O médico americano Sam Attar avalia que deixou parte de sua alma em Gaza.
Foi a parte dele que viu o sofrimento e não conseguiu virar as costas. A parte que agora ele não consegue esquecer.
Ele pode estar às margens do Lago Michigan em um dia nublado de primavera, vendo o vento criar ondas na água verde. E ao mesmo tempo está de volta lá, em meio ao calor e à morte.
Foi a parte dele que viu o sofrimento e não conseguiu virar as costas. A parte que agora ele não consegue esquecer.
Ele pode estar às margens do Lago Michigan em um dia nublado de primavera, vendo o vento criar ondas na água verde. E ao mesmo tempo está de volta lá, em meio ao calor e à morte.
Os rostos desse outro mundo estão com ele: Jenna, a garotinha traumatizada definhando, pálida como um fantasma em uma cama de hospital, enquanto sua mãe mostrava a Attar um vídeo no celular do último aniversário da criança. Lembranças de dias felizes antes do desastre.
Outra mãe, cujo filho de 10 anos acabara de morrer, também são sai de seus pensamentos.
"A mãe acabara de me dizer, com um olhar vazio e entorpecido no rosto, que ele havia morrido cinco minutos antes. A equipe tentava cobrir seu corpo com cobertores, mas ela simplesmente se recusava a permitir. Ela estava de luto, soluçando e ficou assim por uns 20 minutos, ela só não queria sair do lado dele."
Depois teve o homem de 50 anos, esquecido num quarto, após ter as duas pernas amputadas.
"Ele havia perdido seus filhos, seus netos, sua casa", lembra Attar.
"E ele estava sozinho, no canto deste hospital escuro, com vermes saindo de suas feridas e ele gritava: 'Os vermes estão me comendo vivo, por favor me ajude'. Esse foi apenas um de… não sei, simplesmente parei de contar, mas essas são as pessoas em quem ainda penso porque elas ainda estão lá."
Sam Attar é um homem sensível e atencioso, de 40 anos, filho de médicos, nascido e criado em Chicago e que trabalha como cirurgião no hospital Northwestern da cidade.
Enquanto esteve em Gaza, manteve diários em vídeo e filmou suas experiências.
Durante duas semanas, em março e abril – pela ONG Palestinian American Bridge – trabalhou em hospitais de Gaza que careciam desesperadamente de tudo, exceto pacientes gravemente feridos.
No dia em que entrou em Gaza desta última vez, foi imediatamente confrontado com a crise da fome.
"Fomos cercados por pessoas batendo nos carros, algumas pessoas tentando pular sobre os carros. Os motoristas… eles simplesmente entenderam. Eles não param porque, se parassem, as pessoas pulariam nos carros. Eles não estão tentando nos atacar. Estão apenas implorando por comida. Eles estão morrendo de fome."
Attar recorda suas experiências com calma, como seria de esperar de um homem treinado para deixar os pacientes à vontade.
Todos os dias havia uma pressão implacável para realizar uma triagem, decidindo quem poderia ser salvo, e para quem não havia mais esperança.
Pacientes deitados no chão do hospital cercados de sangue e bandagens descartadas, o ar repleto de gritos de dor e de parentes enlutados.
Não há como apagar tais horrores. Mesmo que você seja um médico altamente treinado com experiência anterior em zonas de guerra como Ucrânia, Síria e Iraque.
"Ainda penso em todos os pacientes de quem cuidei", diz ele.
"E em todos os médicos que ainda estão lá. Há um pouco de culpa e vergonha em sair porque há muito a ser feito. As necessidades são exasperadoras. E você deixa para trás pessoas que ainda estão lá e ainda estão sofrendo."
Em sua última viagem – a terceira dele a Gaza desde o início da guerra –, o médico americano se juntou à primeira equipe de médicos internacionais a trabalhar num hospital no norte de Gaza, onde a desnutrição é mais aguda.
A missão foi organizada pela Organização Mundial da Saúde (OMS), que alertou sobre a grave situação da fome na região.
Cerca de 30% das crianças com menos de dois anos sofrem de subnutrição aguda e 70% da população no norte de Gaza enfrenta o que a ONU chama de "fome catastrófica".
No mês passado, o chefe de Direitos Humanos da ONU, Volker Turk, acusou Israel de um potencial crime de guerra devido à crise alimentar em Gaza.
"A extensão das contínuas restrições de Israel à entrada de ajuda em Gaza, juntamente com a forma como continua a conduzir as hostilidades, pode equivaler ao uso da fome como método de guerra”, disse ele.
Israel nega e culpou a ONU e as agências de ajuda pela entrega lenta ou inadequada de suprimentos.
O governo israelense disse que os cálculos da ONU sobre a fome se basearam em "múltiplas falhas factuais e metodológicas, algumas delas graves".
O governo afirma ainda ter monitorado relatos na imprensa de que os mercados de alimentos em Gaza, incluindo no norte do território, tinham suprimentos suficientes.
"Rejeitamos categoricamente quaisquer alegações de que Israel esteja propositalmente matando de fome a população civil em Gaza", afirmou um comunicado da Coordenação de Atividades Governamentais nos Territórios (Cogat).
Sam Attar lembra-se da mulher de 32 anos que admitiu sofrer de desnutrição grave, com o filho, a mãe e o pai no quarto com ela.
Ela foi submetida a RCP – reanimação cardiopulmonar – mas não pôde ser salva.
"Eu tive que declarar a morte", diz Sam. A jovem mãe estava deitada num banco, com o braço esquerdo pendurado em direção ao chão, os olhos voltados para cima no momento da morte.
Do outro lado da sala, uma enfermeira consolou a mãe dela, que chorava.
Havia a menina, Jenna Ayyad, de sete anos, "apenas pele e ossos", cuja mãe esperava chegar ao sul, onde havia melhores instalações médicas disponíveis.
Jenna ficou traumatizada pela guerra e parecia extremamente desnutrida. Ela sofre de fibrose cística, o que dificulta a digestão.
Sua condição foi agravada pelas condições da guerra e ela também sofre de traumas. Nas imagens feitas por um cinegrafista da BBC, Jenna parece perdida e agora só fala com a mãe.
"O que posso fazer? Ela não pode ser tratada", disse Nisma Ayyad.
"O estado mental dela é muito difícil. Ela não responde nada quando alguém fala com ela. A situação dela é ruim e, como mãe, não posso fazer nada."
O doutor Sam Attar diz que, enquanto sua equipe fazia as malas para regressar ao sul de Gaza, a mãe de Jenna abordou-o.
"A mãe de Jenna veio até mim e disse: 'Pensei que íamos com você... O que está acontecendo? Por que você vai e nós vamos ficar?'"
Attar teve que explicar que o comboio para o sul só estava autorizado para entrega de combustível e alimentos e não para transporte de pacientes.
Mas antes de partir, Attar e seus colegas preencheram os documentos necessários para a transferência de Jenna.
Levaria dias, mas eles garantiriam que a papelada chegasse aos escritórios certos.
Quando o médico foi falar com a mãe de Jenna, outras mães notaram.
"O problema é que são quartos abertos e compartilhados, [com] talvez dez pacientes em um quarto. Então, quando as outras mães me viram conversando com ela, todas me cercaram."
Jenna foi transferida e agora está sendo tratada no hospital do International Medical Corps, perto de Rafah.
De acordo com estimativas da ONU do mês passado, a maioria dos mortos na guerra são mulheres e crianças: 13 mil crianças, 9 mil mulheres.
A guerra está agora no seu sétimo mês. As negociações para um cessar-fogo e a libertação de reféns estão paralisadas.
Todos os dias e todas as noites, os feridos e os desnutridos chegam aos poucos hospitais em funcionamento que restam. A OMS afirma que apenas dez dos 36 hospitais de Gaza ainda funcionam.
Viajar em Gaza pode ser muito perigoso para os trabalhadores humanitários.
Basta lembrar da morte de sete trabalhadores humanitários, incluindo três britânicos, quando os militares israelenses atacaram seu comboio com mísseis no dia 1° de abril.
Attar descreve filas de horas nos postos de controle israelenses.
"Muitas vezes esperamos de uma a quatro horas, dependendo de quanto tempo leva para os israelenses aprovarem a passagem, porque estão conduzindo operações militares."
O médico americano quer ver um esforço conjunto para levar mais ajuda ao norte de Gaza.
"O norte precisa de mais acesso, mais alimentos, mais combustível, mais água, estradas precisam ser abertas… E há tantos pacientes que precisam ser evacuados do norte para sul e o problema é que o sul também está lotado. Quer dizer, os hospitais aqui estão explodindo."
Ele vai voltar. Em breve, espera. Existem laços de amizade que o chamam.
O paramédico Nabil que Attar via todos os dias, trazendo os feridos para tratamento, até que ele próprio se tornou uma vítima que teve de ser retirada dos escombros pelos colegas. Ele está vivo, mas não poderá sair de Gaza.
O médico cuja filha foi morta, mas que teve a generosidade de confortar uma mãe cujo filho pequeno sofria com uma lesão cerebral causada por estilhaços de bomba.
E há os pacientes e suas famílias, que veem nos médicos, enfermeiros e paramédicos não apenas a possibilidade de ajuda prática, mas a luz constante da decência humana num lugar de horror e degradação.
Essa é a turma de Sam Attar. Todos eles.
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