terça-feira, 21 de janeiro de 2025

Projeto por concluir

Todos os anos exterminamos comunidades indígenas, milhares de hectares de florestas e até inúmeras palavras das nossas línguas. A cada minuto extinguimos uma espécie de aves e alguém em algum lugar recôndito contempla pela última vez na Terra uma determinada flor. Konrad Lorenz não se enganou ao dizer que somos o elo perdido entre o macaco e o ser humano. 

Somos isso, uma espécie que gira sem encontrar o seu horizonte, um projeto por concluir. Falou-se bastante ultimamente do genoma e, ao que parece, a única coisa que nos distancia na realidade dos animais é a nossa capacidade de esperança. 

Produzimos uma cultura de devastação baseada muitas vezes no engano da superioridade das raças, dos deuses, e sustentada pela desumanidade do poder econômico. Sempre me pareceu incrível que uma sociedade tão pragmática como a ocidental tenha deificado coisas abstratas como esse papel chamado dinheiro e uma cadeia de imagens efêmeras. Devemos fortalecer, como tantas vezes disse, a tribo da sensibilidade.
José Saramago

Homem vale mais

A política é desumana, porque dá ao homem o mesmo valor que uma vírgula em uma conta. Eu não sou um homem político, justamente porque amo o homem. 
João Guimarães Rosa

Quem poderá deter Donald Trump?

Logo no início de seu mandato, Jair Bolsonaro nomeou José Salim Mattar para o recém-criado cargo de secretário Especial de Desestatização. Fundador da maior locadora de automóveis da América Latina, o empresário se dizia um defensor das ideias liberais e com o tempo se converteu num dos principais doadores de campanha do Brasil - em 2022 ele aportou R$ 2,9 milhões do próprio bolso na eleição, a maioria para candidatos de direita.

A ideia do superministro da Economia, Paulo Guedes, de trazer um empresário de sucesso para comandar a secretaria responsável pelas privatizações era superar as resistências da burocracia, imprimindo ao processo o ritmo e a eficiência próprios do setor privado. Com a venda de estatais e de imóveis da União, Guedes esperava gerar R$ 2 trilhões de caixa até o final do mandato.

Vinte meses depois de tomar posse, contudo, Salim Mattar apresentou sua carta de demissão. Num dos últimos atos de sua fugaz passagem pelo setor público, o dono da Localiza apresentou num powerpoint o fluxograma do processo para a venda de estatais - um emaranhado de caixinhas, cada uma representando um órgão diferente, dentro das quais emergia uma gincana de pareceres jurídicos, avaliações econômico-contábeis e variadas exigências regulatórias e autorizações legislativas.

Acostumado a mandar e desmandar em sua companhia, o empresário sucumbiu diante dos ritos do serviço público, regidos pelos princípios da legalidade, da impessoalidade e da transparência.

Ao tomar posse como o 47º presidente americano, Donald Trump retorna à Casa Branca trazendo como uma das principais novidades a criação do Departamento de Eficiência Governamental, uma espécie de ministério (embora deva funcionar mais como um conselho) destinado a eliminar despesas e regulamentações entendidas como desnecessárias. Para conduzir o órgão, Trump anunciou o empresário e político Vivek Ganapathy e ninguém mais, ninguém menos, que Elon Musk, o homem mais rico do mundo.

Nos últimos anos, Musk se aproximou de Trump e apoiou o Partido Republicano com doações eleitorais que, segundo apuração do jornal Washington Post, passaram de US$ 277 milhões. Com negócios multibilionários nas áreas de inteligência artificial (OpenAI), veículos elétricos (Tesla), exploração espacial (SpaceX) e redes sociais (X), são claros os interesses do empresário sul-africano em estreitar laços com o mandachuva do Salão Oval da Casa Branca.

Por seu turno, ao trazê-lo para sua equipe de governo, Trump acredita na mística de Midas de Elon Musk. Embora herdeiro de uma das famílias mais ricas da África do Sul, Musk multiplicou sua fortuna com inovações disruptivas que, na visão do velho-novo presidente americano, serão fundamentais para reduzir de forma drástica o crônico déficit fiscal do governo e extinguir normas e exigências burocráticas que, na sua visão, são obstáculos à prosperidade do país. Nos “cálculos” de Musk, o novo órgão seria capaz de gerar uma economia de US$ 2 trilhões com o corte de desperdícios, o fechamento de agências governamentais e a demissão de servidores públicos ociosos.

O resultado das eleições americanas veio acompanhado de grandes expectativas, para seus apoiadores e fãs, e muitos temores da parte de todos que não compactuam com suas ideias. Afinal, Trump não apenas volta ao comando da maior potência econômica, bélica e tecnológica do globo, como vem acompanhado de maiorias do Partido Republicano na Câmara e no Senado, além do domínio conservador na Suprema Corte.

Tamanho poder, aparentemente desprovido de contrapesos institucionais, é o que alimenta o ânimo dos trumpistas quanto a uma guinada radical à direita não apenas nos Estados Unidos, mas no mundo todo. No lado oposto, seus críticos questionam quem ou o que poderá deter Donald Trump em seu segundo mandato, contendo os potenciais estragos sobre as instituições multilaterais, os esforços contra o aquecimento global, a desigualdade econômica e a própria democracia.

Do ponto de vista político, há quem deposite suas esperanças na reação da sociedade americana caso Trump extrapole os limites do seu cargo, ou até mesmo numa perda da maioria republicana nas eleições de meio de mandato. Na economia, existem aqueles que acreditam que parte do empresariado americano irá se opor a medidas radicais que elevem os custos de seus negócios ou que gerem reações de outros países, como uma elevação drástica de sobretaxas contra importados (sobretudo chineses) ou uma política de deportação em massa que agrave desequilíbrios no mercado de trabalho.

E aqui voltamos a Elon Musk e aos vários outros empresários e executivos que Trump recrutou para postos-chave de sua gestão. Os paralelos com a experiência brasileira não se limitam às doações milionárias e aos trilhões prometidos de cortes nas despesas públicas. A presunção desses homens de negócios, combinada com o desconhecimento da máquina pública, pode emperrar muitas das ações pretendidas por Trump.

A ver se, também no setor público, Musk e seus colegas conseguirão transformar tudo em ouro - ou, como eles preferem, em criptomoedas.
 Bruno Carazza

Trump e a terra de Murici

Em uma cerimônia que será lembrada como o apogeu da reação política conservadora após anos de hegemonia progressista, o presidente empossado Donald Trump prometeu restaurar um mundo destinado aos fortes.

Segurança de fronteiras com uso das forças armadas, protecionismo comercial, expansão da indústria militar, exploração máxima de fontes de energia poluentes e não renováveis, transferência de recursos de outras nações para os Estados Unidos por meio de tarifas, o fim do politicamente correto (que está sendo classificado como uma antítese da liberdade de expressão), controle da inflação e consolidação de uma área de influência no hemisfério ocidental e, mais especialmente, no continente americano.


Foi um discurso direcionado para o que se chama de “América Profunda”, com forte carga emotiva e nostálgica. Mas também um texto com muitos – e duros – recados para o mundo.

Autolegitimado por um discurso de que o mundo se acostumou a obter vantagens injustas dos EUA, Trump sinalizou que a nova administração abrirá inúmeras frentes de renegociação de tratados e acordos comerciais, colocando os países na defensiva.

O “America First”, nesse sentido, é uma força real de motivação de políticas domésticas e de relações exteriores. Para dentro, capitaliza uma energia eleitoral incrível, que lhe deu maioria na Câmara e no Senado e, para fora, promove um novo balanço das forças a partir do abandono de padrões multilaterais e da negociação individual, que valoriza o peso desproporcional dos Estados Unidos.

Para obter mais vantagens, Trump quer fazer acreditar que seu país não tem um rival à altura. A ameaça de sobretaxar países que tentarem substituir o dólar nas suas transações comerciais – cogitado pelo grupo dos Brics –, passa o recado de que nações não alinhadas não têm a quem recorrer e que passar para a zona de influência da China não é uma opção.

Com a oposição enfraquecida, analistas têm escrito que os principais limites à ação de Trump devem vir de rachaduras internas e do resultado de escolhas erradas que podem ser feitas. Como grupo heterogêneo, haverá divergências entre aliados. Um exemplo é a fala de Elon Musk na qual a política migratória deve abrir exceções para trabalhadores altamente qualificados.

Outra discussão é se a combinação de restrição a imigração, a taxação das importações e estímulos dados à economia por meio do corte de impostos não ampliará o problema da inflação. Além disso, pode-se se perguntar se a atitude agressiva dos Estados Unidos em relação às suas áreas vizinhas não estimulará o expansionismo russo ou chinês.

Por ora, no entanto, essas rachaduras não aparecem e o que chama atenção é a imagem de concentração de poder. A presença de praticamente todos os chefes das Big Techs na posse foi a mais simbólica das fotografias tiradas na posse, mostrando uma corte tecnológica e poderosa em torno do Trump.

Curioso que isso ocorre ao mesmo tempo em que começa em Davos o Forum Econômico Mundial. Para inaugurar o encontro, foi divulgado o relatório anual de riscos que elegeu “desinformação e as notícias falsas” como a principal ameaça ao planeta, acima até da emergência climática.

Trata-se de um período conflituoso entre países, entre grupos sociais, empresas e governos. Não que outros tempos não o fossem, mas há uma diferença neste ciclo político inaugurado junto com Trump. Deixa-se de lado o véu típico das disputas diplomáticas e escancara-se que, hoje, o que vale e a regra da terra de Murici, onde cada um cuida de si.