sam Attar é um homem sensível e atencioso, de 40 anos, filho de médicos, nascido e criado em Chicago e que trabalha como cirurgião no hospital Northwestern da cidade.

Enquanto esteve em Gaza, manteve diários em vídeo e filmou suas experiências.

Durante duas semanas, em março e abril – pela ONG Palestinian American Bridge – trabalhou em hospitais de Gaza que careciam desesperadamente de tudo, exceto pacientes gravemente feridos.

No dia em que entrou em Gaza desta última vez, foi imediatamente confrontado com a crise da fome.

"Fomos cercados por pessoas batendo nos carros, algumas pessoas tentando pular sobre os carros. Os motoristas… eles simplesmente entenderam. Eles não param porque, se parassem, as pessoas pulariam nos carros. Eles não estão tentando nos atacar. Estão apenas implorando por comida. Eles estão morrendo de fome."

Attar recorda suas experiências com calma, como seria de esperar de um homem treinado para deixar os pacientes à vontade.

Todos os dias havia uma pressão implacável para realizar uma triagem, decidindo quem poderia ser salvo, e para quem não havia mais esperança.

Pacientes deitados no chão do hospital cercados de sangue e bandagens descartadas, o ar repleto de gritos de dor e de parentes enlutados.

Não há como apagar tais horrores. Mesmo que você seja um médico altamente treinado com experiência anterior em zonas de guerra como Ucrânia, Síria e Iraque.

"Ainda penso em todos os pacientes de quem cuidei", diz ele.

"E em todos os médicos que ainda estão lá. Há um pouco de culpa e vergonha em sair porque há muito a ser feito. As necessidades são exasperadoras. E você deixa para trás pessoas que ainda estão lá e ainda estão sofrendo."

Em sua última viagem – a terceira dele a Gaza desde o início da guerra –, o médico americano se juntou à primeira equipe de médicos internacionais a trabalhar num hospital no norte de Gaza, onde a desnutrição é mais aguda.

A missão foi organizada pela Organização Mundial da Saúde (OMS), que alertou sobre a grave situação da fome na região.

Cerca de 30% das crianças com menos de dois anos sofrem de subnutrição aguda e 70% da população no norte de Gaza enfrenta o que a ONU chama de "fome catastrófica".

No mês passado, o chefe de Direitos Humanos da ONU, Volker Turk, acusou Israel de um potencial crime de guerra devido à crise alimentar em Gaza.

"A extensão das contínuas restrições de Israel à entrada de ajuda em Gaza, juntamente com a forma como continua a conduzir as hostilidades, pode equivaler ao uso da fome como método de guerra”, disse ele.

Israel nega e culpou a ONU e as agências de ajuda pela entrega lenta ou inadequada de suprimentos.

O governo israelense disse que os cálculos da ONU sobre a fome se basearam em "múltiplas falhas factuais e metodológicas, algumas delas graves".

O governo afirma ainda ter monitorado relatos na imprensa de que os mercados de alimentos em Gaza, incluindo no norte do território, tinham suprimentos suficientes.

"Rejeitamos categoricamente quaisquer alegações de que Israel esteja propositalmente matando de fome a população civil em Gaza", afirmou um comunicado da Coordenação de Atividades Governamentais nos Territórios (Cogat).

Sam Attar lembra-se da mulher de 32 anos que admitiu sofrer de desnutrição grave, com o filho, a mãe e o pai no quarto com ela.

Ela foi submetida a RCP – reanimação cardiopulmonar – mas não pôde ser salva.

"Eu tive que declarar a morte", diz Sam. A jovem mãe estava deitada num banco, com o braço esquerdo pendurado em direção ao chão, os olhos voltados para cima no momento da morte.

Do outro lado da sala, uma enfermeira consolou a mãe dela, que chorava.

Havia a menina, Jenna Ayyad, de sete anos, "apenas pele e ossos", cuja mãe esperava chegar ao sul, onde havia melhores instalações médicas disponíveis.

Jenna ficou traumatizada pela guerra e parecia extremamente desnutrida. Ela sofre de fibrose cística, o que dificulta a digestão.

Sua condição foi agravada pelas condições da guerra e ela também sofre de traumas. Nas imagens feitas por um cinegrafista da BBC, Jenna parece perdida e agora só fala com a mãe.

"O que posso fazer? Ela não pode ser tratada", disse Nisma Ayyad.

"O estado mental dela é muito difícil. Ela não responde nada quando alguém fala com ela. A situação dela é ruim e, como mãe, não posso fazer nada."

O doutor Sam Attar diz que, enquanto sua equipe fazia as malas para regressar ao sul de Gaza, a mãe de Jenna abordou-o.

"A mãe de Jenna veio até mim e disse: 'Pensei que íamos com você... O que está acontecendo? Por que você vai e nós vamos ficar?'"

Attar teve que explicar que o comboio para o sul só estava autorizado para entrega de combustível e alimentos e não para transporte de pacientes.

Mas antes de partir, Attar e seus colegas preencheram os documentos necessários para a transferência de Jenna.

Levaria dias, mas eles garantiriam que a papelada chegasse aos escritórios certos.

Quando o médico foi falar com a mãe de Jenna, outras mães notaram.

"O problema é que são quartos abertos e compartilhados, [com] talvez dez pacientes em um quarto. Então, quando as outras mães me viram conversando com ela, todas me cercaram."

Jenna foi transferida e agora está sendo tratada no hospital do International Medical Corps, perto de Rafah.

De acordo com estimativas da ONU do mês passado, a maioria dos mortos na guerra são mulheres e crianças: 13 mil crianças, 9 mil mulheres.

A guerra está agora no seu sétimo mês. As negociações para um cessar-fogo e a libertação de reféns estão paralisadas.

Todos os dias e todas as noites, os feridos e os desnutridos chegam aos poucos hospitais em funcionamento que restam. A OMS afirma que apenas dez dos 36 hospitais de Gaza ainda funcionam.

Viajar em Gaza pode ser muito perigoso para os trabalhadores humanitários.

Basta lembrar da morte de sete trabalhadores humanitários, incluindo três britânicos, quando os militares israelenses atacaram seu comboio com mísseis no dia 1° de abril.


Attar descreve filas de horas nos postos de controle israelenses.

"Muitas vezes esperamos de uma a quatro horas, dependendo de quanto tempo leva para os israelenses aprovarem a passagem, porque estão conduzindo operações militares."

O médico americano quer ver um esforço conjunto para levar mais ajuda ao norte de Gaza.

"O norte precisa de mais acesso, mais alimentos, mais combustível, mais água, estradas precisam ser abertas… E há tantos pacientes que precisam ser evacuados do norte para sul e o problema é que o sul também está lotado. Quer dizer, os hospitais aqui estão explodindo."

Ele vai voltar. Em breve, espera. Existem laços de amizade que o chamam.

O paramédico Nabil que Attar via todos os dias, trazendo os feridos para tratamento, até que ele próprio se tornou uma vítima que teve de ser retirada dos escombros pelos colegas. Ele está vivo, mas não poderá sair de Gaza.

O médico cuja filha foi morta, mas que teve a generosidade de confortar uma mãe cujo filho pequeno sofria com uma lesão cerebral causada por estilhaços de bomba.

E há os pacientes e suas famílias, que veem nos médicos, enfermeiros e paramédicos não apenas a possibilidade de ajuda prática, mas a luz constante da decência humana num lugar de horror e degradação.

Essa é a turma de Sam Attar. Todos eles.

Definhando

Quem passeia pela orla nem imagina como está abandonada a área central da cidade, antes referência de novidades, movimento, relíquias históricas, desenvolvimento econômico. Houve um tempo em que, sair do escritório até o café, era garantia de encontrar conhecidos, notícias da última liquidação, cardápios anunciando na calçada almoços tentadores, trabalhadores bem vestidos.

Hoje, o cenário é desolador. Velhos sobrados em ruínas, muitos sem telhados ou metade das janelas. Nas quinas de cada um, brotam plantas resistentes como samambaias, sobrevivendo com a ajuda da chuva e do vento. Não há o que roubar: a maioria das grades de metal, maçanetas, luminárias já foram surrupiadas para venda nos ferros-velhos. Gostaria de saber se ainda há restos dos forros de madeira e soalhos, entre os fantasmas. O que se vê de fora são apenas pombos e mato.


A Prefeitura promete desapropriar esses imóveis esquecidos e o jornal local publicou fotos de alguns deles. Fico imaginando a tristeza de quem já morou ou cresceu ali, diante de tanto descaso. São construções centenárias, algumas com o ano de nascimento na fachada e arabescos que não existem mais nas moradias atuais.

Gosto de idealizá-las restauradas, com a pintura inteira e sem manchas, jardim refeito, muros e portões completos. Sei que a tendência será colocá-las abaixo, a providência mais prática para criar edifícios e moradias populares, a fim de lá abrigar a população de menor renda. Com otimismo, podemos prever que a ocupação provocará a instalação de escolas e postos de saúde, restaurantes a preços populares, farta iluminação, policiamento constante, áreas de lazer.

Utopia não tem limite, mas tudo é moroso na administração pública e imóveis moribundos pedem pressa. O déficit de habitações e empregos, também. Dói passar pelas ruínas de grandes lojas de departamento, tapeçarias de luxo, confeitarias enfeitadas com murais, famosas casas de discos e instrumentos musicais… Tudo agora não passa de lembrança nas cabeças brancas das gerações mais antigas. As novas, atraídas pelos shoppings, desconhecem. Nem vão ao centro da cidade.

Lições de um prefeito escritor

O ambiente político fervilha nos anos de eleição. Apesar das imperfeições e disfuncionalidades do regime, o Brasil segue um calendário eleitoral que, a cada dois anos, intercala eleições gerais e eleições municipais.

A democracia tem uma virtude indiscutível: confere mandato com prazo determinado, assegurando alternâncias, exceto o faz-de-conta das nações que ameaçam constantemente os mecanismos da democracia liberal e ampliam globalmente os espaços do populismo autocrático.

Por aqui, há os que preconizam reformas que corrijam as distorções do nosso sistema político. Esqueçam. Diz o cancioneiro: “Meu amigo, se ajeite comigo e dê graças a Deus”. Vamos ao jogo. As regras estão estabelecidas e a vida real de 5.570 municípios será exposta com suas carências e dificuldades num quadro de brutal desigualdade.

Neste clima, milhares de candidatos vão às ruas, com o sem a falsificação do marketing, pedir e se mostrar merecedor do voto do eleitor.

A vida local da menor e mais pobre à mais rica e populosa cidade é o espaço das transformações reais, a desafiar a capacidade de gestores e legisladores. O julgamento popular será um passo adiante ou, para trás, dos projetos políticos/pessoais.


Sem dúvida, o mais complexo dos desafios está reservado para a governança, hoje elevada à categoria estratégica ao lado das questões sociais e ambientais. Ganhou lugar de destaque na composição da sigla internacional ESG.

Trata-se de conceito e experiência extremamente complexas. Exigem múltiplas capacidades, conhecimentos, estratégias e métodos. O importante: é possível aprender a fazer e melhorar a qualidade de vida dos cidadãos. No entanto, para além dos mecanismos modernos e inovadores, a gestão deve obrigatoriamente observar princípios que atravessam o tempo.

Neste ponto, recordo a passagem memorável da gestão municipal no Brasil do Prefeito Escritor (e admiravelmente transgressor) Graciliano Ramos (1892-1953), grande romancista e expoente da geração modernista de 30 que nos deixou 11 obras em vida, 10, póstumas e duas traduções, uma delas, A peste, de Camus.

Como Prefeito de Palmeira dos Índios (candidato único por consenso e 433 votos) imortalizou dois relatórios dirigidos ao Governador de Alagoas em 1929 (exercício do 28) e 1930 (exercício de 1929), recém-editados pela Record sob o título O prefeito escritor: dois retratos de uma administração, prefaciado pelo Presidente Lula. Neles, estavam as sementes do moderno conceito de accountability (prestação de contas e responsabilização).

Os relatórios revelam o escritor/transgressor, primeiro ao usar os verbos na primeira pessoa do singular com estilo conciso, sem enfeites, imitando, segundo ele, o ofício das lavadeiras que se dedicavam ao esforço repetido do fazer prosaico de, com esmero, lavar o tecido. A partir do exemplo, dizia: “Quem se mete a escrever devia fazer a mesma coisa. A palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como falso: foi feita para dizer”. A vocação de escritor derrotou o jargão burocrático.

Sempre iniciava os documentos prestando contas, minuciosamente, das receitas e gastos. “Consegui salvar em setenta dias 9:539$447 (Moeda da época, comparação 1 Real/100 Réis). É pouco. Entretanto fiz esforço imenso para acumular soma tão magra […] suprimi despesas e descontentei bons amigos e compadres que me fizeram pedidos […] de resto preciso efetuar uma economia considerável, não só para custear as despesas como para fazer face à dívida que a administração passada me legou”.

Apesar de tempos históricos distintos, no relatório, estão demonstrados sinais de austeridade, transparência, probidade, zelo com o dinheiro público (responsabilidade fiscal) e, nas entranhas da gestão pública, constatados os vícios do compadrio e do patrimonialismo.

Outro expressivo registro com realismo, humor e ironia: “A cobrança das contas atrasadas é impossível […] Isto se explica pelo fato de sermos todos, prefeitos, conselheiros, contribuintes, mais ou menos, compadres”.

Nascido em Quebrangulo (AL) e primogênito de uma numerosa família de 16 irmãos, o notável escritor escreveu seu primeiro conto, O pequeno pedinte, em 1904. A partir de então, a extensa bibliografia se inspirou na sua profunda sensibilidade para denunciar os contrastes sociais, expostos na miséria dos retirantes nordestinos donde emergia o infortúnio dos desvalidos a exemplo de Fabiano, protagonista de Vidas Secas.

O romance engajado e suas ideias renderam-lhe uma prisão em 1936, sob a acusação de ser comunista por quase um ano. Inocentado. As agruras do prisioneiro foi o tema do romance autobiográfico Memórias do Cárcere. Em 1945, filiou-se ao PCB.

Com modéstia, disse em um dos relatórios: “Não pretendo levar ao público a ideia de que meus empreendimentos tenham vulto. Sei perfeitamente que são miuçalhas”, mas com a firmeza de convicções das quais jamais se afastou, assim se referiu ao “pobre povo sofredor” que “quer escolas, quer luz, quer estrada, quer higiene”.

O exemplo e o sonho do prefeito escritor, alargados, atualizados, realizados, bem que podem servir como plataforma e compromisso dos candidatos que almejem um espaço de poder nas próximas eleições municipais.

Em quaisquer circunstâncias, fica a lição atemporal: o bom governo é o mais forte argumento em favor do prestígio e da resistência da democracia.