domingo, 1 de março de 2020

O Mito e seu lugar de fala

A relação entre o discurso e a verdade é cada vez mais complexa. Na teoria, trabalha-se com três conceitos fundamentais: condições de validade (ou seja, se a afirmação é válida ou corresponde aos fatos); pretensões de validade (a narrativa ou os argumentos utilizados para o convencimento) e o resgate das condições de validade (quando o discurso é legitimado pelo ideal de fala e como tal, apesar de imposto unilateralmente, obtém certo consenso). Se na filosofia lidar com a verdade é um assunto complexo, nas redes sociais então nem se fala. A verdade morre e ressuscita todos os dias, de diferentes maneiras, num embate cujo desfecho nem sempre é o melhor para a sociedade. A opinião pública se forma a partir do choque de versões, no qual o contraditório acaba sendo o meio mais eficaz de aproximação da realidade.

Nessa guerra de informação, a tropa de elite é formada pelos jornalistas profissionais, cuja relação com a política é quase inseparável. Há cerca de 100 anos, numa palestra antológica (“A política como vocação”), o sociólogo alemão Max Weber destacou que os jornalistas pertencem a uma espécie de “casta de párias” e que “as mais estranhas representações sobre os jornalistas e seu trabalho são, por isso, correntes”. Ao discorrer sobre o mundo da política, o papel da imprensa e as vicissitudes do jornalismo, dizia a que a vida do jornalista é muitas vezes “marcada pela pura sorte” e sob condições que “colocam à prova constantemente a segurança interior, de um modo que muito dificilmente pode ser encontrado em outras situações”: “A experiência com frequência amarga na vida profissional talvez não seja nem mesmo o mais terrível. Precisamente no caso dos jornalistas exitosos, exigências internas particularmente difíceis lhe são apresentadas. Não é de maneira alguma uma iniquidade lidar nos salões dos poderosos da terra aparentemente no mesmo pé de igualdade (…) Espantoso não é o fato de que há muitos jornalistas humanamente disparatados ou desvalorizados, mas o fato de, apesar de tudo, precisamente essa classe encerra em si um número tão grande de homens valiosos e completamente autênticos, algo que os outsiders não suporiam facilmente”.

Grandes mulheres também, diria Max Weber, nos dias de hoje, porque há 100 anos o jornalismo não era uma profissão majoritariamente feminina, como agora acontece; muito pelo contrário, havia poucas mulheres nas redações. Mesmo assim, sobrevivem ainda o machismo, a misoginia e o assédio sexual e/ou moral, em todos os níveis de relações de poder, às vezes até nas redações. É óbvio que estou contextualizando o embate entre o presidente Jair Bolsonaro e a jornalista Vera Magalhães, colunista do Estado de São Paulo que divulgou mensagens de WhatSApp do presidente da República em apoio às manifestações contra o Congresso e o Supremo Tribunal Federal (STF), convocadas para 15 de março.


Diariamente, Bolsonaro se relaciona com os jornalistas tratando-os como “párias”, ao sair do Palácio do Alvorada. Suportar essa situação para qualquer um humilhante faz parte das agruras da profissão, da mesma forma como aspirar gás lacrimogêneo na cobertura de manifestações e correr o risco de ser vítima de uma bala perdida nas reportagens policiais. Bolsonaro coleciona agressões verbais a jornalistas, como as recentes declarações misóginas contra Patrícia Campos Mello. Volte e meia, ofende um colega numa coletiva. Suportar esse tipo de agressão não faz parte dos manuais de redação. Não existe um comportamento padrão para isso, a reação depende de cada um. No caso mais recente, porém, Bolsonaro colidiu com “Sua Excelência, o fato”, como diria Ulysses Gumarães, numa situação na qual se contrapôs ao Congresso, ao Supremo e à Constituição de 1988. Perdeu! Vera validou o que disse com três vídeos compartilhados pelo próprio Bolsonaro.

A “mimesi” de Bolsonaro nas redes sociais faz parte da construção do “Mito”. É uma imitação da realidade, não uma reprodução. A mimesi ocorre quando a ação humana é representada de forma melhor (tragédia e epopeia) ou pior (comédia) do que a realidade. É uma representação em torno do mito, ou seja, da ação, que deve seguir sempre os critérios da verossimilhança. O mito é caracterizado por um conjunto de ações escolhidas e organizadas, sua construção se remete a algo que poderia acontecer e não ao que aconteceu.

Bolsonaro construiu o Mito a partir de um “lugar de fala” que não é a Presidência da República, mas o universo de origem de sua candidatura. Procura manter um eleitorado cativo, com perfil originário de suas eleições para a Câmara, mas agora nacionalizado: militares, policiais, milicianos, caminhoneiros, taxistas, ruralistas, pentecostais, ultraconservadores e reacionários. Em consequência, aparta a autoridade constituída — a Presidência — do carisma do “Mito” e se isola politicamente. Ocorre que um determinado mito pode ser episódico (são os piores) e fruto da surpresa (emoção causada por fatos inesperados). Isso depende da percepção do espectador, não depende, por exemplo, de haver um único herói na trama. Na tragédia, como na sua campanha eleitoral, o mito se forma pela peripécia e o reconhecimento; na comédia, porém, acaba desconstruído. É o que pode acontecer com Bolsonaro na Presidência quando briga com os fatos.

A democracia, assim como a civilização, nunca está dada

Visitei o bunker há oito anos, quando morei aqui pela primeira vez. Voltei agora, para acompanhar um amigo que veio passar uma semana de férias em Berlim. A guia das onze e meia é uma menina sabida na história do edifício: “Um bunker é feito para estar debaixo da terra. Então, por que este está na superfície, exposto? E por que tem cornijas e janelas renascentistas na fachada?”.

Ela explica que as janelas são falsas e que, como as cornijas no alto do prédio e a planta baixa inspirada numa obra-prima da arquitetura renascentista – a Villa Rotonda, desenhada por Andrea Palladio, nos arredores de Vicenza –, fazem parte do plano nacional-socialista de reconstruir Berlim à imagem de Roma, e de rebatizá-la Germânia.

A apropriação espúria de formas que na origem tinham a ver com valores humanistas serve de fachada para o pior dos mundos. Com paredes de dois metros de espessura e laje de cinco, o bunker foi construído com trabalho escravo, em 1942, para ser indestrutível, invencível, eterno. E se está visível, é porque é uma provocação.


Enquanto a guia explica os planos do nazismo para a eternidade, do outro lado do mundo dois homens discutem planos mais imediatos dentro de um carro.

“Não vou sair nem pelo caralho. Tá cheio de jornalista lá fora.”

“Vai ter que sair. Que fobia de jornalista é essa agora?”

“Fobia é a tua mãe! Que é que eu digo pra eles, porra?”

“Conta uma das suas. A claque de idiotas está aí pra rir.”

“E se me perguntarem...”

“A gente combinou: diz um absurdo qualquer, o maior absurdo de todos, uma coisa que obviamente não faça sentido. Segue a tática da provocação. Deu certo até agora. Continua invertendo o jogo, repete as acusações deles, a teu favor. Acusa teus inimigos dos crimes da tua família.”

“Não sei se você notou, mas o cerco está se fechando, eles estão chegando mais perto dos fatos.”

“Quantas vezes eu vou ter que repetir que não existe fato, cada um tem o seu?! E, de mais a mais, tem gente cuidando dos fatos pra você. Ou não tem? Você só precisa inventar mentiras sobre quem te acusa de mentiroso. Insinua e xinga. Acusa de criminoso quem descobre o teu crime. Deixa os caras exaustos. Põe isso na cabeça. Não sei quem foi o apressadinho que disse que mentira tem perna curta. É porque não sabia usar, não tinha método. Eles não te escolheram? Continua surfando no oportunismo deles. Tão topando tudo. Pra eles é melhor fingir que não veem. Agora abre a porta, vai lá e diz a maior merda de todas. Basta repetir o que te consagrou. O atestado de burrice é deles, não teu. Aproveita a tua hora. Arrasa!”

Nos corredores do bunker, a guia diz que a finalidade da fachada não é esconder, mas escancarar. O disfarce é só uma perversão. O bunker foi construído na superfície. Sua visibilidade é conspícua. Se está decorado com motivos renascentistas falsos, é para inverter os sinais. O bunker é uma provocação não só aos inimigos do regime mas também aos que o apoiam. Ele é a expressão arrogante da falência dos princípios humanistas, de valores como verdade, justiça, razão e honestidade; a retórica do combate à corrupção e ao mal transformada em veículo para a instalação da barbárie.

No meio do labirinto, a guia diz que o fascismo é um buraco negro onde já não existem ideias fora do lugar (nada é o que é, tudo se explica à força). E que não há fascismo sem autoengano. A democracia, assim como a civilização, nunca está dada. As leis dependem dos homens que as aplicam. É preciso defendê-las das forças contrárias, que estão sempre à espreita, são permanentes e representadas pelos próprios homens.

Antes de sairmos, ela arremata que, por ser a consagração da licença para matar no lugar da verdade, da justiça e da razão, o fascismo também é sempre uma forma de suicídio coletivo.

Uma semana depois, do outro lado do mundo, num almoço de família, dois jovens advogados ligados aos bancos e ao mercado financeiro – gente em princípio racional, formada nas melhores universidades americanas – rebatem o primo que acaba de voltar de Berlim e de um inverno com temperaturas de até 14 graus. Dizem que, a rigor, não se pode falar em aquecimento global.

É a primeira vez que dizem isso. Tentam convencê-lo de que é uma narrativa com motivos ideológicos. Porque admitir a parte do homem no aquecimento global seria como aceitar que eles próprios tivessem votado num projeto fascista de governo, o que é impossível. Eles riem, brindam e perguntam se o primo entendeu o tamanho do absurdo.
Bernardo Carvalho

Uma 'pedalada social'?

Mais de 5 milhões é o número de brasileiros que aguardam na fila de pedidos para ter acesso aos programas sociais do governo e benefícios previdenciários. São 1,379 milhão de pessoas nos bancos do INSS e 3,621 milhões esperando por uma resposta do programa Bolsa Família.

A crise do represamento das concessões é um problema social de extensa gravidade e com enorme consequência para o País. Não só no curto prazo. As crianças mais novas, os idosos e as pessoas com deficiência de baixa renda, aquelas mais miseráveis, são os mais atingidos pelo colapso no gerenciamento da fila.

Era de se esperar, portanto, que as autoridades brasileiras estivessem mobilizadas num gabinete de crise para encaminhar uma solução para mitigar o problema diante das cobranças do Ministério Público e do Tribunal de Contas da União.

Ao contrário, não se vê nenhuma autoridade empenhada verdadeiramente em assumir a liderança da condução do processo. Há 44 dias (é isso mesmo), o governo anunciou que iria contratar até 7 mil militares da reserva das Forças Armadas para auxiliar no atendimento das agências do INSS.


Em acordo fechado com TCU há algumas semanas, o governo anunciou que iria estender a contratação temporária para servidores aposentados do INSS. O fato é que o tempo passou e, até agora, nada da edição de medida provisória (MP) pelo presidente.

No Bolsa Família, a espera também continua. O novo ministro da Cidadania, Onxy Lorezzoni, prepara o redesenho do programa sem antes dar transparência aos dados sobre o seu enxugamento. A falta de transparência nos números é inaceitável.

O governo mente sobre os dados do programa. A resposta do novo ministro tem sido a de que o governo quer fazer do Bolsa uma importante ferramenta de construção de cidadania “com larga porta de entrada e mais larga porta de saída”.

Há a promessa de entregar mais de 200 mil concessões. Especialistas, porém, alertam que essa entrega resulta somente de um processo administrativo de cancelamentos expressivos, porem esporádicos. E que, portanto, não atenua o problema.

O governo teve de remanejar recursos do Orçamento para pagar o 13.º salário do Bolsa Família em dezembro – promessa eleitoral do presidente. A promessa foi cumprida à custa do represamento das novas concessões.

Como a fila do INSS continua, há uma “economia” temporária com o pagamento de muitos benefícios que já deveriam estar sendo feitos. Isso permite, no curto prazo, o remanejamento de recursos para financiar gastos de outras áreas. Uma hora essa conta vai aparecer. É uma bola de neve. A pergunta que fica: o governo está preparado para esse aumento de gasto mais à frente?

Os críticos do governo apontam que se trata de uma “pedalada social”. Técnicos do governo rebatem, porém, que não há conexão nenhuma com as famosas “pedaladas fiscais” da ex-presidente Dilma Rousseff.

Até agora, é certo que além de social, o represamento da fila é um problema orçamentário de grande complexidade.

O gargalo tem gerado um princípio de colapso na rede de assistência social de municípios, sobretudo os pequenos e médios. Sem o dinheiro do Bolsa Família, a população se vê forçada a bater à porta das prefeituras em busca de comida e outros auxílios. São os chamados benefícios eventuais, demandas que sobrecarregam as combalidas finanças das prefeituras.

Os eleitores nos locais mais precários do País muitas vezes não sabem que o problema parte de Brasília, do governo federal. Para eles, a culpa é do governo mais próximo. Em ano de eleições, seria essa uma estratégia meio tosca para mudar o mapa dos municípios e varrer os opositores?

Enquanto a crise da fila se agrava, governo e Congresso travam uma disputa sangrenta pelo dinheiro do Orçamento que compromete as solução dos problemas mais urgentes.

Moro miou

Diante do motim de 10 do 43 batalhões da Polícia Militar do Ceará, Sergio Moro, o "Tigre" de Curitiba, miou em Fortaleza. Ministro da Justiça e da Segurança Pública, Moro foi ao Ceará no sétimo dia do motim, sobrevoou teatralmente a cidade e disse o seguinte:

"Os policiais do país inteiro, não só do Ceará, são profissionais dedicados, que arriscam suas vidas, são profissionais que devem ser valorizados".

Falso. No país inteiro há policiais dedicados, mas ele estava em Fortaleza porque lá havia PMs amotinados, usando balaclavas, esvaziando pneus de carros e ameaçando colegas que trabalhavam. Do quartel do 3º Batalhão de Sobral partiram dois tiros que atingiram o senador Cid Gomes na sua coronelada pilotando uma retroescavadeira.

Moro já dissera que em Fortaleza havia um "movimento paredista da polícia do estado".

Falso. O que havia no Ceará era um motim de PMs. "Movimento paredista" havia sido a greve de 20 dias dos petroleiros. Os operários cumpriram a lei e não esvaziaram pneus de ninguém.


O ministro da Segurança Pública disse também que "não há uma situação de absoluta desordem nas ruas". No entendimento do "Tigre" de Curitiba, as coisas estavam "sob controle, num contexto relativamente difícil". Miau. Desde o início do motim haviam sido assassinadas 170 pessoas no estado, uma a cada hora.

Moro mandou a Força Nacional de Segurança para o Ceará e o presidente Jair Bolsonaro decretou uma operação de Garantia da Lei e da Ordem para o estado. Com essas medidas adequadas, o ministro da Segurança Pública podia pelo menos ter ficado calado.

Sua fala chegou ao limite da solidariedade com os amotinados. O ministro alinhou-se com um presidente da República que exibe uma biografia de amparo e silêncio diante dos motins do gênero. O cabo Sabino, tido como um dos líderes da rebelião, orgulha-se de ter organizado a primeira visita do deputado Jair Bolsonaro ao Ceará, em 2015. Ele é um exemplar do bolsochavismo.

A convocação de manifestações contra o Congresso e o Supremo Tribunal Federal reflete um projeto golpista recôndito na cúpula do bolsonarismo. Essa manobra relaciona-se com o uso da liberdade de manifestação para minar as instituições democráticas. Já os motins de PMs são movimentos saídos da base bolsonarista e indicam algo mais profundo. Relacionam-se com a quebra sistemática da ordem legal e da hierarquia militar.

Os amotinados colocam a anistia como primeiro item de sua pauta. Desde 1997 já foram concedidas anistias em pelo menos 22 estados e no Distrito Federal. A cada motim segue-se uma anistia e a cada anistia segue-se outro motim. Bolsonaro é o quinto presidente a fazer de conta que esse problema não existe.

No Ministério da Justiça, Sergio Moro pode ver os retratos de seus antecessores. Lá estão figuras como Miguel Seabra Fagundes, Milton Campos e Mem de Sá. Cada um à sua maneira soube deixar o cargo quando viu que as coisas iam mal. Lá estão também Francisco Campos, Luís Antônio da Gama e Silva e Alfredo Buzaid. Estes ficaram, no remanso das ditaduras do Estado Novo e do AI-5.

À diferença de todos eles, Moro é também ministro da Segurança Pública. Não precisava ter miado em Fortaleza.

Brasil de bonecos


Época de retrocesso

A retórica de Jair Bolsonaro e a omissão de Sergio Moro fizeram aumentar a ousadia dos invasores de terras indígenas. Na sexta-feira, um deputado serrou a corrente que protegia o território dos kinja em Roraima. No norte do estado, garimpeiros voltaram a levar máquinas pesadas para a reserva Raposa Serra do Sol.

Os criminosos têm atuado à luz do dia, sem medo de represálias da Funai ou da Polícia Federal. Em alguns casos, a crença na impunidade é tamanha que eles se sentem livres para filmar e divulgar as ações ilegais.


Foi o que fez o deputado estadual Jeferson Alves. Na sexta, ele convocou fotógrafos e cinegrafistas para registrar sua performance na BR-174. Diante das câmeras, ligou uma motosserra e destruiu o bloqueio que protegia a terra indígena Waimiri Atroari.

Há cerca de 40 anos, a rodovia é parcialmente fechada à noite para reduzir riscos de atropelamento. O trânsito permanece livre para ônibus, ambulâncias e caminhões com carga perecível. Mesmo assim, fazendeiros e empresários insistem em derrubar o bloqueio.

“Presidente Bolsonaro, é por Roraima, é pelo Brasil, não a favor dessas ONGs”, bradou Alves, exibindo a corrente rompida como um troféu. Na internet, o deputado se apresenta como um político “temente a Deus e aos princípios bíblicos”. Em dezembro, ele debochou da Justiça Eleitoral ao promover um show com sorteio de panelas, geladeiras e carro zero.

O clima de vale-tudo se estende a Raposa Serra do Sol, cuja demarcação foi combatida por Bolsonaro e pelo general Augusto Heleno. Depois de mais de uma década, a reserva voltou a ser invadida para a instalação de um garimpo ilegal de larga escala. Ouvido pela “Folha de S.Paulo”, o macuxi Edinho Batista de Souza vinculou o crime ao projeto do governo que libera a mineração em terras indígenas. No início de fevereiro, o senador bolsonarista Chico Rodrigues visitou a região para apoiar os infratores.

Em 2009, o Supremo Tribunal Federal confirmou a demarcação contínua de Raposa. Relator daquele processo, o ex-ministro Carlos Ayres Britto diz que o governo federal não pode continuar de braços cruzados diante das invasões. “A Constituição está sendo desrespeitada de forma petulante e inadmissível. A União tem o dever de sair em defesa das populações indígenas”, afirma.

Para o jurista, as ações do governo estão “em rota de colisão” com os direitos dos índios. “O presidente não tem demonstrado conhecimento de causa. É uma época de retrocessos”, lamenta.

Abençoado seja o motim


Paralisação no Ceará é ilegal, mas policial não pode ser tratado como criminoso
Sergio Moro, ministro da Justiça

É preciso que o país elimine todos os privilégios da nomenklatura, seja civil ou militar

O jornalista Hildeberto Aleluia, sempre atento aos interesses nacionais, nos enviou artigo escrito pelo major-brigadeiro Jaime Rodrigues Sanchez, sob o título “A Sucuri Marajá”, a propósito de recente decisão da Mesa do Senado, presidida por Davi Alcolumbre (DEM-AP), que teve a desfaçatez de assinar ato que amplia para 33 anos a idade máxima de permanência de filhos e enteados no Sistema Integrado de Saúde do Senado.

“Chega a ser repugnante a ganância e o despudor com que o Legislativo se apropria do erário e o desprezo que demonstra pelo cidadão que o elegeu”, diz o chefe militar.

No artigo, assinala o major-brigadeiro: “Vergonhosamente, o plano de saúde dos senadores é vitalício, como se o senador fosse um funcionário concursado, de carreira. Têm também esse direito ex-senadores, o suplente que permanecer no cargo por apenas 180 dias ininterruptos, bem como seus cônjuges e dependentes. Se esse período “ininterrupto” coincidir com as férias escolares parlamentar, desde que ele não deixe o cargo, bastarão apenas algumas semanas de trabalho, suficientes para garantir o plano de saúde pelo resto da vida”.

E acrescenta: “Esse dadivoso plano beneficia até quem perdeu o mandato por quebra de decoro ou desvios de dinheiro público. Uma vergonha! É também oferecida uma opção para os serviços de sua livre escolha, com ressarcimento de despesas, incluindo hospitais de “excelência”, no sentido amplo da palavra, como o Hospital Sírio-Libanês e o Hospital Israelita Albert Einstein”.

A revolta do major-brigadeiro é procedente. Mas ele deveria levar em consideração que os militares e seus dependentes também estão muito bem servidos em matéria de assistência médica, odontológica e até farmacêutica. Na verdade, tanto as famílias dos congressistas quanto às dos militares estão sendo claramente beneficiadas.

Senadores, ex-senadores e cônjuges descontam ou pagam R$ 280 mensais mensais, com mais para R$ 154 para cada filho e R$ 410 para pai ou mãe. Uma moleza, não é mesmo?

E os militares (da ativa, da reserva e pensionistas) também pagam quantias irrisórias, com o máximo de 3,5%. Se esse desconto for sobre o soldo ( não consegui descobrir), não chega a R$ 500 nas maiores patentes, para garantir a saúde da família inteira. Se for sobre a remuneração total, incluindo gratificações e adicionais, o desconto será de no máximo R$ 1.150 mensais, para o plano de saúde da família inteira de oficiais-generais. Mesmo assim, também é uma moleza, porque eles recebem cerca de R$ 30 mil mensais. incluidas as gratificações e adicionais.

O fato concreto é que estamos diante de privilégios concedidos à nomeklatura civil e militar, custeados com recursos públicos (do povo, portanto).

Quanto se lê um artigo violentíssimo como o assinado pelo major-brigadeiro, que até amaciei um pouco, percebe-se que as pessoas continuam raciocinando de forma corporativa, sem colocar em destaque o interesse nacional. E assim fica o roto falando mal do esfarrapado, como dizia o ditado antigo. Ou um privilegiado falando mal de outro, como é o caso.

Com toda certeza, o país precisa eliminar todos os privilégios. Mas quem se interessa?

No limiar de um terceiro erro

Qualquer que seja nossa avaliação sobre o momento atual, parece-me fora de dúvida de que estamos no limiar de importantes transformações em nossa identidade nacional — ou seja, na maneira pela qual nos vemos como povo.

Nessa linha de raciocínio, podemos dizer que nossa identidade nacional já passou por duas fases — duas versões, duas ilusões — e dois erros colossais, que nos deixaram no limiar de um possível terceiro grande erro. A primeira versão foi a ideia do “brasileiro pacífico”, da conciliação entre as elites políticas, da “cordialidade” entre as pessoas comuns e da inexistência de racismo. No essencial, essa “narrativa” tinha um claro sentido de bajulação ao ditador Getúlio Vargas, exaltado como fundador da nacionalidade, culminando numa concepção do poder central como um Estado poderoso, bondoso e paternalista.


Era um apelo à convergência num país fadado a se transformar profundamente assim que a democracia fosse restabelecida, os conflitos políticos se acirrassem, e sofrêssemos os impactos externos da guerra fria. Uma sociedade concebida pela maioria como quase estática, invulnerável a abalos de monta e avessa a movimentos de mobilização política contrários ao governo.

Precocemente envelhecida, a cultura da cordialidade cedeu lugar ao chamado nacional-desenvolvimentismo, um projeto lastreado materialmente na industrialização substitutiva de importações e ideologicamente no nacionalismo. Essa nova fórmula também fez certo sentido enquanto o modelo de crescimento induzido pelo Estado permaneceu crível. O golpe de misericórdia que a inviabilizou em definitivo foi a tentativa do governo Geisel de acelerar a industrialização com base num enorme endividamento externo, opção liquidada entre 1973 e 1979 pelos choques do petróleo e a abrupta elevação das taxas de juros às quais a dívida fora indexada.

A nação “cordial” e o “nacional-desenvolvimentismo” tinham dois pontos importantes em comum. Primeiro, imaginavam ser possível o desenvolvimento de uma nação que em nenhum momento pôs em prática um projeto vigoroso de educação básica e de capacitação técnica da mão de obra. Segundo, aferraram-se a um doentio anti-liberalismo, à ideia do Estado empreendedor, a uma hostilidade ao mercado e, não menos importante, ao autarcismo, quero dizer, à opção por uma economia fechada. Estes dois componentes estão aí bem à mostra, como os pés de barro do gigante que queríamos (ou queremos) ser.

O sabotador da República

E Messias está a trombetear a existência de tentativas rasteiras de tumultuar a República. Há de se concordar com ele e, claro, reagir com a firmeza e a força da lei que a circunstância exige, punindo os agitadores da vez. E quando a tal tentativa de desestabilização emana diretamente das mãos do ocupante da cadeira de mando do Planalto, o que fazer? Na situação em que o presidente em pessoa convoca manifestantes para irem às ruas contra os demais poderes, com uma pauta subversiva que pede o fechamento do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal, além da cassação ou prisão de suas lideranças, qual a resposta a dar? Jair Bolsonaro, aquele que governa testando, reiteradamente, quase toda a semana, os limites constitucionais, incorre abertamente em crime de responsabilidade. De novo e de novo e de novo, sem as devidas respostas a seus atos. Não é a primeira provocação/convocação dele nesse sentido, muito menos a primeira atuação como chefe de torcida a pedir o povo nas ruas para encurralar parlamentares e juízes. Ele usa corriqueiramente a tática chavista, com pendor autoritário de subversão da ordem, incitando as massas no cerco às instituições. O filme já foi visto e reprisado por essas platitudes latino-americanas. Sob o tacape do capitão reformado, a ditadura é um flerte nunca descartado. Ainda mais depois de sua unção a chefe de Estado. Do AI-5 ao culto a torturadores, até a negação das execuções nos porões do regime, o sobranceiro atrevimento do “mito” no campo do radicalismo foi por demais comprovado. Militantes pró-governo querem agora, com a benção e estímulo do mandatário, sitiar Legislativo e Judiciário. Todos se animaram depois que o próprio ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, general Augusto Heleno, hasteou a bandeira da autofornicação do “foda-se” em resposta ao que ele chamou de “chantagem” dos congressistas. À parte o linguajar chulo, o militar deveria ser instado a dar provas da referida chantagem, se é que ela realmente existiu e em que termos. Mas, ao invés disso, o comportamento do ministro quatro estrelas é endossado por um chefe cujo sonho maior é mandar sem as amarras dos demais poderes. Para constranger adversários, as redes sociais viraram armas preferidas dele e de todo o clã. Não existem mais dúvidas sobre as reais intenções da primeira família sobre o futuro dos Três Poderes. Anote o que disse o filho número três, Eduardo Bolsonaro, logo após papai cometer o desatino de estimular protestos. Declarou Dudu, se dirigindo a uma jornalista: “Se houvesse uma bomba H no Congresso, você realmente acha que o povo choraria?”. Foi ele o mesmo que calculou lá atrás a necessidade de contar apenas com “um soldado e um cabo para fechar o STF”. Viceja, não há como negar, uma vontade quase irrefreável da doutrina bolsonarista de implantar uma espécie de absolutismo bananeiro, típico de republiquetas de outrora. E assim seus pregadores escolhem, por vez, carnavalizar a democracia, como se não fosse ela uma das maiores conquistas civilizatórias da humanidade. O decano da Suprema Corte, Celso de Mello, pontuou que “a face sombria de um presidente que desconhece o valor da ordem constitucional” é típica de alguém que não está à altura do cargo que ocupa. Muitos já desconfiavam. A maioria está farta de saber. Ele não está à altura, mas pouco se faz para se mudar esse estado de coisas de tamanho deboche institucional. Líderes partidários, OAB e até membros das Forças Armadas se espantam, condenam, criticam. Meras queixas e alertas não controlam, entretanto, o ímpeto arbitrário do capitão. Para ele, não interessa o que os demais pensam. Lá dentro do seu íntimo, o verdadeiro mantra a movê-lo deve ser o do “eu acima de todos”. Perceba que não foi suficiente ao mandatário encarar tantos e tão variados protestos contra a sua figura nesses dias de folia do Momo. Qualquer um, normalmente, buscaria se preservar, optando por um recolhimento estratégico. Não Bolsonaro. Ele optou por dar gás à própria manifestação, encarregando-se de propagá-la. Quis uma algazarra de estimação para chamar de sua. Desprovido de princípios mínimos para um chefe da nação, ele parte ao papel de “black bloc” das redes digitais. Como assim? Não teria de ser ele o guardião da estabilidade? Qualquer um, em qualquer lugar do mundo, se perguntaria se isso é sério: um presidente agitador da turba. O risco nessa toada de ignorar seus desatinos como se fosse coisa de um mero bobalhão da corte é converter a anormalidade em ameaça concreta à ordem. Já aconteceu e nada garante que não volte a ocorrer. Esticando cada vez mais a corda e estocando ações e declarações que ferem a liturgia do cargo, Bolsonaro se deu ao desfrute da gozação. Virou boneco de Olinda, palhaço da Sapucaí e personagem de deboche dos comediantes. São uma tradição de muitos carnavais as manifestações populares em forma de crítica política, que aumentam por essa época. Sempre estiveram presentes em bloquinhos, alas de escola e nas fantasias dos foliões, como alternativa de reclamação bem humorada. Mas poucas vezes se viu algo parecido, tanto na dimensão como no foco caricatural concentrado em uma mesma figura. Bolsonaro atingiu o status de protagonista de enredo de escola de samba. Não de uma apenas, mas de inúmeras. No sambódromo do Rio, o desfile das agremiações – no evento celebrado como o maior espetáculo da Terra – trouxe ao menos sete delas, entre as maiores e mais tradicionais, atacando, questionando e repudiando decisões e escolhas do governo Bolsonaro, ainda nos seus tenros 14 meses de mandato. Feito inédito. Jamais tantas escolas, passistas nas ruas e sambistas engajados reclamaram tanto de um mandatário e de sua gestão. Talvez por isso mesmo ele sentiu-se à vontade para fazer o mesmo e partir à provocação. Errou feio.

Pensamento do Dia


Quando começará o trabalho da força-tarefa para reduzir as filas de aposentadorias?

O tempo vai passando, entramos aguardando que a força tarefa seja composta, treinada e entre em campo para reduzir as filas dos que aguardam a concessão de suas aposentadorias. A fila está crescendo desde novembro. Além dos 1 milhão e 500 mil requerimentos parados, mensalmente a espera cresce numa velocidade de 30 mil pedidos por mês. Surgem notícias, mas não se vê qualquer medida concreta para seleção de formação das equipes que provenientes do Exército e de aposentados do próprio INSS vão se empenhar para atender centenas de milhares de casos.

A solução não é tão simples: depende também da capacidade de análise sobre os requerimentos, nos quais se incluem o tempo de serviço e a idade mínima exigida para começar a receber as aposentadorias a que têm direito aqueles que contribuíram a vida inteira para a Previdência Social.


É indispensável que a equipe da força-tarefa tenha capacidade de analisar o conteúdo dos requerimentos, uma vez que há aqueles que ingressaram com pedido antes da reforma da Previdência e os que fizeram os pedidos depois da reforma. São duas legislações diferentes, em muitos casos terá que ser dividido o direito daqueles que completaram 35 anos de contribuição dois meses antes da reforma e que por isso mesmo terão suas situações analisadas com atenção.

Existem as regras de transição, porém vejamos uma hipótese concreta. Vários segurados completaram 90% do tempo exigido antes da reforma, ficando pendurados nos critérios do INSS para o pagamento do direito. Como será feito o procedimento? Casos há em que segurados ingressaram após novembro de 2019, mas que haviam completado as exigências da lei antes da reforma da Previdência. Neste caso vale a regra anterior.

Mas nos casos em que completaram o tempo de serviço depois de aprovada a reforma o despacho terá que levar em conta a conjunção entre a lei anterior e a lei atual. Como se constata a operação não é tão simples como parece.

Quem quer consolo?

Quem oferece um consolo passageiro, um esclarecimento enganoso do panorama é recompensado em termos políticos

Um país que precisa de memória

Não basta ter ódio e nojo da ditadura, como expressou Ulysses Guimarães na promulgação da Constituição, em 1988. É preciso ter presente na memória coletiva os males que um regime totalitário, intransigente e macabro gera nas pessoas, nas famílias, nas coletividades, nos bairros, nas cidades e nas nações. É preciso que os mais jovens, os que não viveram sob a ditadura, tenham por ela o mesmo ódio e o mesmo nojo. É preciso que a memória seja viva e tangível. Que se possa tocar nas feridas para saber como elas doem.

No Brasil, parcela importante da população não consegue enxergar o passado porque é pequena a exposição de quem foram e o que fizeram os facínoras que, em nome dos ditadores, perseguiam, prendiam ilegalmente, sequestravam, torturavam, matavam e faziam desaparecer pessoas. Sem isso na cabeça, manifestantes pró-Bolsonaro vão para as ruas e pedem a volta da ditadura. Como farão no próximo dia 15. Desprezam os Poderes Legislativo e Judiciário e acreditam que a mão armada de fuzil e porrete é capaz de colocar ordem na casa.

A História prova o contrário. Além das barbaridades que cometem, e no Brasil não foi diferente, regimes autoritários erram muito mais justamente por não admitirem o contraditório, não se abrirem para o pluralismo de ideias e inovações que verdadeiramente mudam as coisas para melhor. Fora alguns bons livros e documentos históricos importantes como o “Brasil: Nunca Mais”, organizado por Dom Paulo Evaristo Arns, pouco resta para escancarar para as pessoas o que foi a ditadura brasileira.

O Memorial da Resistência de São Paulo, inaugurado em janeiro de 2009, é o único museu brasileiro que mostra como se operava a violência do Estado contra seus cidadãos. Ele está instalado numa parte do prédio em que funcionou o antigo Departamento de Ordem Política e Social (Dops), principal centro de tortura do estado, e que hoje também abriga a Pinacoteca. Situado no Parque da Luz, em pleno coração de São Paulo, o temido e famigerado Dops operou barbaridades desde a instalação da ditadura brasileira, em abril de 1964, até a sua extinção, em março de 1983.

Em 2015, a Argentina abriu um museu para expor de maneira organizada e de modo permanente como foi brutal e sanguinária a sua ditadura militar. O Museu Sítio de Memória foi montado no Casino de Oficiales de la Escuela de Mecánica de la Armada (Esma), mesmo local onde funcionou por anos o maior centro clandestino de detenção, tortura e extermínio de inimigos políticos do regime. Naquele conjunto militar plantado dentro de Buenos Aires, a 20 minutos de Palermo, mais de 5 mil argentinos foram brutalizados. A maioria morreu ou desapareceu.

Esses museus são mobilizadores e deveriam ser abertos em todas as cidades, em todos os quartéis e delegacias onde cidadãos foram detidos ilegalmente pelo aparelho do Estado, torturados e assassinados. Apalpar a História, tê-la sempre próxima, este é o melhor caminho para não se esquecer das atrocidades que nossos irmãos mais velhos sofreram enquanto a Justiça e o Legislativo permaneciam amordaçados ou fechados. Se você conhecer alguém que está pensando em vestir a camisa da seleção e ir a Copacabana no dia 15, tente fazê-lo antes imaginar como estarão seus filhos e seus netos no futuro se de fato sua mobilização conseguir fechar os parlamentos e os tribunais brasileiros.

Com toda certeza, Bolsonaro não se adaptou ao cargo de presidente da República

Infelizmente, Jair Bolsonaro demonstra ser do tipo autocarburante, que pega fogo sozinho, nem precisa de acender o fósforo. Talvez alguma dia, quando já estiver fora do poder, ele descubra a sabedoria que existe no fato de ficar calado. Pelo menos, de vez em quando. Por que acusar a jornalista Vera Magalhães de mentir, quando todos sabem que ela estava dizendo a verdade?

Nesse episódio decepcionante, quem mentiu, ao vivo e a cores, foi o próprio chefe do governo, ao inventar que os vídeos que ele transmitira à sua rede de WhatsApp tinham sido editados em 2015.

A jornalista do Estadão desmentiu o presidente com a maior facilidade. Logo após a transmissão das declarações do presidente, Vera Magalhães postou a sequência de vídeos que Bolsonaro enviara por WhatsApp na terça-feira de carnaval, dia 25.

O primeiro vídeo mostra que o presidente está andando de moto no Guarujá, onde passou o carnaval. O segundo é convoca para manifestações, e não foi produzida em 2015, porque nele constam fatos ocorridos em 2018, como a facada que feriu Bolsonaro. E o terceiro vídeo, também produzido por grupos manifestantes, traz imagens do dia da posse de Bolsonaro e, portanto, também não foi produzido em 2015.

É triste ver o presidente da República sendo desmentido em assunto de tamanha importância. Exibe um comportamento vulgar, que deveria ser evitado a todo custo pelo chefe do governo. Com toda certeza, não se adaptou ao cargo de presidente da República.

Mas Bolsonaro nem liga para isso, porque está sempre fazendo campanha, sua intenção é de agradar aos eleitores e se reeleger, mesmo que o resultado principal seja a radicalização extremada e a ameaça às instituições.

Acredito que, na difícil fase em que se encontra, o país necessita de paz e clima de tranquilidade, para que o governo leve adiante as reformas, embora eu não acredite muito nelas. Há uma proposta no Congresso, chamada de Emenda Emergencial, que vai tirar 25% do salário dos servidores.

Posso estar errado, mas os funcionários atingidos serão os de sempre, ficando preservados os salários da alta nomenklatura dos três Poderes, exatamente como ocorreu com a reforma da Previdência, que preservou as altas aposentadorias, a pretexto de preservar direitos adquiridos.

O dia da urucubaca

Estava eu entretido a ler tudo ao meu alcance sobre a prometida alteração no Código Penal da Espanha, visando a banir o franquismo do espaço público espanhol, quando sobreveio a convocatória eletrônica para a marcha bolsonarista do próximo dia 15 de março, visando a banir o Congresso, o STJ e o que mais puder ser extinto por um sucedâneo do AI-5 ou, presumo, por balas milicianas.

Cada governo faz desaparecer o que bem entende. O espanhol almeja sumir com o fantasma do caudilho Francisco Franco (1892-1975) e o bolsonarista, mais ambicioso, com a democracia. Os espanhóis buscam aliviar o vergonhoso fardo do passado, eliminando da paisagem a imagem do ditador que oprimiu o país de 1938 a 1973, enquanto aqui uma falange neofascista se empenha em ressuscitar, com o beneplácito presidencial, uma ditadura que se esmerou em calar, prender, torturar e sumir com quem lhe fizesse oposição.

Se aprovada a tipificação delituosa da apologia e do mero merchandising de Franco e do franquismo, o cidadão que infligir a lei irá para o xadrez. Se castigo similar vigorasse no Brasil, Bolsonaro nem teria sido candidato a presidente. Sua exaltação ao torturador Ustra e outras ameaças, como a de repetir aqui, em escala menor, o genocídio indonésio de 1965, em que 300.000 “inimigos do regime” foram mortos pela repressão, poderiam tê-lo colocado atrás das grades quatro anos atrás.

Por que 15 de março?


Por que não no dia 8, que também cai num domingo, o dia padrão das manifestações da nossa direita? Embora a exiguidade de tempo para organizá-la seja uma explicação razoável, tenho para mim que seus articuladores queriam mesmo era evitar a concorrência feminista. 8 de março é o Dia Internacional da Mulher. Se os bolsominions saíssem às ruas no próximo domingo, poderiam ser fragorosamente abafados pela manifestação concorrente.

Descobri no Google que em 15 de março comemora-se, aqui, o Dia da Escola (ironia n.º 1) e, no resto do mundo, o Dia Internacional Contra a Violência Policial (ironia n.º 2). Riam.

Riram? Agora esqueçam as irônicas coincidências e observem os demais eventos ocorridos num 15 de março. Alguns bem horripilantes.

Consagrado no calendário romano como os “idos de março”, foi naquela data que, em 44 a.C., o ditador da República Romana Júlio César também virou ido ao ser esfaqueado até a morte quando chegava para iniciar os trabalhos no Senado.

Assustados, supersticiosos bolsominions? Não foi essa minha intenção. Minto: foi sim.

Uma prova de que a escolha do dia 15 para avacalhar com as nossas instituições republicanas e atiçar sua destruição foi, mesmo sem querer, uma aposta coerente é que naquela data, 231 anos atrás, Joaquim Silvério dos Reis entregou ao Visconde de Barbacena sua carta-denúncia contra a Inconfidência Mineira.

Eta! diazinho danado de aziago e afeito a traições. Em 493, Odoacro, primeiro rei da Itália após a queda do Império Romano do Ocidente, acabou morto pelo rei dos ostrogodos, Teodorico, o Grande, durante um banquete em que ambos festejavam a bipartição do poder imperial – um estranho caso de estrangulamento amigo. Em 856, o imperador bizantino Miguel III derrubou a regência da imperatriz Teodora, o que seria bem menos espantoso se a usurpação do trono não configurasse um matricídio simbólico. Teodora era mãe de Miguel.

Tanta coisa ruim aconteceu num 15 de março, que melhor seria consagrá-lo como o Dia Internacional da Urucubaca.

Em 15 de março de 1545 teve início o famigerado Concílio de Trento, a mais longa e reacionária assembleia eclesiástica patrocinada pelo Vaticano, marco zero de diversas malvadezas da Igreja Católica, como o Index Librorum Prohibitorum e outras maleficências inquisitoriais. Em 1916, o presidente americano Woodrow Wilson invadiu o México com 12.000 soldados para capturar Pancho Villa, missão não cumprida, pois seu comandante, John J. Pershing, precisou ser deslocado para a 1.ª Guerra Mundial. O revolucionário mexicano viveria mais sete anos.

Àquela altura, o futuro jurista Luis Antônio da Gama e Silva ainda era criança em Mogi-Mirim, onde nasceu nos idos de março de 1913, para um futuro promissor como tríplice ministro da ditadura militar (Educação! Justiça! Minas e Energia!), ocupações merecidas porquanto antes, ainda reitor da USP, fizera do próprio punho o listão de processados e cassados daquela universidade, entre os quais os professores Florestan Fernandes, Mario Schenberg, Octavio Ianni, Paul Singer, Fernando Henrique Cardoso e outros mais com “ideias esquerdistas”. Cinco anos depois, mas não em março, Gaminha prestou-se a redigir o texto do AI-5.

Se a Checoslováquia deixou de existir em 15 de março de 1939, quando tropas nazistas ocuparam o que restava da Boêmia e da Moldávia, em compensação o Rio de Janeiro deixou de ser Estado da Guanabara em 15 de março de 1975. Isso foi ótimo. Dez anos depois, na mesma data, José Sarney tomaria posse no lugar do recém-finado Tancredo Neves. Isso foi péssimo, a recidiva da urucubaca.

Outras calamidades estavam a caminho: a destruição, por três explosões, de uma plataforma da Petrobrás na Bacia de Campos (2001), o início da guerra civil na Síria (2011), sem contar as manifestações em 160 cidades brasileiras contra o governo Dilma (2015), que deram no que deram – inclusive na manifestação de domingo que vem.