segunda-feira, 20 de outubro de 2025

Bem-vindos à era da 'nowstalgia'

Será que ainda controlamos as nossas vidas? Ou será que, sem darmos por isso, entregámos o leme a forças invisíveis – algoritmos que decidem o que vemos, mercados que ditam o valor do nosso trabalho, crises nacionais e internacionais que se sucedem como temporais sem fim? Vivemos num tempo em que o futuro deixou de ser um horizonte e se tornou uma ameaça. E, diante dessa ameaça, fazemos algo estranho: voltamo-nos para trás. Não para a História, mas para uma versão suavizada do passado recente – os anos 80, sobretudo – como se ali, entre sintetizadores, calças de ganga justas e videoclipes coloridos, tivéssemos perdido uma felicidade que agora nos escapa. É a isso que o sociólogo francês Gérald Bronner, professor na Universidade de Sorbonne, chama “nowstalgia”: a nostalgia do presente, ou, mais precisamente, a recusa de deixar o presente ir embora, porque o futuro já não nos pertence.

Mas por que falo dos anos 80? Porque essa década, em particular, se tornou o santuário emocional de uma geração que, em muitos casos, nem a viveu? Talvez porque os anos 80 pareciam prometer um futuro sem catástrofe. A Guerra Fria ainda pairava, mas o muro ainda não tinha caído – e, por isso, havia ainda um “depois” imaginável. A tecnologia era simples, tangível: um walkman, um telefone fixo, um ecrã de televisão que não nos vigiava. Havia crise, claro – mas também música alta, cor, movimento. Madonna dançava como se o mundo fosse seu. Prince cantava sobre o desejo e a liberdade como se fossem direitos naturais. O cinema falava de viagens no tempo, de heróis improváveis, de mundos melhores ao virar da esquina. Era um tempo de hedonismo consciente: gozar o agora, sim – mas com a certeza de que o amanhã ainda estava por escrever.


Hoje, o hedonismo mudou de rosto. Já não é celebração – é fuga. Consumimos o passado como se fosse um analgésico: ouvimos vinis não pelo som superior, mas por calor humano; vestimos roupa vintage não por estilo, mas por segurança simbólica; vemos séries ambientadas nos anos 90 não por nostalgia real, mas por saudade de um tempo em que o futuro parecia pertencer-nos. A “nowstalgia” é, assim, uma forma de autopreservação psíquica. Diante da perda de controlo sobre o ambiente, a globalização desenfreada, a aceleração tecnológica e a incerteza climática, preferimos congelar o tempo. Como escreve Bronner no seu livro À L’Assaut du Réel (2023), “o presente tornou-se tão compacto que o seu campo gravitacional absorve a nossa imaginação e desvitaliza o futuro”.

Mas e se essa fuga for, na verdade, uma rendição?

Perguntemo-nos: quem beneficia com o nosso desinteresse pelo futuro? Quem lucra com a nossa crença de que “nada pode mudar”? Não são os que detêm o poder? Não são os que querem manter o mundo exatamente como está – desigual, seletivo, predatório – mas com um verniz de normalidade? A “nowstalgia” é perigosa não por ser doce, mas por ser passiva. Transforma a política em estética, a memória em mercadoria, a esperança em playlist.

E, no entanto, há algo de profundamente humano nesse desejo de regresso. Porque a arte, a música, o cinema dos anos 80 não eram apenas entretenimento – eram formas de esperança. David Bowie reinventava-se a cada álbum como um ato de liberdade. Nina Simone cantava Mississippi Goddam (1965) com fúria e beleza, lembrando-nos de que a arte pode ser uma arma. Em Portugal, os anos pós-Abril foram também anos de efervescência cultural: Zeca Afonso, Sérgio Godinho, o Zé Mário Branco, GNR, os Heróis do Mar, Delfins, Xutos & Pontapés, o Rui Veloso – todos usaram a música para pensar o País, sonhar e celebrar a liberdade, exigir justiça. A felicidade que recordamos não estava só nas cores ou nos ritmos – estava na sensação de que o coletivo podia mudar o mundo.

Hoje, essa sensação rareia. Vivemos em bolhas algorítmicas, isolados mesmo quando conectados, ansiosos mesmo quando “bem-sucedidos”. O trabalho não dá dignidade – dá exaustão. A casa, o carro, não são lar nem movimento necessários – são investimentos. O amor não é paixão – é gestão de expectativas. E o futuro? O futuro é um fardo. Por isso, agarramo-nos ao passado como quem se agarra a um salva-vidas. Mas um salva-vidas não leva a lado nenhum – só impede que se afogue.

E é nesse vazio que floresce o veneno político. Enquanto idealizamos um passado que nunca existiu – um Portugal homogéneo, tranquilo, “sem conflitos” –, alimentamos discursos que trocam liberdade por ordem. A xenofobia avança disfarçada de defesa da identidade nacional, como se a nossa História não tivesse sido feita de cruzamentos desde os tempos dos fenícios. A misoginia regressa sob o manto dos “valores tradicionais”, como se a emancipação das mulheres não tivesse sido uma das conquistas mais profundas e belas da democracia portuguesa. E a extrema-direita cresce, não com fardas, mas com sorrisos bem-ensaiados, mentiras e promessas vãs de segurança – promessas que, na prática, exigem o sacrifício do outro: do imigrante, da mulher que decide sobre o seu corpo, do jovem que exige um planeta habitável, de todos nós.

Tudo isto prospera num clima de desespero silencioso. Um desespero que não se manifesta em barricadas, mas em olhares cansados, em casas vazias de aldeias desertificadas, em famílias que trabalham dois turnos e ainda assim não conseguem pagar uma renda. Esse desespero não pede revolução – pede alívio. E é aí que entra a ilusão: a ideia de que voltar atrás é a solução. Mas voltar atrás para onde? Para um tempo em que as mulheres precisavam da autorização do marido para abrir uma conta bancária? Para uma sociedade onde falar contra o regime podia levar à prisão? Onde escrever um artigo, um poema, poderia ser censurado pelo lápis azul? Para um País que via o diferente como ameaça?

A “nowstalgia”, nesse sentido, é uma traição à memória. Porque o povo que fez o 25 de Abril não era um povo de ressentimento. Era um povo de esperança ativa. Sabia que o futuro não caía do céu – tinha de ser construído, disputado, defendido. E hoje, quando tantos repetem que “não há alternativa”, esquecem-se de que a própria democracia foi, um dia, a alternativa impossível que se tornou real.

Essa esperança ativa tinha um nome concreto: bem-estar. Não o bem-estar do consumo, mas o bem-estar da dignidade. O direito a um emprego que não humilhasse, a uma casa que não fosse provisória, a uma escola democrática que abrisse horizontes, a um hospital que acolhesse sem perguntar quem se era. Como escreveu o filósofo Agostinho da Silva, numa das suas Lições de Filosofia, “o tempo é o espaço da liberdade” – e essa liberdade só tem sentido quando permite viver com plenitude. Essa plenitude inclui o amor, a paixão, a felicidade – não como estados privados, mas como possibilidades coletivas. Um País onde se pode amar quem se quer, onde se pode sonhar sem vergonha, onde se pode envelhecer com cuidado, onde se pode nascer sem medo.

Foi essa visão que inspirou a Constituição de 1976, com os seus artigos sobre o direito ao Trabalho (art. 58º), à Saúde (art. 64º), à Educação (arts. 73º-79º), à Proteção na Velhice e na Doença. Não eram promessas abstratas – eram respostas a décadas de exclusão. Hoje, porém, esses direitos são tratados como encargos, como luxos que o País “não pode pagar”. A educação é mercantilizada, a saúde é precarizada, o emprego é desvalorizado, a habitação tornou-se um privilégio. E enquanto isso acontece, a “nowstalgia” distrai-nos com vinis, séries rétro e discursos sobre “valores perdidos” – como se os verdadeiros valores não fossem precisamente os que estão a ser desmantelados sob os nossos olhos.

José Saramago, que sempre viu o futuro como responsabilidade, escreveu com clareza implacável: “O futuro não é o que será, mas o que fazemos dele.” A frase, proferida em múltiplas entrevistas e recolhida no seu Caderno de Viagem (Caminho, 2001), não é otimismo ingénuo – é um apelo ético. E o que estamos a fazer do futuro? Estamos a permitir que o medo defina os limites do possível. Estamos a aceitar que a solidariedade seja chamada ingenuidade, que a justiça social seja rotulada de utopia irrealista. Mas a utopia, como bem nos lembrou Saramago noutra ocasião, é o horizonte que nos faz caminhar. Sem ela, ficamos parados – e o presente, inchado de ansiedade, devora-nos.

Fernando Pessoa, no Livro do Desassossego, confessou com inquietude profética: “O futuro é aquilo que ninguém quer, mas que todos terão.” Talvez tenha razão. Mas há uma diferença crucial entre sofrer o futuro e habitá-lo com intenção. A liberdade, como escreveu Sophia de Mello Breyner Andresen em O Nome das Coisas (Assírio & Alvim, 1977), é o espaço em que o homem pode ser justo. Não é um privilégio, nem um dado adquirido – é um campo de ação ética, que exige coragem, lucidez e compromisso com os outros.

Então, talvez a pergunta não seja “como voltar aos anos 80?”, mas “como recuperar a coragem que os anos 80, em parte, simbolizavam?” Não a inocência – essa nunca existiu –, mas a ousadia de imaginar. Porque a verdadeira felicidade nunca esteve no consumo do passado, mas na capacidade de construir um futuro comum.

Pensemos nos nossos filhos. Nos nossos netos. Nos nossos entes queridos. Que mundo estamos a legar-lhes? Um mundo onde o medo decide quem entra, quem fala, quem existe? Ou um mundo onde a liberdade – essa liberdade cara, conquistada com cravos e coragem – continua a ser um projeto vivo, exigente, interminável, eterno?

Chega de entregar o futuro à “nowstalgia” do medo. Chega de permitir que o presente, inchado de ansiedade e manipulação, devore o amanhã que os nossos avós sonharam e os nossos filhos merecem. O 25 de Abril não é uma fotografia emoldurada. É um compromisso. E esse compromisso chama-se: nunca mais!

Nunca mais haverá ditadura, mesmo que venha mascarada de normalidade. Nunca mais haverá racismo institucional, mesmo que se disfarce de “preocupação cultural”. Nunca mais mulheres caladas, nunca mais fronteiras fechadas à Humanidade, nunca mais um País que esquece que a sua força está na sua diversidade, na sua luta, na sua capacidade de sonhar coletivamente.

O futuro não é um destino. É uma responsabilidade. E essa responsabilidade começa agora – não na fuga, mas na presença. Não na “nowstalgia”, mas na ação consciente. Porque, como escreveu a Sophia de M. B. Andresen, a liberdade é o espaço em que o homem pode ser justo, repito – e esse espaço só existe se o construirmos, juntos, todos os dias.

N.B. Esta crónica é dedicada a todos os que ainda ouvem uma canção e sentem que o mundo pode mudar – porque, de facto, já mudou. Basta lembrar-mo-nos como.

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