segunda-feira, 20 de outubro de 2025
Herzog, 50 anos
Passava da uma da tarde na esquina da Alameda Santos com Rua Leôncio de Carvalho. Era minha hora de almoço numa primavera com tempo nublado, 50 anos atrás. Sentado num muro baixo, lia o paulistano Jornal da Tarde. No pé da página, a notícia da morte de Vladimir Herzog.
De noite, na escola, soube pelo professor de química que o jornalista fora assassinado no DOI-Codi. Eu tinha 16 anos e lembro-me de sentir naquele momento o que uma ditadura faz com seus adversários: mata.
Dias depois, amigos mais velhos me contaram ter estado na missa em memória do jornalista, um ato ecumênico acontecido na Catedral da Sé e que reunira cerca de 8 mil pessoas. Pelos relatos, compreendi que não fora somente uma celebração religiosa, a reza compungida pela alma do morto. Além de tudo, os presentes lutavam em defesa da liberdade de viver sem temor e não ser subjugados por um regime autoritário. Ali se rezava por todos nós.
À luz da História, a missa celebrada entre outros por Dom Paulo Evaristo Arns e pelo rabino Henry Sobel, duas figuraças com quem conviveria anos depois, marca o início da derrubada da ditadura militar. O governo do general Ernesto Geisel prometia uma abertura lenta e gradual, quando se percebeu ser o regime um corpo disforme integrado por policiais maus e policiais bons — como se isso fosse possível num regime de exceção. Havia uma briga interna. Desde seu início, em março de 1964, já desapareciam desafetos políticos — prática tornada hábito sob Emílio Médici, com a banalização da tortura e o puro assassinato, como acontecera com Herzog e ocorreria com o operário Manoel Fiel Filho, ambos no reinado de Geisel, em desafio a sua autoridade. Apenas em 1977, com a demissão do ministro do Exército, Sylvio Frota, Geisel conseguiria ter em mãos seu projeto de liberalização (nos seus termos, fique claro).
Não se derruba uma ditadura sem passar por um longo processo. O mesmo vale para chegar a um golpe, como o de 1964, que precisou de muitos anos de sedição, políticos incompetentes e, no caso específico, dinheiro americano para a compra de deputados e senadores golpistas
A reação à morte de Vlado Herzog serviu para a classe média apoiadora do golpe perceber o caráter assassino do regime. Herzog não integrava a luta armada, não pegava em armas, era somente um jornalista de esquerda, de trato afável, amante de teatro. Como ele, milhões de outros brasileiros faziam oposição intelectual aos generais. Com seu desaparecimento, caía a ficha de que qualquer um poderia ser eliminado. O filme “Pra frente, Brasil”, dirigido por Roberto Farias, lançado em 1982, baseia-se num fato real. Um cidadão comum é confundido pelos agentes da repressão com um militante da luta armada. Preso, embora dissesse ser tudo engano, é barbaramente torturado. Não havendo liberdades democráticas, com o Estado de Direito suspenso e a imprensa sob censura, a simples delação anônima podia resultar em tortura e morte.
Terminada a ditadura, um acordo de covardia institucionalizou a impunidade dos torturadores. Ao contrário do Chile e da Argentina, que julgaram seus assassinos, o Brasil varreu sob o tapete sua sujeira. Até elegeu depois alguns como deputados, mostrando como a sociedade é também um corpo disforme onde convivem o médico e o monstro. Apenas os militares foram pintados como algozes, esquecendo o apoio civil dado ao regime em nome de uma pretensa luta contra a paranoia do comunismo.
O renitente apoio ao capitão Bolsonaro, julgado e condenado por tentativa de golpe, mostra a doença autoritária da sociedade brasileira. Os manifestantes nas portas dos quartéis ou na invasão dos prédios dos três Poderes, agora pintados pela conhecida contemporização brasileira, colocariam novamente no cadafalso outros cidadãos como Vladimir Herzog ou Rubens Paiva.
Passados 40 anos da volta da democracia, e 50 daquela tarde de tempo nublado na cidade de São Paulo, o Brasil ainda paga pela herança da ditadura. Não se pode dizer que a doença passou. Permanecemos uma sociedade violenta. A cordialidade brasileira, aquela que encanta turistas e alimenta nosso ego, sempre foi verniz fino sobre a brutalidade. Existe um ex-presidente, com seus seguidores civis capazes de elogiar torturadores e um regime que prendia e matava a esmo. E existem patriotas em defesa de um golpe de Estado, com a volta dos militares ao poder, desfilando pelas ruas de camisa amarela. Eles não querem nada mais que o fim da nossa liberdade — e não apenas para quem lê notícias encostado num muro baixo.
De noite, na escola, soube pelo professor de química que o jornalista fora assassinado no DOI-Codi. Eu tinha 16 anos e lembro-me de sentir naquele momento o que uma ditadura faz com seus adversários: mata.
Dias depois, amigos mais velhos me contaram ter estado na missa em memória do jornalista, um ato ecumênico acontecido na Catedral da Sé e que reunira cerca de 8 mil pessoas. Pelos relatos, compreendi que não fora somente uma celebração religiosa, a reza compungida pela alma do morto. Além de tudo, os presentes lutavam em defesa da liberdade de viver sem temor e não ser subjugados por um regime autoritário. Ali se rezava por todos nós.
À luz da História, a missa celebrada entre outros por Dom Paulo Evaristo Arns e pelo rabino Henry Sobel, duas figuraças com quem conviveria anos depois, marca o início da derrubada da ditadura militar. O governo do general Ernesto Geisel prometia uma abertura lenta e gradual, quando se percebeu ser o regime um corpo disforme integrado por policiais maus e policiais bons — como se isso fosse possível num regime de exceção. Havia uma briga interna. Desde seu início, em março de 1964, já desapareciam desafetos políticos — prática tornada hábito sob Emílio Médici, com a banalização da tortura e o puro assassinato, como acontecera com Herzog e ocorreria com o operário Manoel Fiel Filho, ambos no reinado de Geisel, em desafio a sua autoridade. Apenas em 1977, com a demissão do ministro do Exército, Sylvio Frota, Geisel conseguiria ter em mãos seu projeto de liberalização (nos seus termos, fique claro).
Não se derruba uma ditadura sem passar por um longo processo. O mesmo vale para chegar a um golpe, como o de 1964, que precisou de muitos anos de sedição, políticos incompetentes e, no caso específico, dinheiro americano para a compra de deputados e senadores golpistas
A reação à morte de Vlado Herzog serviu para a classe média apoiadora do golpe perceber o caráter assassino do regime. Herzog não integrava a luta armada, não pegava em armas, era somente um jornalista de esquerda, de trato afável, amante de teatro. Como ele, milhões de outros brasileiros faziam oposição intelectual aos generais. Com seu desaparecimento, caía a ficha de que qualquer um poderia ser eliminado. O filme “Pra frente, Brasil”, dirigido por Roberto Farias, lançado em 1982, baseia-se num fato real. Um cidadão comum é confundido pelos agentes da repressão com um militante da luta armada. Preso, embora dissesse ser tudo engano, é barbaramente torturado. Não havendo liberdades democráticas, com o Estado de Direito suspenso e a imprensa sob censura, a simples delação anônima podia resultar em tortura e morte.
Terminada a ditadura, um acordo de covardia institucionalizou a impunidade dos torturadores. Ao contrário do Chile e da Argentina, que julgaram seus assassinos, o Brasil varreu sob o tapete sua sujeira. Até elegeu depois alguns como deputados, mostrando como a sociedade é também um corpo disforme onde convivem o médico e o monstro. Apenas os militares foram pintados como algozes, esquecendo o apoio civil dado ao regime em nome de uma pretensa luta contra a paranoia do comunismo.
O renitente apoio ao capitão Bolsonaro, julgado e condenado por tentativa de golpe, mostra a doença autoritária da sociedade brasileira. Os manifestantes nas portas dos quartéis ou na invasão dos prédios dos três Poderes, agora pintados pela conhecida contemporização brasileira, colocariam novamente no cadafalso outros cidadãos como Vladimir Herzog ou Rubens Paiva.
Passados 40 anos da volta da democracia, e 50 daquela tarde de tempo nublado na cidade de São Paulo, o Brasil ainda paga pela herança da ditadura. Não se pode dizer que a doença passou. Permanecemos uma sociedade violenta. A cordialidade brasileira, aquela que encanta turistas e alimenta nosso ego, sempre foi verniz fino sobre a brutalidade. Existe um ex-presidente, com seus seguidores civis capazes de elogiar torturadores e um regime que prendia e matava a esmo. E existem patriotas em defesa de um golpe de Estado, com a volta dos militares ao poder, desfilando pelas ruas de camisa amarela. Eles não querem nada mais que o fim da nossa liberdade — e não apenas para quem lê notícias encostado num muro baixo.
O discurso do ódio nas escolas públicas
Nunca, em outra altura da nossa carreira de quase quatro décadas enquanto professores da escola pública, o nosso papel foi tão importante para apaziguar o discurso do ódio que se sente, latente, dentro e fora da sala de aula.
Os tempos mudaram. E não foi para melhor. Numa altura em que o mundo parece desabar sobre as nossas cabeças, o discurso de promoção e incentivo ao ódio, ao preconceito e à violência contra pessoas singulares ou grupos específicos, cresce a olhos vistos. Se as famílias não colocarem como prioridade estabelecer limites a este fenómeno e se a escola pública e os seus professores não criarem, com caráter de urgênci,a um plano de ataque para esta problemática crescente, o quadro final será catastrófico.
Quem não viu ainda nos ecrãs da televisão ou, mais provável e frequentemente, nos grupos de whatsapp de alunos e pais, alguns vídeos que se tornam virais em poucos minutos com cenas com crianças e jovens a serem agredidos, gozados, humilhados perante um público que, em vez de agir de imediato, se limita a filmar? Basta deambular pelos corredores de uma escola multicultural como a minha para percebermos o quão fácil é, para um jovem adolescente, abrir a boca e humilhar, ofender, diminuir o outro, com base em características como a cor da pele, a religião, a orientação sexual, o estilo de vestuário, o corte de cabelo, o número de piercings e/ou tatuagens, entre outros.
No entanto, a escola não é o espaço embrionário para este tipo de discurso negativo contra grupos vulneráveis. Pelo contrário, ao longo dos últimos tempos, temos vindo a assistir a uma crescente aceitação do outro na escola pública. Em todas as turmas temos cada vez mais jovens marcadamente diferentes da maioria, quer pelo seu estilo alternativo, quer pela sua orientação sexual assumida sem medos. A normalização do discurso de ódio a que se vem assistindo surge de fora para dentro, impulsionado muitas vezes pela comunidade de onde estes jovens são oriundos e onde se integram (ou não). Por mais que opiniões desfavoráveis sobre determinados grupos ou indivíduos historicamente discriminados tenham vindo a surgir no discurso comum a que se assiste diariamente e, em grande parte, divulgados através de meios de comunicação social, a escola procura combater, de todos as formas possíveis, este tipo de discurso discriminatório.
A escola pública promove a educação em Direitos Humanos. Na minha disciplina, Português, surgem múltiplas oportunidades para este debate. Desde o profícuo debate a partir do estudo da epopeia lusitana aos vícios dos homens apresentados alegoricamente no Sermão de Santo António aos Peixes, passando pela mudança e pelo desconcerto do mundo presentes na lírica camoniana ou a falta de liberdade de expressão a partir do estudo da obra de Saramago, a língua materna permite múltiplos cenários de promoção dos Direitos Humanos. Mas acontecerá o mesmo nas outras disciplinas? Julgo mesmo que, em certos contextos, continuamos a agir como se o Holocausto não tivesse existido. E a escola deve trazer os Direitos Humanos para a agenda do dia, promovendo debates, criando experiências de inclusão e de solidariedade, incluindo-as no Plano de Atividades de todas as escolas, de todos os grupos disciplinares, de todas as áreas do saber, transversalmente alcançando todos, todos…
Como criar uma cultura de paz em escolas onde a diversidade étnica, religiosa, socioeconómica, de género, de estilo é tão gritante? Tenho na mesma sala de aula portugueses do bairro, membros de gangues, ciganos, negros, árabes, brasileiros de variadas vertentes religiosas e até uma aluna paquistanesa que usa hijab. Cada vez mais sinto a necessidade de ver fomentada na escola pública uma comunicação de respeito e de inclusão que promovam uma cultura de combate ao discurso de ódio que comece na sala de aula e se estenda, desta vez, ao exterior. Este é um desafio difícil mas urgente, uma vez que a onda de discursos de ódio está a alastrar-se e sai de casa para as ruas do bairro, para a cidade e para o mundo. Embora o Gabinete da Unesco para a Prevenção do Genocídio e a Responsabilidade de Proteger tenha desenvolvido um guia com algumas respostas educacionais, orientações e recomendações sobre a forma de fortalecer os sistemas educacionais para combater o discurso de ódio, estes parecem não ter sido divulgados pelas escolas, neste dias que correm, muito mais preocupadas com a sua diária burocracia estupidificante.
A publicação da Unesco, intitulada Enfrentar o discurso de ódio por meio da educação: um guia para formuladores de políticas (2023), aponta algumas soluções para prevenir e combater narrativas nocivas e discriminatórias na forma de xenofobia, racismo, antissemitismo, anti-islamismo e outros tipos de intolerância. Em consequência do rápido crescimento do número de utilizadores das redes sociais e da banalização de discursos populistas e extremistas por toda a Europa e pelo mundo, deve a escola através dos profissionais de ensino ajudar combater as narrativas de ódio. Neste sentido, a divulgação da Agenda Educação 2030 da Unesco, que faz parte de um movimento global para erradicar a pobreza através de 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável até 2030, coloca a Educação como um desses objetivos fundamentais (Objetivo número 4).
O discurso de ódio contra grupos minoritários e/ou desfavorecidos, já por si marginalizados, pode agudizar situações de exclusão social ao promover a intolerância e o desrespeito pelo “outro”. A escola, através de uma educação inclusiva e equitativa, capacitando indivíduos de grupos marginalizados e, consequentemente, promovendo a sua inclusão social, pode ser um fator-chave na minimização deste tipo de discurso.
Como podem a escola e os seus professores combater esta forma de discriminação e criar uma cultura de paz num ambiente de respeito por todos e para todos? Contrariar narrativas prejudiciais e discriminatórias passará, entre outros aspetos, pela capacitação de professores e alunos sobre os valores e práticas a respeitar na relação com os cidadãos globais e digitais, pela adoção de abordagens pedagógicas e de toda a escola para fortalecer a aprendizagem social e emocional. Contudo, nada disto será verdadeiramente eficaz sem uma reformulação de alguns conteúdos curriculares, adequando-os culturalmente e incluindo conteúdos promotores da tolerância e do direito às liberdades fundamentais ao ser humano.
Numa altura em que a liberdade de expressão se revela cada vez mais necessária para as democracias e em que o discurso de ódio se propaga, é prioritário combater cenários de agressividade e de intolerância que ocorrem no dia a dia das nossas escolas, desenvolvendo na comunidade escolar um olhar crítico em relação a todo e qualquer tipo de discriminação.
Não é depois do discurso de ódio estar implementado que se deve agir. Este deve ser prevenido desde cedo através da construção permanente de diálogos sobre respeito pela diversidade, atividades que desenvolvam o pensamento crítico e promovam aprendizagens sociais e emocionais. Para que serve a escola, afinal, se não for para enfrentar os “desafios mundiais à paz, à justiça, aos direitos humanos, à igualdade de género, ao pluralismo, ao respeito à diversidade e à democracia?” (UNESCO)
Recordemos as palavras de Eduardo Sá, psicólogo clínico e psicanalista, num texto publicado no Observador (17/01/21): “O discurso do ódio, de que tanto se fala, é construído por nós, todos os dias. Não que o façamos de forma intencional, claro. Mas enquanto não educarmos para se saber escutar, para se pensar com aquilo que se sente, para se aprender com os outros, enquanto não se reeducar as pessoas para a palavra (…), menos os nossos filhos (e alunos) encontrarão na diversidade os argumentos com que apurem a singularidade.”
A escola, repito, joga neste tabuleiro um papel fundamental.
Os tempos mudaram. E não foi para melhor. Numa altura em que o mundo parece desabar sobre as nossas cabeças, o discurso de promoção e incentivo ao ódio, ao preconceito e à violência contra pessoas singulares ou grupos específicos, cresce a olhos vistos. Se as famílias não colocarem como prioridade estabelecer limites a este fenómeno e se a escola pública e os seus professores não criarem, com caráter de urgênci,a um plano de ataque para esta problemática crescente, o quadro final será catastrófico.
Quem não viu ainda nos ecrãs da televisão ou, mais provável e frequentemente, nos grupos de whatsapp de alunos e pais, alguns vídeos que se tornam virais em poucos minutos com cenas com crianças e jovens a serem agredidos, gozados, humilhados perante um público que, em vez de agir de imediato, se limita a filmar? Basta deambular pelos corredores de uma escola multicultural como a minha para percebermos o quão fácil é, para um jovem adolescente, abrir a boca e humilhar, ofender, diminuir o outro, com base em características como a cor da pele, a religião, a orientação sexual, o estilo de vestuário, o corte de cabelo, o número de piercings e/ou tatuagens, entre outros.
No entanto, a escola não é o espaço embrionário para este tipo de discurso negativo contra grupos vulneráveis. Pelo contrário, ao longo dos últimos tempos, temos vindo a assistir a uma crescente aceitação do outro na escola pública. Em todas as turmas temos cada vez mais jovens marcadamente diferentes da maioria, quer pelo seu estilo alternativo, quer pela sua orientação sexual assumida sem medos. A normalização do discurso de ódio a que se vem assistindo surge de fora para dentro, impulsionado muitas vezes pela comunidade de onde estes jovens são oriundos e onde se integram (ou não). Por mais que opiniões desfavoráveis sobre determinados grupos ou indivíduos historicamente discriminados tenham vindo a surgir no discurso comum a que se assiste diariamente e, em grande parte, divulgados através de meios de comunicação social, a escola procura combater, de todos as formas possíveis, este tipo de discurso discriminatório.
A escola pública promove a educação em Direitos Humanos. Na minha disciplina, Português, surgem múltiplas oportunidades para este debate. Desde o profícuo debate a partir do estudo da epopeia lusitana aos vícios dos homens apresentados alegoricamente no Sermão de Santo António aos Peixes, passando pela mudança e pelo desconcerto do mundo presentes na lírica camoniana ou a falta de liberdade de expressão a partir do estudo da obra de Saramago, a língua materna permite múltiplos cenários de promoção dos Direitos Humanos. Mas acontecerá o mesmo nas outras disciplinas? Julgo mesmo que, em certos contextos, continuamos a agir como se o Holocausto não tivesse existido. E a escola deve trazer os Direitos Humanos para a agenda do dia, promovendo debates, criando experiências de inclusão e de solidariedade, incluindo-as no Plano de Atividades de todas as escolas, de todos os grupos disciplinares, de todas as áreas do saber, transversalmente alcançando todos, todos…
Como criar uma cultura de paz em escolas onde a diversidade étnica, religiosa, socioeconómica, de género, de estilo é tão gritante? Tenho na mesma sala de aula portugueses do bairro, membros de gangues, ciganos, negros, árabes, brasileiros de variadas vertentes religiosas e até uma aluna paquistanesa que usa hijab. Cada vez mais sinto a necessidade de ver fomentada na escola pública uma comunicação de respeito e de inclusão que promovam uma cultura de combate ao discurso de ódio que comece na sala de aula e se estenda, desta vez, ao exterior. Este é um desafio difícil mas urgente, uma vez que a onda de discursos de ódio está a alastrar-se e sai de casa para as ruas do bairro, para a cidade e para o mundo. Embora o Gabinete da Unesco para a Prevenção do Genocídio e a Responsabilidade de Proteger tenha desenvolvido um guia com algumas respostas educacionais, orientações e recomendações sobre a forma de fortalecer os sistemas educacionais para combater o discurso de ódio, estes parecem não ter sido divulgados pelas escolas, neste dias que correm, muito mais preocupadas com a sua diária burocracia estupidificante.
A publicação da Unesco, intitulada Enfrentar o discurso de ódio por meio da educação: um guia para formuladores de políticas (2023), aponta algumas soluções para prevenir e combater narrativas nocivas e discriminatórias na forma de xenofobia, racismo, antissemitismo, anti-islamismo e outros tipos de intolerância. Em consequência do rápido crescimento do número de utilizadores das redes sociais e da banalização de discursos populistas e extremistas por toda a Europa e pelo mundo, deve a escola através dos profissionais de ensino ajudar combater as narrativas de ódio. Neste sentido, a divulgação da Agenda Educação 2030 da Unesco, que faz parte de um movimento global para erradicar a pobreza através de 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável até 2030, coloca a Educação como um desses objetivos fundamentais (Objetivo número 4).
O discurso de ódio contra grupos minoritários e/ou desfavorecidos, já por si marginalizados, pode agudizar situações de exclusão social ao promover a intolerância e o desrespeito pelo “outro”. A escola, através de uma educação inclusiva e equitativa, capacitando indivíduos de grupos marginalizados e, consequentemente, promovendo a sua inclusão social, pode ser um fator-chave na minimização deste tipo de discurso.
Como podem a escola e os seus professores combater esta forma de discriminação e criar uma cultura de paz num ambiente de respeito por todos e para todos? Contrariar narrativas prejudiciais e discriminatórias passará, entre outros aspetos, pela capacitação de professores e alunos sobre os valores e práticas a respeitar na relação com os cidadãos globais e digitais, pela adoção de abordagens pedagógicas e de toda a escola para fortalecer a aprendizagem social e emocional. Contudo, nada disto será verdadeiramente eficaz sem uma reformulação de alguns conteúdos curriculares, adequando-os culturalmente e incluindo conteúdos promotores da tolerância e do direito às liberdades fundamentais ao ser humano.
Numa altura em que a liberdade de expressão se revela cada vez mais necessária para as democracias e em que o discurso de ódio se propaga, é prioritário combater cenários de agressividade e de intolerância que ocorrem no dia a dia das nossas escolas, desenvolvendo na comunidade escolar um olhar crítico em relação a todo e qualquer tipo de discriminação.
Não é depois do discurso de ódio estar implementado que se deve agir. Este deve ser prevenido desde cedo através da construção permanente de diálogos sobre respeito pela diversidade, atividades que desenvolvam o pensamento crítico e promovam aprendizagens sociais e emocionais. Para que serve a escola, afinal, se não for para enfrentar os “desafios mundiais à paz, à justiça, aos direitos humanos, à igualdade de género, ao pluralismo, ao respeito à diversidade e à democracia?” (UNESCO)
Recordemos as palavras de Eduardo Sá, psicólogo clínico e psicanalista, num texto publicado no Observador (17/01/21): “O discurso do ódio, de que tanto se fala, é construído por nós, todos os dias. Não que o façamos de forma intencional, claro. Mas enquanto não educarmos para se saber escutar, para se pensar com aquilo que se sente, para se aprender com os outros, enquanto não se reeducar as pessoas para a palavra (…), menos os nossos filhos (e alunos) encontrarão na diversidade os argumentos com que apurem a singularidade.”
A escola, repito, joga neste tabuleiro um papel fundamental.
Ninguém quis ver o que aconteceu em Gaza
Existe uma resolução do Conselho de Segurança da ONU aprovada dez anos atrás que obriga os Estados-membros à proteção de jornalistas durante conflitos armados. Não só porque jornalistas integram a população civil de países, como pela função social específica que desempenham no mundo. Assinada por unanimidade em 27 de maio de 2015, a 2222 especifica que “jornalistas, profissionais de mídia e pessoal associado” na cobertura de guerras não podem ser considerados alvo militar. Outra resolução, bem mais recente (2730, de 2024), aborda especificamente “os princípios da distinção, proporcionalidade e precauções em conflitos armados”, de modo a proteger civis e pessoal humanitário. Contudo, ao longo dos últimos dois anos, até o frágil cessar-fogo instaurado em 10 de outubro, tudo isso e muito mais foi pulverizado pela ação das Forças de Defesa de Israel (FDI) na Faixa de Gaza.
Até aí nada de muito novo, visto que resoluções da ONU valem pouco dependendo da força política ou do apadrinhamento do país infringente. Inesperado, mesmo para os tempos atuais de escassez moral no mundo, foi a docilidade com que o chamado grande jornalismo profissional aceitou que seu papel de testemunha-chave da História fosse bloqueado. Diana Buttu, advogada palestino-canadense especializada em Direito Internacional, resumiu assim o noticiário inicial do conflito na imprensa ocidental:
— O mundo nos informa que nada pode justificar o 7 de Outubro (data em que grupos terroristas do Hamas irromperam no sul de Israel, trucidaram 1.219 pessoas em poucas horas e fizeram 251 reféns), mas tudo o que Israel fizer pode ser justificado pelo 7 de Outubro.
No início do feroz assalto das FDI, também pareceu compreensível que, por razões militares, Israel vedasse o enclave a todo e qualquer representante de mídia independente. Ninguém esperava poder voltar aos tempos áureos do jornalismo de guerra dos anos 1960 e 1970, quando os Estados Unidos, atolados no Vietnã, perderam o apoio da opinião pública graças à independência dos jornais, ao arrojo dos enviados ao front e à liberdade que tiveram para trabalhar arriscando a vida. Nas guerras seguintes, tanto contra o Iraque quanto no Afeganistão, o Pentágono domesticou os grandes órgão de mídia — transformou os enviados especiais em embedded journalists. Atrelados às forças invasoras, grande parte da cobertura foi feita em movimentos cerceados, e o envio de imagens ficou sob escrutínio. Mesmo assim, não foram poucos os jornalistas internacionais que abriram mão da sedução de poder cobrir uma guerra do interior de um tanque e se aventuraram a explorar o morticínio por conta própria.
Em Gaza, nem isso. O bloqueio foi, é e continua a ser irredutível e absoluto. Coube então ao jornalismo profissional e amador de Gaza vestir coletes e capacetes e mostrar o que ninguém queria ver. De início desacreditados pelas grandes mídias mundiais, ou suspeitos de ser meros propagandistas do Hamas, toda uma geração de repórteres, cinegrafistas, fotojornalistas, radialistas e blogueiros palestinos vivenciou e testemunhou a história da guerra. Foi alto o custo humano desse trabalho insano. Levantamento feito para o canal Al Jazeera identificou 278 jornalistas e pessoal de mídia (palestinos em sua imensa maioria) mortos em Gaza por ação de Israel. Foi somente em agosto deste ano, transcorridos 22 meses de blecaute total, que mais de 250 veículos de mídia de 50 países emitiram um protesto coletivo contra esse apagamento de vidas e da História. Mas notas de protesto não bastam. Soa infantil, mas uma flotilha encabeçada por The New York Times, The Economist, Financial Times, Le Monde, The Guardian, El País, Haaretz, The Wall Street Journal e outros pesos pesados poderia ter sido tentada para chamar a atenção do mundo para o bloqueio. Consórcios multinacionais de jornalismo de qualidade, que já provaram imensa capacidade de articulação e investigação com empreitadas como os Panama Papers, se mantiveram de mãos atadas. No Brasil, os mesmos jornais que no governo Jair Bolsonaro tiveram a ousadia de se organizar para contornar o bloqueio de dados nacionais sobre a Covid-19 não consideraram mover montanhas para acabar com o bloqueio da verdade em Gaza.
Quem apaga a luz teme o que possa ser visto. Chegará o dia em que o governo de Benjamin Netanyahu precisará entreabrir os portões da desumanidade. A imprensa mundial acorrerá e fará descrições caudalosas da desolação. Tarde demais. O que aconteceu em Gaza ninguém quis ver.
Até aí nada de muito novo, visto que resoluções da ONU valem pouco dependendo da força política ou do apadrinhamento do país infringente. Inesperado, mesmo para os tempos atuais de escassez moral no mundo, foi a docilidade com que o chamado grande jornalismo profissional aceitou que seu papel de testemunha-chave da História fosse bloqueado. Diana Buttu, advogada palestino-canadense especializada em Direito Internacional, resumiu assim o noticiário inicial do conflito na imprensa ocidental:
— O mundo nos informa que nada pode justificar o 7 de Outubro (data em que grupos terroristas do Hamas irromperam no sul de Israel, trucidaram 1.219 pessoas em poucas horas e fizeram 251 reféns), mas tudo o que Israel fizer pode ser justificado pelo 7 de Outubro.
No início do feroz assalto das FDI, também pareceu compreensível que, por razões militares, Israel vedasse o enclave a todo e qualquer representante de mídia independente. Ninguém esperava poder voltar aos tempos áureos do jornalismo de guerra dos anos 1960 e 1970, quando os Estados Unidos, atolados no Vietnã, perderam o apoio da opinião pública graças à independência dos jornais, ao arrojo dos enviados ao front e à liberdade que tiveram para trabalhar arriscando a vida. Nas guerras seguintes, tanto contra o Iraque quanto no Afeganistão, o Pentágono domesticou os grandes órgão de mídia — transformou os enviados especiais em embedded journalists. Atrelados às forças invasoras, grande parte da cobertura foi feita em movimentos cerceados, e o envio de imagens ficou sob escrutínio. Mesmo assim, não foram poucos os jornalistas internacionais que abriram mão da sedução de poder cobrir uma guerra do interior de um tanque e se aventuraram a explorar o morticínio por conta própria.
Em Gaza, nem isso. O bloqueio foi, é e continua a ser irredutível e absoluto. Coube então ao jornalismo profissional e amador de Gaza vestir coletes e capacetes e mostrar o que ninguém queria ver. De início desacreditados pelas grandes mídias mundiais, ou suspeitos de ser meros propagandistas do Hamas, toda uma geração de repórteres, cinegrafistas, fotojornalistas, radialistas e blogueiros palestinos vivenciou e testemunhou a história da guerra. Foi alto o custo humano desse trabalho insano. Levantamento feito para o canal Al Jazeera identificou 278 jornalistas e pessoal de mídia (palestinos em sua imensa maioria) mortos em Gaza por ação de Israel. Foi somente em agosto deste ano, transcorridos 22 meses de blecaute total, que mais de 250 veículos de mídia de 50 países emitiram um protesto coletivo contra esse apagamento de vidas e da História. Mas notas de protesto não bastam. Soa infantil, mas uma flotilha encabeçada por The New York Times, The Economist, Financial Times, Le Monde, The Guardian, El País, Haaretz, The Wall Street Journal e outros pesos pesados poderia ter sido tentada para chamar a atenção do mundo para o bloqueio. Consórcios multinacionais de jornalismo de qualidade, que já provaram imensa capacidade de articulação e investigação com empreitadas como os Panama Papers, se mantiveram de mãos atadas. No Brasil, os mesmos jornais que no governo Jair Bolsonaro tiveram a ousadia de se organizar para contornar o bloqueio de dados nacionais sobre a Covid-19 não consideraram mover montanhas para acabar com o bloqueio da verdade em Gaza.
Quem apaga a luz teme o que possa ser visto. Chegará o dia em que o governo de Benjamin Netanyahu precisará entreabrir os portões da desumanidade. A imprensa mundial acorrerá e fará descrições caudalosas da desolação. Tarde demais. O que aconteceu em Gaza ninguém quis ver.
‘Pobreza não é fracasso pessoal’
A pobreza não é um fracasso pessoal, é uma falha sistêmica, uma negação da dignidade e dos direitos humanos. A afirmação feita pelo secretário-geral da ONU, António Guterres, no Dia Internacional para a Erradicação da Pobreza (17/10), diz muito sobre a realidade do povo brasileiro.
Pessoas negras (pretos e pardos) representam a maioria dos que se encontram em situação de pobreza no nosso país. Para se ter uma ideia, entre 2012 e 2023, mais de 60% dos negros tinham renda de no máximo um salário mínimo. Nesse período, a renda média nos domicílios com pretos e pardos foi menos da metade da auferida nos domicílios sem negros (Cedra).
No Brasil, a expectativa de vida de mulheres e homens negros chega a ser seis anos menor do que a dos brancos em razão de fatores decorrentes da pobreza, que expõe os mais pobres a doenças ligadas à falta de saneamento básico, à alimentação inadequada e à violência urbana.
Quem vive em situação de pobreza experimenta múltiplas privações que se conectam reforçando as carências e dificultando o acesso efetivo a direitos e garantias constitucionais. Um rol exemplificativo inclui o direito à moradia digna, nutrição adequada, trabalho decente, inclusão social, educação de qualidade e saúde.
Verdade que o país entrou num ciclo de redução da pobreza e da desigualdade nos últimos quatro anos, o que permitiu que quase 9 milhões de pessoas deixassem a chamada linha da pobreza (IBGE). Mas é muito importante lembrar que a pobreza é dinâmica, ou seja, as famílias muitas vezes entram e saem dessa condição de maneira cíclica.
Nesse sentido, impedir que as pessoas voltem para a pobreza é tão importante quanto tirá-las dessa condição.
E é aí que entram programas sociais de transferência de renda e políticas públicas de redução das desigualdades. O combate à pobreza abrange a promoção da equidade racial, o acesso à justiça e a inclusão racial. Afinal de contas, pobreza não é um fracasso pessoal.
Ana Cristina Rosa
Pessoas negras (pretos e pardos) representam a maioria dos que se encontram em situação de pobreza no nosso país. Para se ter uma ideia, entre 2012 e 2023, mais de 60% dos negros tinham renda de no máximo um salário mínimo. Nesse período, a renda média nos domicílios com pretos e pardos foi menos da metade da auferida nos domicílios sem negros (Cedra).
No Brasil, a expectativa de vida de mulheres e homens negros chega a ser seis anos menor do que a dos brancos em razão de fatores decorrentes da pobreza, que expõe os mais pobres a doenças ligadas à falta de saneamento básico, à alimentação inadequada e à violência urbana.
Quem vive em situação de pobreza experimenta múltiplas privações que se conectam reforçando as carências e dificultando o acesso efetivo a direitos e garantias constitucionais. Um rol exemplificativo inclui o direito à moradia digna, nutrição adequada, trabalho decente, inclusão social, educação de qualidade e saúde.
Verdade que o país entrou num ciclo de redução da pobreza e da desigualdade nos últimos quatro anos, o que permitiu que quase 9 milhões de pessoas deixassem a chamada linha da pobreza (IBGE). Mas é muito importante lembrar que a pobreza é dinâmica, ou seja, as famílias muitas vezes entram e saem dessa condição de maneira cíclica.
Nesse sentido, impedir que as pessoas voltem para a pobreza é tão importante quanto tirá-las dessa condição.
E é aí que entram programas sociais de transferência de renda e políticas públicas de redução das desigualdades. O combate à pobreza abrange a promoção da equidade racial, o acesso à justiça e a inclusão racial. Afinal de contas, pobreza não é um fracasso pessoal.
Ana Cristina Rosa
Bem-vindos à era da 'nowstalgia'
Será que ainda controlamos as nossas vidas? Ou será que, sem darmos por isso, entregámos o leme a forças invisíveis – algoritmos que decidem o que vemos, mercados que ditam o valor do nosso trabalho, crises nacionais e internacionais que se sucedem como temporais sem fim? Vivemos num tempo em que o futuro deixou de ser um horizonte e se tornou uma ameaça. E, diante dessa ameaça, fazemos algo estranho: voltamo-nos para trás. Não para a História, mas para uma versão suavizada do passado recente – os anos 80, sobretudo – como se ali, entre sintetizadores, calças de ganga justas e videoclipes coloridos, tivéssemos perdido uma felicidade que agora nos escapa. É a isso que o sociólogo francês Gérald Bronner, professor na Universidade de Sorbonne, chama “nowstalgia”: a nostalgia do presente, ou, mais precisamente, a recusa de deixar o presente ir embora, porque o futuro já não nos pertence.
Mas por que falo dos anos 80? Porque essa década, em particular, se tornou o santuário emocional de uma geração que, em muitos casos, nem a viveu? Talvez porque os anos 80 pareciam prometer um futuro sem catástrofe. A Guerra Fria ainda pairava, mas o muro ainda não tinha caído – e, por isso, havia ainda um “depois” imaginável. A tecnologia era simples, tangível: um walkman, um telefone fixo, um ecrã de televisão que não nos vigiava. Havia crise, claro – mas também música alta, cor, movimento. Madonna dançava como se o mundo fosse seu. Prince cantava sobre o desejo e a liberdade como se fossem direitos naturais. O cinema falava de viagens no tempo, de heróis improváveis, de mundos melhores ao virar da esquina. Era um tempo de hedonismo consciente: gozar o agora, sim – mas com a certeza de que o amanhã ainda estava por escrever.
Hoje, o hedonismo mudou de rosto. Já não é celebração – é fuga. Consumimos o passado como se fosse um analgésico: ouvimos vinis não pelo som superior, mas por calor humano; vestimos roupa vintage não por estilo, mas por segurança simbólica; vemos séries ambientadas nos anos 90 não por nostalgia real, mas por saudade de um tempo em que o futuro parecia pertencer-nos. A “nowstalgia” é, assim, uma forma de autopreservação psíquica. Diante da perda de controlo sobre o ambiente, a globalização desenfreada, a aceleração tecnológica e a incerteza climática, preferimos congelar o tempo. Como escreve Bronner no seu livro À L’Assaut du Réel (2023), “o presente tornou-se tão compacto que o seu campo gravitacional absorve a nossa imaginação e desvitaliza o futuro”.
Mas e se essa fuga for, na verdade, uma rendição?
Perguntemo-nos: quem beneficia com o nosso desinteresse pelo futuro? Quem lucra com a nossa crença de que “nada pode mudar”? Não são os que detêm o poder? Não são os que querem manter o mundo exatamente como está – desigual, seletivo, predatório – mas com um verniz de normalidade? A “nowstalgia” é perigosa não por ser doce, mas por ser passiva. Transforma a política em estética, a memória em mercadoria, a esperança em playlist.
E, no entanto, há algo de profundamente humano nesse desejo de regresso. Porque a arte, a música, o cinema dos anos 80 não eram apenas entretenimento – eram formas de esperança. David Bowie reinventava-se a cada álbum como um ato de liberdade. Nina Simone cantava Mississippi Goddam (1965) com fúria e beleza, lembrando-nos de que a arte pode ser uma arma. Em Portugal, os anos pós-Abril foram também anos de efervescência cultural: Zeca Afonso, Sérgio Godinho, o Zé Mário Branco, GNR, os Heróis do Mar, Delfins, Xutos & Pontapés, o Rui Veloso – todos usaram a música para pensar o País, sonhar e celebrar a liberdade, exigir justiça. A felicidade que recordamos não estava só nas cores ou nos ritmos – estava na sensação de que o coletivo podia mudar o mundo.
Hoje, essa sensação rareia. Vivemos em bolhas algorítmicas, isolados mesmo quando conectados, ansiosos mesmo quando “bem-sucedidos”. O trabalho não dá dignidade – dá exaustão. A casa, o carro, não são lar nem movimento necessários – são investimentos. O amor não é paixão – é gestão de expectativas. E o futuro? O futuro é um fardo. Por isso, agarramo-nos ao passado como quem se agarra a um salva-vidas. Mas um salva-vidas não leva a lado nenhum – só impede que se afogue.
E é nesse vazio que floresce o veneno político. Enquanto idealizamos um passado que nunca existiu – um Portugal homogéneo, tranquilo, “sem conflitos” –, alimentamos discursos que trocam liberdade por ordem. A xenofobia avança disfarçada de defesa da identidade nacional, como se a nossa História não tivesse sido feita de cruzamentos desde os tempos dos fenícios. A misoginia regressa sob o manto dos “valores tradicionais”, como se a emancipação das mulheres não tivesse sido uma das conquistas mais profundas e belas da democracia portuguesa. E a extrema-direita cresce, não com fardas, mas com sorrisos bem-ensaiados, mentiras e promessas vãs de segurança – promessas que, na prática, exigem o sacrifício do outro: do imigrante, da mulher que decide sobre o seu corpo, do jovem que exige um planeta habitável, de todos nós.
Tudo isto prospera num clima de desespero silencioso. Um desespero que não se manifesta em barricadas, mas em olhares cansados, em casas vazias de aldeias desertificadas, em famílias que trabalham dois turnos e ainda assim não conseguem pagar uma renda. Esse desespero não pede revolução – pede alívio. E é aí que entra a ilusão: a ideia de que voltar atrás é a solução. Mas voltar atrás para onde? Para um tempo em que as mulheres precisavam da autorização do marido para abrir uma conta bancária? Para uma sociedade onde falar contra o regime podia levar à prisão? Onde escrever um artigo, um poema, poderia ser censurado pelo lápis azul? Para um País que via o diferente como ameaça?
A “nowstalgia”, nesse sentido, é uma traição à memória. Porque o povo que fez o 25 de Abril não era um povo de ressentimento. Era um povo de esperança ativa. Sabia que o futuro não caía do céu – tinha de ser construído, disputado, defendido. E hoje, quando tantos repetem que “não há alternativa”, esquecem-se de que a própria democracia foi, um dia, a alternativa impossível que se tornou real.
Essa esperança ativa tinha um nome concreto: bem-estar. Não o bem-estar do consumo, mas o bem-estar da dignidade. O direito a um emprego que não humilhasse, a uma casa que não fosse provisória, a uma escola democrática que abrisse horizontes, a um hospital que acolhesse sem perguntar quem se era. Como escreveu o filósofo Agostinho da Silva, numa das suas Lições de Filosofia, “o tempo é o espaço da liberdade” – e essa liberdade só tem sentido quando permite viver com plenitude. Essa plenitude inclui o amor, a paixão, a felicidade – não como estados privados, mas como possibilidades coletivas. Um País onde se pode amar quem se quer, onde se pode sonhar sem vergonha, onde se pode envelhecer com cuidado, onde se pode nascer sem medo.
Foi essa visão que inspirou a Constituição de 1976, com os seus artigos sobre o direito ao Trabalho (art. 58º), à Saúde (art. 64º), à Educação (arts. 73º-79º), à Proteção na Velhice e na Doença. Não eram promessas abstratas – eram respostas a décadas de exclusão. Hoje, porém, esses direitos são tratados como encargos, como luxos que o País “não pode pagar”. A educação é mercantilizada, a saúde é precarizada, o emprego é desvalorizado, a habitação tornou-se um privilégio. E enquanto isso acontece, a “nowstalgia” distrai-nos com vinis, séries rétro e discursos sobre “valores perdidos” – como se os verdadeiros valores não fossem precisamente os que estão a ser desmantelados sob os nossos olhos.
José Saramago, que sempre viu o futuro como responsabilidade, escreveu com clareza implacável: “O futuro não é o que será, mas o que fazemos dele.” A frase, proferida em múltiplas entrevistas e recolhida no seu Caderno de Viagem (Caminho, 2001), não é otimismo ingénuo – é um apelo ético. E o que estamos a fazer do futuro? Estamos a permitir que o medo defina os limites do possível. Estamos a aceitar que a solidariedade seja chamada ingenuidade, que a justiça social seja rotulada de utopia irrealista. Mas a utopia, como bem nos lembrou Saramago noutra ocasião, é o horizonte que nos faz caminhar. Sem ela, ficamos parados – e o presente, inchado de ansiedade, devora-nos.
Fernando Pessoa, no Livro do Desassossego, confessou com inquietude profética: “O futuro é aquilo que ninguém quer, mas que todos terão.” Talvez tenha razão. Mas há uma diferença crucial entre sofrer o futuro e habitá-lo com intenção. A liberdade, como escreveu Sophia de Mello Breyner Andresen em O Nome das Coisas (Assírio & Alvim, 1977), é o espaço em que o homem pode ser justo. Não é um privilégio, nem um dado adquirido – é um campo de ação ética, que exige coragem, lucidez e compromisso com os outros.
Então, talvez a pergunta não seja “como voltar aos anos 80?”, mas “como recuperar a coragem que os anos 80, em parte, simbolizavam?” Não a inocência – essa nunca existiu –, mas a ousadia de imaginar. Porque a verdadeira felicidade nunca esteve no consumo do passado, mas na capacidade de construir um futuro comum.
Pensemos nos nossos filhos. Nos nossos netos. Nos nossos entes queridos. Que mundo estamos a legar-lhes? Um mundo onde o medo decide quem entra, quem fala, quem existe? Ou um mundo onde a liberdade – essa liberdade cara, conquistada com cravos e coragem – continua a ser um projeto vivo, exigente, interminável, eterno?
Chega de entregar o futuro à “nowstalgia” do medo. Chega de permitir que o presente, inchado de ansiedade e manipulação, devore o amanhã que os nossos avós sonharam e os nossos filhos merecem. O 25 de Abril não é uma fotografia emoldurada. É um compromisso. E esse compromisso chama-se: nunca mais!
Nunca mais haverá ditadura, mesmo que venha mascarada de normalidade. Nunca mais haverá racismo institucional, mesmo que se disfarce de “preocupação cultural”. Nunca mais mulheres caladas, nunca mais fronteiras fechadas à Humanidade, nunca mais um País que esquece que a sua força está na sua diversidade, na sua luta, na sua capacidade de sonhar coletivamente.
O futuro não é um destino. É uma responsabilidade. E essa responsabilidade começa agora – não na fuga, mas na presença. Não na “nowstalgia”, mas na ação consciente. Porque, como escreveu a Sophia de M. B. Andresen, a liberdade é o espaço em que o homem pode ser justo, repito – e esse espaço só existe se o construirmos, juntos, todos os dias.
N.B. Esta crónica é dedicada a todos os que ainda ouvem uma canção e sentem que o mundo pode mudar – porque, de facto, já mudou. Basta lembrar-mo-nos como.
Mas por que falo dos anos 80? Porque essa década, em particular, se tornou o santuário emocional de uma geração que, em muitos casos, nem a viveu? Talvez porque os anos 80 pareciam prometer um futuro sem catástrofe. A Guerra Fria ainda pairava, mas o muro ainda não tinha caído – e, por isso, havia ainda um “depois” imaginável. A tecnologia era simples, tangível: um walkman, um telefone fixo, um ecrã de televisão que não nos vigiava. Havia crise, claro – mas também música alta, cor, movimento. Madonna dançava como se o mundo fosse seu. Prince cantava sobre o desejo e a liberdade como se fossem direitos naturais. O cinema falava de viagens no tempo, de heróis improváveis, de mundos melhores ao virar da esquina. Era um tempo de hedonismo consciente: gozar o agora, sim – mas com a certeza de que o amanhã ainda estava por escrever.
Hoje, o hedonismo mudou de rosto. Já não é celebração – é fuga. Consumimos o passado como se fosse um analgésico: ouvimos vinis não pelo som superior, mas por calor humano; vestimos roupa vintage não por estilo, mas por segurança simbólica; vemos séries ambientadas nos anos 90 não por nostalgia real, mas por saudade de um tempo em que o futuro parecia pertencer-nos. A “nowstalgia” é, assim, uma forma de autopreservação psíquica. Diante da perda de controlo sobre o ambiente, a globalização desenfreada, a aceleração tecnológica e a incerteza climática, preferimos congelar o tempo. Como escreve Bronner no seu livro À L’Assaut du Réel (2023), “o presente tornou-se tão compacto que o seu campo gravitacional absorve a nossa imaginação e desvitaliza o futuro”.
Mas e se essa fuga for, na verdade, uma rendição?
Perguntemo-nos: quem beneficia com o nosso desinteresse pelo futuro? Quem lucra com a nossa crença de que “nada pode mudar”? Não são os que detêm o poder? Não são os que querem manter o mundo exatamente como está – desigual, seletivo, predatório – mas com um verniz de normalidade? A “nowstalgia” é perigosa não por ser doce, mas por ser passiva. Transforma a política em estética, a memória em mercadoria, a esperança em playlist.
E, no entanto, há algo de profundamente humano nesse desejo de regresso. Porque a arte, a música, o cinema dos anos 80 não eram apenas entretenimento – eram formas de esperança. David Bowie reinventava-se a cada álbum como um ato de liberdade. Nina Simone cantava Mississippi Goddam (1965) com fúria e beleza, lembrando-nos de que a arte pode ser uma arma. Em Portugal, os anos pós-Abril foram também anos de efervescência cultural: Zeca Afonso, Sérgio Godinho, o Zé Mário Branco, GNR, os Heróis do Mar, Delfins, Xutos & Pontapés, o Rui Veloso – todos usaram a música para pensar o País, sonhar e celebrar a liberdade, exigir justiça. A felicidade que recordamos não estava só nas cores ou nos ritmos – estava na sensação de que o coletivo podia mudar o mundo.
Hoje, essa sensação rareia. Vivemos em bolhas algorítmicas, isolados mesmo quando conectados, ansiosos mesmo quando “bem-sucedidos”. O trabalho não dá dignidade – dá exaustão. A casa, o carro, não são lar nem movimento necessários – são investimentos. O amor não é paixão – é gestão de expectativas. E o futuro? O futuro é um fardo. Por isso, agarramo-nos ao passado como quem se agarra a um salva-vidas. Mas um salva-vidas não leva a lado nenhum – só impede que se afogue.
E é nesse vazio que floresce o veneno político. Enquanto idealizamos um passado que nunca existiu – um Portugal homogéneo, tranquilo, “sem conflitos” –, alimentamos discursos que trocam liberdade por ordem. A xenofobia avança disfarçada de defesa da identidade nacional, como se a nossa História não tivesse sido feita de cruzamentos desde os tempos dos fenícios. A misoginia regressa sob o manto dos “valores tradicionais”, como se a emancipação das mulheres não tivesse sido uma das conquistas mais profundas e belas da democracia portuguesa. E a extrema-direita cresce, não com fardas, mas com sorrisos bem-ensaiados, mentiras e promessas vãs de segurança – promessas que, na prática, exigem o sacrifício do outro: do imigrante, da mulher que decide sobre o seu corpo, do jovem que exige um planeta habitável, de todos nós.
Tudo isto prospera num clima de desespero silencioso. Um desespero que não se manifesta em barricadas, mas em olhares cansados, em casas vazias de aldeias desertificadas, em famílias que trabalham dois turnos e ainda assim não conseguem pagar uma renda. Esse desespero não pede revolução – pede alívio. E é aí que entra a ilusão: a ideia de que voltar atrás é a solução. Mas voltar atrás para onde? Para um tempo em que as mulheres precisavam da autorização do marido para abrir uma conta bancária? Para uma sociedade onde falar contra o regime podia levar à prisão? Onde escrever um artigo, um poema, poderia ser censurado pelo lápis azul? Para um País que via o diferente como ameaça?
A “nowstalgia”, nesse sentido, é uma traição à memória. Porque o povo que fez o 25 de Abril não era um povo de ressentimento. Era um povo de esperança ativa. Sabia que o futuro não caía do céu – tinha de ser construído, disputado, defendido. E hoje, quando tantos repetem que “não há alternativa”, esquecem-se de que a própria democracia foi, um dia, a alternativa impossível que se tornou real.
Essa esperança ativa tinha um nome concreto: bem-estar. Não o bem-estar do consumo, mas o bem-estar da dignidade. O direito a um emprego que não humilhasse, a uma casa que não fosse provisória, a uma escola democrática que abrisse horizontes, a um hospital que acolhesse sem perguntar quem se era. Como escreveu o filósofo Agostinho da Silva, numa das suas Lições de Filosofia, “o tempo é o espaço da liberdade” – e essa liberdade só tem sentido quando permite viver com plenitude. Essa plenitude inclui o amor, a paixão, a felicidade – não como estados privados, mas como possibilidades coletivas. Um País onde se pode amar quem se quer, onde se pode sonhar sem vergonha, onde se pode envelhecer com cuidado, onde se pode nascer sem medo.
Foi essa visão que inspirou a Constituição de 1976, com os seus artigos sobre o direito ao Trabalho (art. 58º), à Saúde (art. 64º), à Educação (arts. 73º-79º), à Proteção na Velhice e na Doença. Não eram promessas abstratas – eram respostas a décadas de exclusão. Hoje, porém, esses direitos são tratados como encargos, como luxos que o País “não pode pagar”. A educação é mercantilizada, a saúde é precarizada, o emprego é desvalorizado, a habitação tornou-se um privilégio. E enquanto isso acontece, a “nowstalgia” distrai-nos com vinis, séries rétro e discursos sobre “valores perdidos” – como se os verdadeiros valores não fossem precisamente os que estão a ser desmantelados sob os nossos olhos.
José Saramago, que sempre viu o futuro como responsabilidade, escreveu com clareza implacável: “O futuro não é o que será, mas o que fazemos dele.” A frase, proferida em múltiplas entrevistas e recolhida no seu Caderno de Viagem (Caminho, 2001), não é otimismo ingénuo – é um apelo ético. E o que estamos a fazer do futuro? Estamos a permitir que o medo defina os limites do possível. Estamos a aceitar que a solidariedade seja chamada ingenuidade, que a justiça social seja rotulada de utopia irrealista. Mas a utopia, como bem nos lembrou Saramago noutra ocasião, é o horizonte que nos faz caminhar. Sem ela, ficamos parados – e o presente, inchado de ansiedade, devora-nos.
Fernando Pessoa, no Livro do Desassossego, confessou com inquietude profética: “O futuro é aquilo que ninguém quer, mas que todos terão.” Talvez tenha razão. Mas há uma diferença crucial entre sofrer o futuro e habitá-lo com intenção. A liberdade, como escreveu Sophia de Mello Breyner Andresen em O Nome das Coisas (Assírio & Alvim, 1977), é o espaço em que o homem pode ser justo. Não é um privilégio, nem um dado adquirido – é um campo de ação ética, que exige coragem, lucidez e compromisso com os outros.
Então, talvez a pergunta não seja “como voltar aos anos 80?”, mas “como recuperar a coragem que os anos 80, em parte, simbolizavam?” Não a inocência – essa nunca existiu –, mas a ousadia de imaginar. Porque a verdadeira felicidade nunca esteve no consumo do passado, mas na capacidade de construir um futuro comum.
Pensemos nos nossos filhos. Nos nossos netos. Nos nossos entes queridos. Que mundo estamos a legar-lhes? Um mundo onde o medo decide quem entra, quem fala, quem existe? Ou um mundo onde a liberdade – essa liberdade cara, conquistada com cravos e coragem – continua a ser um projeto vivo, exigente, interminável, eterno?
Chega de entregar o futuro à “nowstalgia” do medo. Chega de permitir que o presente, inchado de ansiedade e manipulação, devore o amanhã que os nossos avós sonharam e os nossos filhos merecem. O 25 de Abril não é uma fotografia emoldurada. É um compromisso. E esse compromisso chama-se: nunca mais!
Nunca mais haverá ditadura, mesmo que venha mascarada de normalidade. Nunca mais haverá racismo institucional, mesmo que se disfarce de “preocupação cultural”. Nunca mais mulheres caladas, nunca mais fronteiras fechadas à Humanidade, nunca mais um País que esquece que a sua força está na sua diversidade, na sua luta, na sua capacidade de sonhar coletivamente.
O futuro não é um destino. É uma responsabilidade. E essa responsabilidade começa agora – não na fuga, mas na presença. Não na “nowstalgia”, mas na ação consciente. Porque, como escreveu a Sophia de M. B. Andresen, a liberdade é o espaço em que o homem pode ser justo, repito – e esse espaço só existe se o construirmos, juntos, todos os dias.
N.B. Esta crónica é dedicada a todos os que ainda ouvem uma canção e sentem que o mundo pode mudar – porque, de facto, já mudou. Basta lembrar-mo-nos como.
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