domingo, 31 de agosto de 2025

Pensamento do Dia

 


Um convite à bandidagem

O presidente da Câmara traduziu com precisão o espírito da coisa, quando disse que a chamada PEC da blindagem revelava "o espírito da Casa". Espírito do corpo em estado bruto é do que falou Hugo Motta (Republicanos-PB), num ato de franqueza.

Já numa demonstração de fraqueza deixou que a confusão tomasse conta da reunião de líderes que engendrava a votação à sorrelfa da noite adentro na quarta-feira, aceitando um texto apócrifo que propunha ampliar ainda mais a proteção de deputados e senadores de ações na Justiça.


Se a ideia era escancarar o absurdo e provocar a suspensão do debate diante da má repercussão, a condição de condutor do processo exigiria que defendesse essa posição com clareza.

Mas ficou parecendo que a intenção foi evitar uma derrota no plenário e adiar o exame do tema para retomá-lo em momento oportuno.

Os adeptos da causa não desistirão de transformar o Congresso numa espécie de esconderijo, indiferentes ao risco de se interditar investigações de ilícitos. De toda ordem.

Acabamos de ver revelada a infiltração do crime organizado no setor de combustíveis e no mercado financeiro.

Já sabíamos, embora ainda sem ter a real dimensão, o quanto a bandidagem se imiscui na sociedade de no aparelho de Estado. Nos três poderes.

Como nosso assunto é o Legislativo, citemos apenas as câmaras municipais, assembleias estaduais e até o Congresso Nacional, onde há presença crescente dessas ligações perigosas.

Um dos caminhos de acesso, não o único, é o domínio de territórios nas grandes cidades. E, conforme constata há tempos o ex-ministro da Segurança Pública Raul Jungmann, "quem domina o território, controla o voto".

Os arquitetos da blindagem já pensaram que ao manter o Parlamento fora do alcance da Justiça, protegerão também os criminosos infiltrados, cada vez mais interessados nessa proteção?

Se não pensaram, conviria que atentassem a isso, sob pena de se tornarem cúmplices de máfias que ameaçam a segurança nacional.

A aritmética da morte e a falta de vergonha

Decretar a emergência de fome numa determinada área geográfica, seja em Gaza ou noutro local, exige o cumprimento de uma série de regras e de critérios, há muito definidos por diversos organismos internacionais. É uma missão que tem de ser conduzida por observadores independentes e experimentados – que vão acompanhando o evoluir da situação, diretamente no terreno.

Por isso, após meses e meses de avisos sobre a deterioração das condições em Gaza, provocada pelo embargo à entrega de alimentos e de outra ajuda humanitária, ninguém deveria ter ficado surpreendido com a decisão do IPC, o organismo das Nações Unidas que monitoriza essas situações, de ter elevado para o nível máximo de 5 as condições de fome no território que, há quase dois anos, tem sido vítima de um intenso cerco e destruição por parte das Forças Armadas israelitas.

A declaração de fome generalizada em Gaza, feita na sexta-feira, 22, pelo Quadro Integrado de Classificação da Segurança Alimentar (IPC, sigla em inglês), significa que, pelas leituras dos seus peritos, foram ultrapassados os limiares necessários para se chegar àquela classificação. Anteriormente, a 29 de julho, o IPC tinha já avisado da gritante falta de alimentos e da existência de desnutrição aguda em, pelo menos, uma em cada cinco crianças. Faltava um terceiro patamar para ser declarada a catástrofe que, todos sabiam, estava prestes a confirmar-se: a mortalidade por inanição, que se verifica quando o corpo entra num estado de autodestruição, por falta de alimentos e de desnutrição aguda.

 

Os números apresentados pelo IPC são, no mínimo, arrepiantes – mesmo numa era em que já se banalizou o horror e há sempre quem queira desvalorizar a responsabilidade pelas tragédias: após 22 meses de conflito, há meio milhão de pessoas ameaçadas por condições catastróficas de fome, miséria e morte. Se tudo continuar como até aqui, dentro de dez meses haverá 132 mil crianças com menos de 5 anos a sofrer de desnutrição aguda. Ou seja, e para que se perceba a dimensão do horror, haverá mais de 40 mil crianças em risco elevado de morte.

A crueza dos números da fome e da morte em Gaza deviam, só por si, ser motivo para um sobressalto da comunidade internacional. Até porque não são consequência de condições climáticas, de más políticas agrícolas ou de fenómenos extremos, como sucedeu, tantas vezes, em diversas latitudes ao longo da História. Em Gaza, a fome é utilizada como arma de guerra – como aconteceu, há poucas décadas, no Camboja e na Etiópia, e está a ocorrer, atualmente, no esquecido, mas também terrível, conflito no Sudão.

Decretar a calamidade em Gaza obriga à verificação e à compilação de dados horríveis. Mas para a negar apenas é preciso descaramento – e um nível de desumanidade que ultrapassa todos os limites. Ver Benjamin Netanyahu dizer repetidamente que não há fome em Gaza, perante tanta evidência, deveria receber a imediata condenação de qualquer líder mundial, sem que isso possa ser confundido com um ataque ao direito de Israel existir como Estado ou, como é tantas vezes repetido na retórica dos defensores do atual governo extremista de Telavive, como uma manifestação antissemita.

A História ensina-nos que os genocídios e as grandes mortandades pela fome foram sempre negados pelos ditadores ou chefes militares que os desencadearam. Neste caso, no entanto, há um requinte de negação que deveria envergonhar qualquer um. Basta ler, por exemplo, o documento divulgado pelo governo israelita como “resposta” ao relatório do IPC, em que o organismo das Nações Unidas é continuamente acusado de ter uma visão “enviesada” do conflito e de não respeitar o seu dever de “neutralidade”.

Nesse documento, mais do que negar a fome, o governo israelita preocupa-se apenas em pôr em causa a metodologia seguida pelos autores do relatório do IPC. Insiste que, ao contrário das evidências, a situação está “a melhorar e não a piorar” – embora seja incapaz de apresentar números que o comprovem. E quando procura esgrimir dados, acaba por revelar ainda mais o grau de desumanidade em que caiu: diz que a situação de fome não deveria ter sido declarada porque, nas suas contas, a taxa de desnutrição aguda entre crianças não ultrapassou o limiar dos 15% necessários para se atingir a Fase 5 de Fome. Segundo o mesmo, a desnutrição “só” afeta 13,5% das crianças. Só…

Mercado do Ilícito

Não sei bem quem está 'se infiltrando'. Será que não são os faria limers, políticos e outros os que querem se infiltrar, para se apropriar da economia bilionária dos mercados ilícitos?

Gabriel Feltran, diretor de pesquisa no Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS) e professor titular da Sciences Po, em Paris. Autor de "Irmãos: Uma História do PCC"

Os sonâmbulos

"Aqueles que não lembram o passado estão condenados a repeti-lo", escreveu George Santayana. Tenho sérias dúvidas em relação à validade universal da máxima. No mínimo, "condenados" é um termo forte demais.

Acompanho, porém, o filósofo na ideia mais geral de que conhecer o passado é uma coisa positiva. Mesmo que não funcione como vacina contra erros pretéritos, o conhecimento da história nos ajuda a entender o presente, o que pode ou não afetar o futuro.


Não acho que estejamos na iminência de uma guerra mundial nem que um evento dessa magnitude poderia ser prevenido pela leitura de livros, mas, mesmo assim, recomendo "Os Sonâmbulos" de Christopher Clark, uma obra já meio antiga (2012) que destrincha a eclosão da 1ª Guerra Mundial.

Há semelhanças entre o contexto geopolítico de hoje e o do início do século 20 que fazem valer a pena revisitar o passado. Em ambas as situações tínhamos um mundo relativamente próspero, no qual potências antigas davam sinais de decadência enquanto as ascendentes se esforçavam para projetar força e liderança.

Nos dois casos, vivia-se um período de radicalismo retórico, no qual nacionalismos e a defesa da soberania davam o tom da política interna de vários países. Ali mais do que aqui, uma política de alianças entre nações ajudou a manter a estabilidade global até o dia em que deixou de funcionar assim e começou a empurrá-las para o conflito.

Clark mostra que a maior parte dos líderes (excluídos alguns generais prussianos) queria a paz, ainda que não a qualquer preço. Eles também se empenharam em tomar decisões racionais, equilibrando objetivos internos com os das alianças. Só que o fato de todos agirem mais ou menos do mesmo modo levou a erros e armadilhas das quais esses mesmos líderes depois não conseguiam recuar.

Havia, é claro, desde atores ignorantes e impetuosos até sumidades intelectuais com amplo conhecimento de história e diplomacia. Não se notam diferenças importantes de desempenho entre eles, o que nos traz de volta a Santayana.

Uma alternativa que precisa ser humana

O século XXI atravessa um processo de reconfiguração geopolítica tão profundo quanto aquele vivido no imediato pós-Guerra Fria. Após décadas de dominação unipolar liderada pelos Estados Unidos – marcada por guerras preventivas, sanções unilaterais e chantagem financeira –, assistimos agora à ascensão de um novo polo global. Os BRICS, que começaram como uma aliança econômica entre Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, transformaram-se num vetor de contestação à ordem mundial hegemônica. Com sua recente ampliação e crescente influência sobre países do Sul Global, os BRICS se afirmam como alternativa concreta à arquitetura ocidental do poder. Mas a pergunta essencial permanece: essa nova ordem será mais justa ou apenas trocará os protagonistas da dominação?

De acordo com dados recentes do Geopolitical Economy Report e da EY Global, o bloco BRICS+ – já incluindo países como Egito, Etiópia, Arábia Saudita, Irã e Emirados Árabes – representa hoje 44% do PIB mundial em Paridade de Poder de Compra (PPP) e abriga 56% da população global. Em contraste, o G7, que dominou o século XX com suas políticas neoliberais e intervencionistas, recuou para cerca de 30% do PIB global (PPP). A inversão de protagonismo não é apenas simbólica: ela indica uma nova centralidade produtiva e tecnológica nas mãos do Sul Global. No entanto, o fato de o BRICS superar o G7 em paridade de poder de compra não resolve, por si só, a crise de legitimidade do sistema internacional. A questão não é apenas de quem comanda, mas como comanda – e a serviço de quem.

Nesse sentido, há uma contradição evidente entre a promessa emancipatória do BRICS e as realidades concretas vividas pelos trabalhadores nos países que compõem o bloco. A China, embora celebre avanços colossais em infraestrutura, tecnologia e crescimento econômico, ainda mantém práticas laborais que atentam contra a dignidade humana. A chamada jornada 996 – das 9h às 21h, seis dias por semana – ainda é observada em diversas empresas do setor de tecnologia, apesar de sua ilegalidade formal. Essa lógica extenuante de produtividade sem limites já foi amplamente denunciada por movimentos populares e até por tribunais locais, que reconhecem o vínculo entre esse regime de trabalho e o adoecimento mental da juventude chinesa.


Na Índia, a situação é igualmente alarmante. O Global Slavery Index 2023, publicado pela organização Walk Free, revelou que 11 milhões de pessoas vivem em condições de escravidão moderna no país – a maior cifra registrada no mundo. São trabalhadores aprisionados em servidão por dívidas, exploração infantil, tráfico humano e condições degradantes de moradia e saúde. Embora existam iniciativas bem-sucedidas de resgate e proteção, como o modelo desenvolvido em Tamil Nadu com apoio da International Justice Mission, a estrutura social baseada em castas e desigualdades históricas continua a alimentar esse ciclo de opressão.

Diante desse panorama, é legítimo questionar: que tipo de nova ordem está sendo construída? Uma ordem que silencia diante da brutalidade dos regimes de trabalho? Que incorpora Estados autoritários como Arábia Saudita e Irã sem exigir contrapartidas mínimas em direitos civis, políticos e sociais? Ou uma ordem verdadeiramente democrática, multilateral, centrada na solidariedade entre os povos?

O Brasil, neste contexto, possui uma responsabilidade histórica. Sua posição estratégica, tanto regional quanto diplomática, pode influenciar os rumos do bloco. Mais do que buscar vantagens comerciais ou protagonismo simbólico, o Brasil deve tensionar o BRICS em favor dos direitos humanos, dos direitos trabalhistas, da saúde mental dos trabalhadores e da transição ecológica justa. Deve, também, recusar a seletividade moral que tantas vezes caracteriza a política internacional. Se o país critica, corretamente, o belicismo norte-americano, também deve criticar com firmeza o genocído cometido por Israel contra o povo palestino, bem como a invasão russa na Ucrânia, que viola os princípios mais elementares do direito internacional. A defesa da paz e da autodeterminação dos povos não pode se dobrar aos interesses estratégicos de aliados momentâneos.

É evidente que a emergência de um mundo multipolar, com empresas como BYD, Embraer, Huawei e as novas cadeias globais de valor em energia limpa e mobilidade sustentável, representa uma oportunidade histórica. A descentralização do poder pode, sim, favorecer uma distribuição mais justa de recursos, tecnologias e conhecimento. Mas essa descentralização deve vir acompanhada de uma nova ética: a ética da solidariedade, da cooperação e da centralidade da vida. Uma ordem que substitui Washington por Pequim, sem alterar as estruturas de exploração do trabalho, é apenas a repetição de um mesmo pesadelo com outros sotaques.

O desafio, portanto, não é apenas econômico. É civilizacional. Os BRICS não podem se tornar apenas um novo eixo de influência global. Devem se tornar uma referência de esperança. Um projeto de humanidade que supere a lógica do lucro, da guerra, da exploração e do adoecimento psíquico em massa. Um pacto mundial que priorize a justiça social, o direito ao descanso, a igualdade de gênero, o cuidado com o planeta e a construção de uma cultura internacional de paz.

O século XXI não precisa de novos impérios. Precisa de novas alianças. De um multilateralismo que se oponha tanto ao imperialismo armado quanto ao autoritarismo econômico. E de uma nova voz, que venha do Sul, mas fale por toda a humanidade. Uma voz que diga, com a autoridade moral de quem já sofreu demais: nunca mais seremos engrenagens caladas de uma máquina que nos adoece.

Árvores são testemunhas silenciosas

O que é uma árvore? O que são 3.100 árvores? A pergunta nada tem de aleatório. No caso em questão, a resposta se bifurca em duas variáveis — depende de “para quem” e “para que” serviam as 3.100 oliveiras arrancadas de uma aldeia palestina na Cisjordânia.

A força bruta naquela região já faz parte da paisagem, por repetir-se há décadas. Colonos judeus fincam novos postos em terras que não lhes pertencem, entram em choque com os aldeões, contam com a cumplicidade ou indiferença das Forças de Defesa de Israel e vão aumentando seu latifúndio.

O episódio da quinta-feira, dia 22, deixou um colono invasor ferido, e 12 palestinos foram presos, com todas as moradias da aldeia devassadas pelos militares. Só que um dos palestinos envolvidos no confronto tinha conseguido escapar. Para facilitar sua captura, a solução encontrada foi desbastar o terreno, eliminando 3.100 oliveiras. Simples assim. Não com motosserras, mas por um exército de vorazes escavadeiras. À luz do dia e sem constrangimento. Vida que segue.

Consideradas estorvo para a segurança de Israel, as árvores foram arrancadas do solo à vista dos descendentes de quem as plantara. Do ponto de vista dos palestinos, elas eram a vida, o sustento, o alimento e a essência da cultura local. Eram testemunhas silenciosas da história de todo um povo.

Só que a natureza é teimosa, insiste em sobreviver a seu pior inimigo — o ser humano — e ensina a não desesperançar. Como não se lembrar das papoulas que brotaram nos campos chacinados da Batalha de Flandres, em 1914? A terra havia sido revirada com tamanho furor nos combates de trincheira da Grande Guerra que sementes dormentes havia décadas conseguiram reemergir na devastação. E logo papoulas, de aspecto tão frágil! O combatente e poeta canadense John McCrae imortalizou em verso o que sentiu ao vê-las: Nas terras de Flandres, as papoulas vão brotar/Entre as cruzes, em filas, a nos lembrar/O lugar onde repousamos, em paz e solidão/E no céu as cotovias em corajosa canção/Voam, pouco ouvidas entre o som da explosão.

Como explicar, também, o centenário salgueiro logo à direita da entrada de Auschwitz 1, um dos três campos de extermínio nazista do complexo? Ele fora ali plantado muito antes da Segunda Guerra, à época em que o local era apenas uma caserna militar perto de Cracóvia. Cresceu robusto, próximo aos trilhos que levavam à morte, e continua ali como testemunha silenciosa do horror, enquanto vão morrendo uma a uma as árvores plantadas pelos aprisionados para encobrir as instalações de extermínio de Auschwitz 2-Birkenau e Auschwitz 3.

Halina Birenbaum, uma das sobreviventes do Holocausto ainda viva (95 anos), dedicou àquelas árvores um de seus muitos poemas sobre a necessidade de nunca esquecer: Muitos, como eu, confessaram às árvores aqui, suplicaram lembrança/Queriam subir ao topo e voar para longe/Todas as marcas deles desapareceram, foram varridas/E as árvores viram tudo, as árvores ouviram/E, como é seu costume,/Cresceram, brotaram folhas, permaneceram em silêncio.

Também faz bem à alma se emocionar com a pereira-de-jardim encontrada entre os destroços das Torres Gêmeas um mês depois do ataque terrorista do 11 de Setembro de 2001. Seu tronco estava quase carbonizado, e umas poucas raízes pareciam farelos. Mas ela ainda respirava. Recebeu tratamento especialíssimo por nove anos. Hoje mede mais de 9 metros de altura, foi batizada “Árvore da Sobrevivência” e está novamente frondosa, enraizada na parte sul do memorial nova-iorquino. Serve de lembrança viva das perdas e de prova de que resistir é preciso. Suas sementes são enviadas todo ano a alguma cidade do planeta que tenha passado por grande dor coletiva.

E assim voltamos às 3.100 oliveiras de uma Palestina que o governo de Benjamin Netanyahu teima em enterrar viva — primeiro em Gaza, depois na Cisjordânia. Não conseguirá. A História já nos deu demonstrações suficientes de que eliminar pessoas é fácil, matar identidades é mais difícil. A força e grandeza da frase “I contain multitudes”, imortalizada por Walt Whitman, é monumental quando comparada à força bruta de um exército que perdeu a razão. Extraída do poema “Song of myself” (Canto de mim mesmo), “eu abrigo multidões” simboliza a vastidão do eu, sua riqueza interna e a coexistência das contradições tão essenciais para o entendimento da condição humana. Ao destruir as oliveiras da Palestina, Israel está destruindo a si mesmo.
Dorrit Harazim