Os tempos mudaram. E não foi para melhor. Numa altura em que o mundo parece desabar sobre as nossas cabeças, o discurso de promoção e incentivo ao ódio, ao preconceito e à violência contra pessoas singulares ou grupos específicos, cresce a olhos vistos. Se as famílias não colocarem como prioridade estabelecer limites a este fenómeno e se a escola pública e os seus professores não criarem, com caráter de urgênci,a um plano de ataque para esta problemática crescente, o quadro final será catastrófico.
Quem não viu ainda nos ecrãs da televisão ou, mais provável e frequentemente, nos grupos de whatsapp de alunos e pais, alguns vídeos que se tornam virais em poucos minutos com cenas com crianças e jovens a serem agredidos, gozados, humilhados perante um público que, em vez de agir de imediato, se limita a filmar? Basta deambular pelos corredores de uma escola multicultural como a minha para percebermos o quão fácil é, para um jovem adolescente, abrir a boca e humilhar, ofender, diminuir o outro, com base em características como a cor da pele, a religião, a orientação sexual, o estilo de vestuário, o corte de cabelo, o número de piercings e/ou tatuagens, entre outros.
No entanto, a escola não é o espaço embrionário para este tipo de discurso negativo contra grupos vulneráveis. Pelo contrário, ao longo dos últimos tempos, temos vindo a assistir a uma crescente aceitação do outro na escola pública. Em todas as turmas temos cada vez mais jovens marcadamente diferentes da maioria, quer pelo seu estilo alternativo, quer pela sua orientação sexual assumida sem medos. A normalização do discurso de ódio a que se vem assistindo surge de fora para dentro, impulsionado muitas vezes pela comunidade de onde estes jovens são oriundos e onde se integram (ou não). Por mais que opiniões desfavoráveis sobre determinados grupos ou indivíduos historicamente discriminados tenham vindo a surgir no discurso comum a que se assiste diariamente e, em grande parte, divulgados através de meios de comunicação social, a escola procura combater, de todos as formas possíveis, este tipo de discurso discriminatório.
A escola pública promove a educação em Direitos Humanos. Na minha disciplina, Português, surgem múltiplas oportunidades para este debate. Desde o profícuo debate a partir do estudo da epopeia lusitana aos vícios dos homens apresentados alegoricamente no Sermão de Santo António aos Peixes, passando pela mudança e pelo desconcerto do mundo presentes na lírica camoniana ou a falta de liberdade de expressão a partir do estudo da obra de Saramago, a língua materna permite múltiplos cenários de promoção dos Direitos Humanos. Mas acontecerá o mesmo nas outras disciplinas? Julgo mesmo que, em certos contextos, continuamos a agir como se o Holocausto não tivesse existido. E a escola deve trazer os Direitos Humanos para a agenda do dia, promovendo debates, criando experiências de inclusão e de solidariedade, incluindo-as no Plano de Atividades de todas as escolas, de todos os grupos disciplinares, de todas as áreas do saber, transversalmente alcançando todos, todos…
Como criar uma cultura de paz em escolas onde a diversidade étnica, religiosa, socioeconómica, de género, de estilo é tão gritante? Tenho na mesma sala de aula portugueses do bairro, membros de gangues, ciganos, negros, árabes, brasileiros de variadas vertentes religiosas e até uma aluna paquistanesa que usa hijab. Cada vez mais sinto a necessidade de ver fomentada na escola pública uma comunicação de respeito e de inclusão que promovam uma cultura de combate ao discurso de ódio que comece na sala de aula e se estenda, desta vez, ao exterior. Este é um desafio difícil mas urgente, uma vez que a onda de discursos de ódio está a alastrar-se e sai de casa para as ruas do bairro, para a cidade e para o mundo. Embora o Gabinete da Unesco para a Prevenção do Genocídio e a Responsabilidade de Proteger tenha desenvolvido um guia com algumas respostas educacionais, orientações e recomendações sobre a forma de fortalecer os sistemas educacionais para combater o discurso de ódio, estes parecem não ter sido divulgados pelas escolas, neste dias que correm, muito mais preocupadas com a sua diária burocracia estupidificante.
A publicação da Unesco, intitulada Enfrentar o discurso de ódio por meio da educação: um guia para formuladores de políticas (2023), aponta algumas soluções para prevenir e combater narrativas nocivas e discriminatórias na forma de xenofobia, racismo, antissemitismo, anti-islamismo e outros tipos de intolerância. Em consequência do rápido crescimento do número de utilizadores das redes sociais e da banalização de discursos populistas e extremistas por toda a Europa e pelo mundo, deve a escola através dos profissionais de ensino ajudar combater as narrativas de ódio. Neste sentido, a divulgação da Agenda Educação 2030 da Unesco, que faz parte de um movimento global para erradicar a pobreza através de 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável até 2030, coloca a Educação como um desses objetivos fundamentais (Objetivo número 4).
O discurso de ódio contra grupos minoritários e/ou desfavorecidos, já por si marginalizados, pode agudizar situações de exclusão social ao promover a intolerância e o desrespeito pelo “outro”. A escola, através de uma educação inclusiva e equitativa, capacitando indivíduos de grupos marginalizados e, consequentemente, promovendo a sua inclusão social, pode ser um fator-chave na minimização deste tipo de discurso.
Como podem a escola e os seus professores combater esta forma de discriminação e criar uma cultura de paz num ambiente de respeito por todos e para todos? Contrariar narrativas prejudiciais e discriminatórias passará, entre outros aspetos, pela capacitação de professores e alunos sobre os valores e práticas a respeitar na relação com os cidadãos globais e digitais, pela adoção de abordagens pedagógicas e de toda a escola para fortalecer a aprendizagem social e emocional. Contudo, nada disto será verdadeiramente eficaz sem uma reformulação de alguns conteúdos curriculares, adequando-os culturalmente e incluindo conteúdos promotores da tolerância e do direito às liberdades fundamentais ao ser humano.
Numa altura em que a liberdade de expressão se revela cada vez mais necessária para as democracias e em que o discurso de ódio se propaga, é prioritário combater cenários de agressividade e de intolerância que ocorrem no dia a dia das nossas escolas, desenvolvendo na comunidade escolar um olhar crítico em relação a todo e qualquer tipo de discriminação.
Não é depois do discurso de ódio estar implementado que se deve agir. Este deve ser prevenido desde cedo através da construção permanente de diálogos sobre respeito pela diversidade, atividades que desenvolvam o pensamento crítico e promovam aprendizagens sociais e emocionais. Para que serve a escola, afinal, se não for para enfrentar os “desafios mundiais à paz, à justiça, aos direitos humanos, à igualdade de género, ao pluralismo, ao respeito à diversidade e à democracia?” (UNESCO)
Recordemos as palavras de Eduardo Sá, psicólogo clínico e psicanalista, num texto publicado no Observador (17/01/21): “O discurso do ódio, de que tanto se fala, é construído por nós, todos os dias. Não que o façamos de forma intencional, claro. Mas enquanto não educarmos para se saber escutar, para se pensar com aquilo que se sente, para se aprender com os outros, enquanto não se reeducar as pessoas para a palavra (…), menos os nossos filhos (e alunos) encontrarão na diversidade os argumentos com que apurem a singularidade.”
A escola, repito, joga neste tabuleiro um papel fundamental.

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