sábado, 25 de abril de 2020

Batalhão Brasil


Sob o signo de Tânatos

O governo de Jair Bolsonaro é conduzido sob o signo de Tânatos, o deus da morte na mitologia grega. Dedica-se desde sempre à destruição – primeiro, dos inimigos, reais e imaginários; depois, dos próprios aliados, inclusive ministros que lhe devotavam lealdade; e, afinal, a si mesmo, inviabilizando-se como presidente. É preciso interromper essa escalada antes que Bolsonaro destrua, por fim, o próprio País.

A trajetória da Presidência de Bolsonaro até aqui é impressionante. No início, constituiu um Ministério até razoável, capaz de fazer um bom trabalho em quase todas as áreas, e informou que estabeleceria uma nova forma de relação com o Congresso, sem o velho toma lá dá cá. Um ano e pouco depois, Bolsonaro fez de seu gabinete uma grande barafunda, em que ninguém se entende, e, no Congresso, depois de seguidas derrotas por se negar ao diálogo, resolveu entabular negociação com partidos e políticos envolvidos em escândalos de corrupção, oferecendo-lhes cargos em troca de votos.

Pior: em meio a uma pandemia devastadora, com milhares de doentes e mortos e com o sistema hospitalar público à beira do colapso, Bolsonaro preferiu desdenhar das vítimas e se mostrar mais preocupado com sua popularidade do que com a vida de seus governados.


Com esse espírito destruidor, trata como intocáveis ministros néscios que se dedicam dia e noite a encontrar comunistas embaixo da cama, enquanto inviabiliza o trabalho dos ministros e assessores que, ao contrário, prezam o cargo que ocupam e têm útil e valiosa colaboração a dar. Bolsonaro substituiu o ministro da Saúde porque este não aceitava desrespeitar as orientações da Organização Mundial da Saúde para enfrentar a pandemia de covid-19; desmoralizou sua equipe econômica ao resistir a fazer reformas e ao flertar com a irresponsabilidade fiscal; permitiu a fritura da ministra da Agricultura porque esta se queixou dos ataques bolsonaristas à China, principal cliente do agronegócio brasileiro; e agora tudo fez para provocar a saída do ministro da Justiça porque este se recusou a permitir que ele interferisse politicamente no comando da Polícia Federal (PF).

Para perplexidade dos brasileiros, Sérgio Moro, ao anunciar sua demissão do Ministério da Justiça, informou que Bolsonaro lhe disse que “queria ter (na chefia da PF) uma pessoa do contato pessoal dele, que ele pudesse colher informações, relatórios de inteligência”. Para ilustrar a gravidade do caso, Sérgio Moro, com uma pitada de ironia, deu o seguinte exemplo: “Imagine se, durante a Lava Jato, o presidente (Lula), a presidente Dilma ficassem ligando para a superintendência (da PF) em Curitiba para colher informações sobre as operações em andamento”.

Como resposta, o presidente, em pronunciamento espantosamente desconexo, fez várias acusações contra Sérgio Moro – inclusive a de que exigiu uma vaga no Supremo Tribunal Federal e a de que trabalha para vê-lo fora da Presidência – e também colocou em dúvida o trabalho da PF. Em sua glossolalia, contudo, foi incapaz de explicar a essência da denúncia de Moro, a de que tinha interesse em fazer da PF sua polícia particular.

Trata-se de comportamento intolerável, que pode dar as condições para a abertura de um processo de impeachment contra Bolsonaro – a Procuradoria-Geral da República já pediu ao Supremo a abertura de investigação sobre a acusação de Sérgio Moro.

Não se pode aceitar como natural que o presidente queira manipular a Polícia Federal, especialmente considerando-se que há investigações em andamento que interessam ao clã Bolsonaro. Se comprovadas as denúncias, o presidente pode ser acusado de crimes de responsabilidade, prevaricação e advocacia administrativa, entre outros.

As vozes responsáveis do País, inclusive de dentro do governo, têm a obrigação de manifestar seu total repúdio ao presidente Bolsonaro, deixando claro que os limites da lei e da decência há muito foram ultrapassados. “É hora de falar”, disse o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, resumindo a urgência. “O presidente está cavando sua fossa. Que renuncie antes de ser renunciado. Poupe-nos de, além do coronavírus, termos um longo processo de impeachment. Que assuma logo o vice para voltarmos ao foco: saúde e emprego. Menos instabilidade, mais ação pelo Brasil.”

Em frente, marche!

Senhor meu Deus, eu não tenho ideia para onde estou indo, não vejo o caminho adiante
Thomas Merton

O vingador do fim da ditadura militar

Ao chegar para a posse do novo ministro da Saúde, o vice-presidente da República, general Hamilton Mourão, brincou com os jornalistas: “Está tudo sob controle. Não sabemos de quem...”.

É possível, mas não é provável, que o general não saiba quem, de fato, controla as decisões sobre a epidemia e, portanto, quem preside a República. Sua observação expressa o fato inquietante de que os muitos gestos impróprios do presidente, em desacordo com a liturgia de sua alta função, são desafios que constituem atos de renúncia tácita à Presidência.

Empossado o novo ministro da Saúde, designou o presidente um almirante para representá-lo no ministério, no trato da questão da epidemia. Num Estado “normal”, quem cumpre essa função é o ministro. Portanto, ele nomeou um ministro de cuja lealdade dúvida.


Dois dias depois, no domingo, o presidente foi à porta do quartel-general do Exército, em Brasília, juntar-se a um grupo subversivo de manifestantes de direita que pedia um golpe militar contra a ordem democrática. Tossia, tinha dificuldade para falar. Ele estimula o comportamento divergente, que põe em risco a saúde e a vida de um número enorme de pessoas.

No dia seguinte, na porta do Planalto, em novo encontro com bajuladores, tentou desfazer o malfeito e fez pior. Declarou: “A Constituição, realmente, sou eu”. Plagiou a frase famosa de Luís XIV (1638-1715), enunciado emblemático do absolutismo monárquico: “O Estado sou eu”. Um presidente não é a Constituição: é o seu servidor.

Jair Messias tem dado indicações de que pretende ser o vingador do fim da ditadura militar. Fim que foi negociado pelas Forças Armadas, que queriam voltar aos quartéis. Cujo trâmite já estava anunciado em famoso discurso do general Golbery do Couto e Silva (1911-1987) na Escola Superior de Guerra.

Ele quer reverter o processo histórico. Seu comportamento sugere que a história está errada, na sociedade errada e com o povo errado. Nas várias expressões dessa mentalidade, são fortes as evidências de socialização no confinamento do quartel, do que Erving Goffman (1922-1982) define como instituição total. O general Costa e Silva já havia dado indicação semelhante quanto a isso, de que, nos tempos de quartel, suas ordens eram obedecidas, na Presidência não.

Durante a campanha eleitoral, em 2018, o general Mourão declarou que um dos objetivos da candidatura bolsonarista era o desmonte do Estado, deformado por funções nele introduzidas pelo populismo e pelo comunismo. Interpretação minúscula que tumultua a nossa paz política desde os anos de 1930. Já nas revoltas tenentistas, o propósito era claro: reproclamar a República e, por meio de uma ditadura, preparar a democracia. Nos documentos que li, da Revolução de 1924, em São Paulo, os jovens oficiais deixavam isso claro.

As oligarquias políticas, que representavam o que acabará sendo definido como o Brasil atrasado, faziam do Exército sua força auxiliar de poder. Interferiam nas promoções militares, designavam quem seria promovido a general. Os jovens oficiais queriam um Exército profissional. Eles chegarão ao poder com Getúlio Vargas (1882-1954), na Revolução de Outubro de 1930. Finalmente, com o golpe de 1937, em nome de um Estado nacional, enfraqueceram as bases políticas das oligarquias, que eram os Estados e municípios.

Um dos ativos promotores do golpe, o general Gois Monteiro (1889-1956), que fora ministro da Guerra, estava temporariamente enlouquecido pela dor da perda do filho, aspirante a oficial, morto em acidente aéreo. Durante a fase do golpe, escrevia cartas ao filho morto. Nessas cartas, que li no Arquivo do Exército, narrava as circunstâncias do golpe.

De certo modo, os antigos tenentes e seus propósitos estarão na autoria do golpe de 1964. Mas a ditadura teve que se compor com a política retrógrada e localista que imaginava combater. Cometeu o erro de associar corrupção e subversão. A corrupção oligárquica nada tinha ver com a ascensão política das esquerdas, que pouco ou nada tinha a ver com comunismo. O golpe favoreceu os corruptos e perseguiu os progressistas. Esvaziou-se e perdeu-se.

Jair Messias é uma extemporânea sobrevivência desse equívoco, na polarização entre a Presidência e o Congresso Nacional, entre a massa alucinada das ruas, que ele considera o povo, e as instituições democráticas, que supostamente conspiram contra ele.

Diferentemente do que ele pensa, não é ele quem joga o jogo. É o jogo da história que joga com ele. É o “não sabemos quem” do general Mourão.

A epidemia do coronavírus apenas precipitou o confronto político entre centralismo autoritário e democracia, entre o Executivo e o Congresso. Ela colocou o país diante de uma redefinição do federalismo, o que pode nos levar ao parlamentarismo.
José de Souza Martins

A chuva e o trovão

Se Jair Bolsonaro algum dia leu um livro de poemas, certamente não há de ter sido algum dos mais belos livros de poesia do poeta persa Maulana Jalaladim Maomé, também conhecido como Rumi. Poeta, jurista e teólogo sufi persa do século XIII, Rumi nos deixou palavras que nos fazem pensar e crescer interiormente. Exemplo: “Eleve suas palavras, não a sua voz. É a chuva que faz brotar as flores, não o trovão”.

Do alto de uma caçamba de caminhão ou apoiado no cercadinho que criou como palanque no portão do palácio da Alvorada, Bolsonaro eleva a voz para fazer chegar aos seus discípulos seus mais esdrúxulos pensamentos.

Diz tolices sem fim, como esta: ele não vai abrir mão de sua liberdade de ir e vir. Isso a respeito da quarentena que o mundo vem usando como única arma para conter o vírus da Covid-19, já que ainda não temos nem vacinas, nem medicamentos para combater essa praga que vem ceifando milhares de vidas.

Ele confere às suas tristes palavras o peso da lei, ao dizer que ele é a Constituição, que ele não tem que respeitar a Organização Mundial de Saúde, já que ele é o Estado. Pobre Brasil que tem como chefe da Nação alguém que confunde o direito de ir e vir com o direito de desrespeitar uma quarentena que só tem como foco diminuir o numero de infectados, aliviar a pressão sobre os hospitais e postos de saúde e salvar vidas.


Arrogante e jactancioso, alega que se estiver errado, o peso do erro vai cair sobre seus ombros. Esquece, ou finge ignorar, que os ombros do Mito são envernizados e nada ali ficará grudado, ao passo que as mortes ferirão as famílias para sempre.

No domingo 19 de abril, depois de reunir um bando de bolsonaristas na entrada do QG do Exército em Brasília, conhecido como Forte Apache, e de lá gritar que ele já é o presidente e que portanto não sonha com golpes, no dia seguinte ele engoliu em seco e disse que não convidou ninguém para aquela manifestação e reafirmou “Já estou no poder, por que daria um golpe?”.

Seria de bom alvitre que Bolsonaro percebesse que os brasileiros não são burros e que golpes servem para muitas coisas, não apenas para segurar a cadeira no Planalto. Como disse o vice Mourão, numa frase com muito espírito: “Tá tudo sob controle. Só não sabemos de quem”.

Desculpe, general, nós sabemos quem quer o controle. Sabemos sim. Mas não vai ser fácil tirá-lo de nossas mão. "Uma vez a Cascais, nunca mais", não é assim que diz o velho ditado português?

Bolsonaro já disse algumas vezes que não nasceu para o cargo que ocupa e que ali não está feliz. Volto a Rumi, o poeta da Persia: “Por que você permanece na prisão quando a porta está completamente aberta?”.
Maria Helena RR de Sousa

Caiu a máscara de Bolsonaro

Em menos de 48 horas, o presidente Jair Bolsonaro deixou cair a máscara que até então mantinha diante do rosto, de reformador liberal do Estado e da economia, e adversário da corrupção. A esses falsos papéis, o populista de direita deve grande parte dos votos da classe média e do empresariado que o elegeram há um ano e meio.

Quem quer que ainda esperasse que – a despeito de todos os sinais em contrário – o gabinete de Bolsonaro fosse tranquilamente continuar se dedicando às reformas e ao combate à corrupção, pode agora desistir de vez. Pois, em apenas dois dias, o presidente cortou as asas, primeiro de seu superministro da Economia, o liberal Paulo Guedes, e depois do agora ex-ministro da Justiça e Segurança Pública Sergio Moro.


Ele sempre louvara Paulo Guedes como onisciente e onipotente encarregado de economia e finanças em seu gabinete; seu "Posto Ipiranga", que não se curvava diante de ninguém; que tinha sob seu controle as pastas das finanças, economia e planejamento, assim como as instituições financeiras estatais, do Banco do Brasil e BNDES ao Banco Central.

Porém, agora Bolsonaro fez seu ministro-chefe da Casa Civil, general Walter Braga Netto, anunciar o Pró-Brasil, seu "plano Marshall brasileiro". Através dele, 30 bilhões de reais deverão fluir para projetos estatais de infraestrutura, sob controle e fiscalização dos militares. Desse modo, fica neutralizada a abordagem liberal de Guedes, que pretendia entregar o financiamento dos projetos de infraestrutura ao maior número possível de investidores privados.

Com isso, o Brasil se encontra exatamente onde estava 50 anos atrás, sob a ditadura militar, quando planejadores estatais militares estipulavam e executavam obras de infraestrutura – da Transamazônica e a usina nuclear de Angra dos Reis até a represa de Itaipu. Como naquela época, o Estado brasileiro não dispõe do capital necessário e terá que se endividar, até as verbas se esgotarem e a falência estatal bater à porta.

A supervisão militar não evitará que, também desta vez, ocorra corrupção em grande estilo. Naquela época, ganharam porte conglomerados de construções como Odebrecht e Andrade Gutierrez, que dominaram por décadas o Estado, a economia e a política do Brasil, como verdadeiras máquinas de corrupção.

Bolsonaro já se encarregou de debilitar os mecanismos de controle de corrupção. Ao exonerar o diretor-geral da Polícia Federal Maurício Valeixo, ele degradou a tal ponto seu ministro da Justiça, o ex-juiz Moro, que este acabou por renunciar.

Por um lado, em suas investigações, a Polícia Federal vinha chegando cada vez mais perto da família Bolsonaro. Por outro, Moro devia estar irritado por o presidente pretender compactuar com políticos sabidamente corruptos, a fim de ganhar pelo menos um pouco de respaldo no Congresso.

Se permanecesse no cargo, Moro se tornaria totalmente desqualificado como garantidor de governança íntegra. Mas com a sua renúncia, não haverá mais controle sobre a panela formada por Bolsonaro, os militares e os serviços de segurança nacional.

Ou seja: caiu definitivamente a máscara do governo. Menos de um ano e meio após tomar posse, o suposto reformador neoliberal e combatente da corrupção se revela o que sempre foi: um político ultradireitista de baixa categoria, sem o menor interesse em reformas estatais nem em práticas limpas no Estado e na economia.

Bolsonaro não está sequer interessado num governo que funcione, como provam a demissão do ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta e a pressão crescente sobre a ministra da Agricultura, Tereza Cristina.

Bolsonaro vai governar nos próximos dois anos e meio para si e seu clã familiar, assim como para seus apoiadores mais próximos. Estes são sobretudo os evangélicos, que o abençoam com preces todas as manhãs, diante do Palácio da Alvorada, enquanto ele distribui tiradas de ódio. Além disso, há os saudosistas da ditadura – e claro, os empresários oportunistas, ávidos de se locupletar com as verbas públicas.

As Forças Armadas apoiarão Bolsonaro na execução de seus planos. Desde já, o governo pouco se distingue de um regime militar clássico – embora a divisão de poderes ainda funcione na democracia brasileira. Entretanto, todas as posições-chave já estão ocupadas por militares – assim como o segundo e o terceiro escalões da burocracia.

Já se pode prever o que o clã Bolsonaro tentará neutralizar o Congresso, a Justiça e a mídia, pois o atrapalham o governo. As Forças Armadas vão cooperar – como agora, ao não criticar o apoio do presidente a manifestantes pró-ditadura.

Os militares detestam desordem, transparência e separação de poderes. Eles adoram hierarquias e obediência a comandos, assim como seu poder recém-conquistado em Brasília, o livre acesso a orçamentos e privilégios. Além disso, se consideram mais bem organizados do que o resto da sociedade.

O caos decorrente da crise do coronavírus vem a calhar para Bolsonaro. Seria a ocasião perfeita para ele eliminar de vez a divisão de poderes no país.