Por isso, após meses e meses de avisos sobre a deterioração das condições em Gaza, provocada pelo embargo à entrega de alimentos e de outra ajuda humanitária, ninguém deveria ter ficado surpreendido com a decisão do IPC, o organismo das Nações Unidas que monitoriza essas situações, de ter elevado para o nível máximo de 5 as condições de fome no território que, há quase dois anos, tem sido vítima de um intenso cerco e destruição por parte das Forças Armadas israelitas.
A declaração de fome generalizada em Gaza, feita na sexta-feira, 22, pelo Quadro Integrado de Classificação da Segurança Alimentar (IPC, sigla em inglês), significa que, pelas leituras dos seus peritos, foram ultrapassados os limiares necessários para se chegar àquela classificação. Anteriormente, a 29 de julho, o IPC tinha já avisado da gritante falta de alimentos e da existência de desnutrição aguda em, pelo menos, uma em cada cinco crianças. Faltava um terceiro patamar para ser declarada a catástrofe que, todos sabiam, estava prestes a confirmar-se: a mortalidade por inanição, que se verifica quando o corpo entra num estado de autodestruição, por falta de alimentos e de desnutrição aguda.
Os números apresentados pelo IPC são, no mínimo, arrepiantes – mesmo numa era em que já se banalizou o horror e há sempre quem queira desvalorizar a responsabilidade pelas tragédias: após 22 meses de conflito, há meio milhão de pessoas ameaçadas por condições catastróficas de fome, miséria e morte. Se tudo continuar como até aqui, dentro de dez meses haverá 132 mil crianças com menos de 5 anos a sofrer de desnutrição aguda. Ou seja, e para que se perceba a dimensão do horror, haverá mais de 40 mil crianças em risco elevado de morte.
A crueza dos números da fome e da morte em Gaza deviam, só por si, ser motivo para um sobressalto da comunidade internacional. Até porque não são consequência de condições climáticas, de más políticas agrícolas ou de fenómenos extremos, como sucedeu, tantas vezes, em diversas latitudes ao longo da História. Em Gaza, a fome é utilizada como arma de guerra – como aconteceu, há poucas décadas, no Camboja e na Etiópia, e está a ocorrer, atualmente, no esquecido, mas também terrível, conflito no Sudão.
Decretar a calamidade em Gaza obriga à verificação e à compilação de dados horríveis. Mas para a negar apenas é preciso descaramento – e um nível de desumanidade que ultrapassa todos os limites. Ver Benjamin Netanyahu dizer repetidamente que não há fome em Gaza, perante tanta evidência, deveria receber a imediata condenação de qualquer líder mundial, sem que isso possa ser confundido com um ataque ao direito de Israel existir como Estado ou, como é tantas vezes repetido na retórica dos defensores do atual governo extremista de Telavive, como uma manifestação antissemita.
A História ensina-nos que os genocídios e as grandes mortandades pela fome foram sempre negados pelos ditadores ou chefes militares que os desencadearam. Neste caso, no entanto, há um requinte de negação que deveria envergonhar qualquer um. Basta ler, por exemplo, o documento divulgado pelo governo israelita como “resposta” ao relatório do IPC, em que o organismo das Nações Unidas é continuamente acusado de ter uma visão “enviesada” do conflito e de não respeitar o seu dever de “neutralidade”.
Nesse documento, mais do que negar a fome, o governo israelita preocupa-se apenas em pôr em causa a metodologia seguida pelos autores do relatório do IPC. Insiste que, ao contrário das evidências, a situação está “a melhorar e não a piorar” – embora seja incapaz de apresentar números que o comprovem. E quando procura esgrimir dados, acaba por revelar ainda mais o grau de desumanidade em que caiu: diz que a situação de fome não deveria ter sido declarada porque, nas suas contas, a taxa de desnutrição aguda entre crianças não ultrapassou o limiar dos 15% necessários para se atingir a Fase 5 de Fome. Segundo o mesmo, a desnutrição “só” afeta 13,5% das crianças. Só…
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