terça-feira, 28 de janeiro de 2020

Os anos 20

É tentador começar o ano, para não dizer a década, fazendo prognósticos e traçando cenários. Contudo, prognósticos e cenários são perigosos, sobretudo em tempos de tamanha incerteza. Se antes já era difícil olhar para a frente e enxergar com alguma nitidez, hoje essa tarefa está ainda mais complicada devido à rapidez com que grandes acontecimentos se dão, além da falta de referências para os temas que dominam a formulação de qualquer visão de longo prazo. Penso, por exemplo, na crise climática, no agravamento das tensões geopolíticas globais, na falta de margem de manobra para as políticas de estabilização nos países avançados em caso de desaceleração econômica, no deslocamento da força de trabalho proveniente da automação, na ascensão do populismo-nacionalista. Um tema que tem, contudo, algum tipo de referência histórica para balizar nosso juízo é a ascensão do nacionalismo.

Tenho lido sobre aqueles anos 20 por várias razões, mas a principal delas é traçar possíveis paralelos entre a ascensão das políticas econômicas de cunho nacionalista de então e o ressurgimento do nacionalismo que temos testemunhado mundo afora. Evidentemente, as origens são um pouco distintas. No século passado, o nacionalismo começou a renascer no período entre guerras e ganhou força total depois da crise de 1929.

Nos países avançados, ao menos, a motivação nacionalista teve origem na necessidade de buscar a autossuficiência econômica, sobretudo durante a Grande Depressão. No nacionalismo atual, não há tendência à autossuficiência como outrora. O que há é uma reação aos deslocamentos provocados pela automação, pela ascensão da China, pela perda de poder econômico e político das classes médias tradicionais dos países avançados. É claro que há guerras culturais de todo tipo no meio do caminho, além de uma tendência nefasta de se agarrar a ideias e pensamentos mal formulados ou francamente equivocados, falsos. Mas, apesar das origens diferentes marcadas por épocas muito distintas, o instinto nacionalista é, na essência, o mesmo: tratar de que seu país não só não perca status, mas, sobretudo, avance, ainda que isso possa prejudicar os demais. Esse modo de pensar — em si equivocado, pois o avanço em detrimento dos demais não é sustentável — esteve presente nos anos 1920 e está de volta entre nós em 2020.


Não é uma tendência fácil de reverter, pois a retórica política é poderosa: quem não quer se sobrepor aos demais? Quem não aceita com facilidade a noção de que, se há problemas em determinado país, as causas só podem ser externas? Afinal, culpar os outros por suas deficiências e problemas é algo profundamente humano.

Na área econômica não é necessário ser estatizante para ser nacionalista. Mussolini elegeu-se democraticamente em 1922, com a plataforma: “Nosso sonho é uma Itália romana!”. O saudosismo e a busca pelo renascimento de um passado de glórias é a característica mais forte do nacionalismo. No entanto, entre 1922 e 1925, Mussolini adotou políticas econômicas para liberal nenhum botar defeito. Ajustou as contas públicas, permaneceu comprometido com o livre-comércio, implantou reformas para reduzir o tamanho do Estado e o grau de intervencionismo econômico.

Durante esses três anos, quem quisesse dizer que a Itália era um sucesso apesar do fascismo poderia fazê-lo sem susto. A economia cresceu, o comércio se expandiu, durante algum tempo a inflação ficou sob controle. Mas, nacionalista que é nacionalista não apenas quer se manter no poder — Mussolini largou as pretensões democráticas em 1925 —, como também não resiste à tentação de controlar a economia para seus próprios fins, a Itália romana. A partir de 1926, o regime fascista começou a flertar com o dirigismo estatal, o que se acentuou profundamente após a crise de 1929. Em 1935, todas as esferas da vida econômica eram controladas pelo Estado, inclusive os salários. Para conter a escalada inflacionária, o regime implantou não uma, mas três compressões salariais. Em cada uma delas reduziu os salários nominais entre 10% e 30%.

Não estou dizendo que a Itália dos anos 1920 seja o Brasil dos anos 2020, até porque esse não é um artigo sobre o Brasil. O que quero ressaltar é que, em um mundo em reviravoltas, o impensável pode acontecer. Em um mundo em reviravoltas, até um liberal exemplar é capaz de cortar todas as suas liberdades, a começar pela de ter um salário que garanta sua sobrevivência. Bem-vindos aos anos 20.
Monica de Bolle

O presidente cada vez menos humano

“O índio está evoluindo. Cada vez mais ele é um ser humano igual a nós”, disse Jair Bolsonaro, dias atrás. A frase é tão equivocada e ofensiva que, invertida, faria mais sentido: “Jair Bolsonaro está ‘involuindo’. Cada vez menos ele é um ser humano igual a nós”. 

A noção de que preservar, cultivar a harmonia com a natureza, excluir o extrativismo predatório, querer rios limpos e viver conforme costumes ancestrais fazem dos povos indígenas seres “menos humanos” foi expressa num contexto em que Bolsonaro defendia que é aspiração de todo indígena evoluído comercializar suas riquezas através do sistema de trocas branco. 

Em outras palavras, índio que licencia terra para a mineração, ou que vende seus princípios por um punhado de moedas, é índio evoluído. Índio que quer preservar a floresta é um ser pré-humano enjaulado num zoológico, analogia preferida de Jair. 



O presidente que, em meados do ano passado, abordado por um turista de ascendência asiática, perguntou se “está tudo pequenininho aí”, demonstra, mais uma vez, o quão pequenininha é sua autonomia de voo intelectual. Seus raciocínios revelam a ausência de qualquer contato inteligente com o campo da antropologia, essa coisa de esquerdopata, de acordo com o corolário dos apedeutas. 

Bolsonaro é daqueles que consideram “índio” uma coisa só, e não um conjunto de povos que agrega diversas etnias e dinâmicas socioculturais, práticas, visões de mundo, linguagens e conhecimentos. Que poderiam, inclusive, ser aproveitados numa perspectiva econômica sustentável, auspiciosa, bastante documentada pelo ambientalismo mais avançado.
De acordo com o presidente, um ser humano igual a “nós” (nós quem, cara pálida?) pensa e age de acordo com a lei do mais forte. Se alguém disser ao presidente que é possível ser diferente e, ao mesmo tempo, igualmente humano, sua cuca vai fundir com essa coisa de paradoxo aí e ele vai precisar de férias. 

É claro seu apego, provavelmente intuitivo ou de orelhada, ao darwinismo social, que provocava ânsias de vômito no próprio Darwin. Hitler era adepto dessa excrescência e adorava comparar gente com animais predadores. Considerava as minorias sempre fracas, destinadas a perecer. 

Bolsonaro já disse, mais de uma vez, com todas as palavras, que as minorias que não se adaptarem devem se curvar às maiorias... ou desaparecer. Ou seja, minoria boa é a que marcha com a maioria. Às minorias rebeldes, o extermínio. 

A democracia é o oposto disso: necessita que a maioria esteja sempre constrangida pelas minorias. O fascismo nasceu de alianças (atenção: “alianças”) que pregavam o uso da força pela maioria. Seu símbolo era um feixe (fascio), espécie de machado revestido de varas de madeira, de origem romana. 

Os atuais cartesianos propalam que o governo não tem nada a ver com isso mas é tão somente de extrema-direita. Não querem ver os paralelos orgânicos, não estatutários, que, de analogia em analogia, de ofensa em ofensa, de exclusão em exclusão, vão espraiando o fascismo pelos grotões da República.

Enquanto o Brasil esvazia BNDES, a China cria um BNDES dela aqui

O maior problema da discussão política são as aparências. Muitas vezes elas nos enganam. Aqui na Tribuna da Internet, é comum surgirem comentários propondo a privatização ou até extinção do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social). Esse tipo de colocação resulta da ignorância reinante sobre a importância da atuação do banco nos diversos ciclos de crescimento socioeconômico que levaram o Brasil a se tornar uma das dez maiores economias do mundo.

Os defensores da extinção ou privatização do banco de fomento esquecem que o Brasil somente se industrializou porque o BNDES oferecia ao empresário brasileiro juros no padrão internacional. Criado através da Lei nº 1.628, em 20 de junho de 1952, durante o governo constitucional de Getúlio Vargas, o então BNDE (sem a rubrica Social) surgiu com a dupla incumbência de realizar planejamentos e implantar políticas consideradas fundamentais para o avanço da industrialização. Em síntese, o Banco seria o principal formulador e executor da política nacional de desenvolvimento econômico. E cuidou brilhantemente dessa atribuição.


No início da década de 90, o governo da China enviou uma delegação de economistas ao Brasil para estudar o funcionamento do BNDES, que era então o maior banco de desenvolvimento do mundo, com capital superior ao do grupo bancário KfW, o BNDES germânico, cuja atuação foi fundamental para a recuperação econômica da antiga Alemanha Oriental.

Com base na estrutura enxuta do BNDES, o governo chinês criou sua própria instituição de fomento – o Banco de Desenvolvimento da China, que hoje é o maior do mundo, e trabalha em conjunto com o Eximbank chinês, enquanto no Brasil o BNDES acumula as duas funções – apoio à indústria e às exportações.

Essa história nada tem de original. Parodiando o cineasta George Stevens, pode-se dizer que assim caminha a Humanidade, porque as iniciativas que dão certo num país são logo adotadas por outras nações.

O que se deve estranhar é que, enquanto no Brasil é defendida a privatização ou até extinção do BNDES, um dos maiores grupos industriais de China, a estatal XCMG, anuncia a criação de um banco no Brasil para competir com o BNDES no financiamento de equipamentos industriais e agrícolas.

Grupo XCMG pretende financiar por meio da instituição R$ 300 milhões em até cinco anos. Esse banco que está sendo criado no Brasil é o primeiro no mundo, porque mesmo na China, o grupo não atua no sistema financeiro

“O banco pretende ajudar muito a infraestrutura brasileira, oferecendo máquinas melhores a juros baixos”, afirmou o presidente da instituição, Wang Min, em entrevista à Folha de S.Paulo no último dia 6.

O grupo XCMG pretende financiar por meio da instituição R$ 300 milhões em até cinco anos. A criação do banco foi autorizada pela equipe econômica (leia-se: Banco Central) em outubro de 2019 e o início da operação está previsto para o primeiro trimestre deste ano.

Em novembro, a China direcionou mais de US$ 100 bilhões de pelo menos cinco fundos estatais para uma nova rodada de investimentos no Brasil. Pequim também sinalizou com uma expansão do crédito por meio de seus bancos no Brasil para competir principalmente por clientes do agronegócio e da indústria.

Em tradução simultânea, o banco chinês deve competir diretamente com o BNDES, servindo como linha auxiliar para a China dominar o crescente mercado brasileiro das máquinas agrícolas, em prejuízo da indústria nacional, cada vez mais sucateada.

Pensamento do Dia


Davos verde e o Brasil

Em 1971, Klaus Schwab organizou o Simpósio Europeu de Gestão. A partir de 1987, passou a ser conhecido como o Fórum Econômico de Davos, Genebra. Desde então, o Fórum se reúne, congregando chefes de Estado, cientistas, lideranças empresariais, acadêmicos, líderes políticos, jornalistas, um público eclético para discutir as questões estratégicas para o futuro da humanidade.

Segundo Schawb, os dois modelos de capitalismo – “o capitalismo de acionistas” e “o capitalismo de estado” – se esgotaram. Urge, segundo ele, dar um significado concreto ao que denomina de “capitalismo das partes interessadas” (stakeholders capitalism). A rigor, é um reconhecimento tardio de que a noção de progresso, gestada no industrialismo, revelou-se insustentável diante dos limites ambientais e do imperativo ético de maior equidade social.

Neste novo desenho, estão estabelecidas premissas que jamais deveriam ser ignoradas e novas premissas, completando um amplo compromisso entre as “partes interessadas”: pagamento justo de impostos, tolerância zero com a corrupção, estímulo à qualificação dos empregados, uso ético de informações privadas na era digital (sobre o assunto é imperdível o documentário “Privacidade Hackeada”), vigilância dos direitos humanos em toda cadeia de fornecedores, remuneração responsável dos executivos, proteção ao meio ambiente para as futuras gerações (empresários e banqueiros receberam uma carta assinada por Schwab e pelos presidentes do BanK of America, da gigante holandesa Royal DSM com o compromisso de zerar emissões líquidas de gases do efeito estufa de suas companhias, tornando-se neutras até 2050).

Pela dimensão ambiental, o encontro está sendo chamado de “Davos verde”: 51 painéis abordam ecologia, 50, geopolítica e 27, economia, enquanto que o painel “Assegurando o futuro sustentável para Amazônia” não tem representante do governo brasileiro.

Mais uma vez, nosso país ratifica as sábias palavras de Mario Henrique Simonsen: “O Brasil é o país das oportunidades perdidas”. Para nós, a questão ambiental não é um limite, mas uma oportunidade singular para consolidar a economia de baixo carbono e dela aproveitar as vantagens competitivas no mercado internacional. É ocioso mencionar nossas potencialidades; limitar o debate a conflitos pontuais com foco na eficácia dos instrumentos de controle e de comando.

Eis o grave equívoco do governo: o olhar periférico sobre o tema em prejuízo da percepção conceitual do fenômeno. Não há caminho fora do diálogo eco-eco. Foi-se o tempo em que custo ambiental era uma “externalidade” à função de produção. Hoje tem preço mensurável e valor ético. O Brasil vem perdendo suas cores. Resta o cinza.

Corra!

Toda dia na África um leão acorda.
Ele sabe que deve correr
mais do que a gazela ou morrer de fome.
Todo dia na África uma gazela acorda.
Ela sabe que deve correr mais que o leão ou morrer.
Quando o sol surge no horizonte
não importa se você é leão ou gazela.
Corra!
Anônimo

As lives e os tuítes de Bolsonaro importam para julgar seu governo?

Não há nada de errado numa fala informal e espontânea. Quando Bolsonaro faz uma piada improvisada sobre o preço da carne, isso não suscita críticas. A piadinha aí é uma marca de autenticidade que o aproxima do cidadão comum. Mas e quando a fala é uma arma de ataque? Ou quando ela mente?

Deveríamos nos preocupar ou nos ater apenas aos atos do governo e ignorar as falas como um ruído mais ou menos inócuo?

Não raro, o presidente, seus ministros ou seus filhos acusam pessoas ou instituições ou ofendem valores importantes de nossa sociedade.

Alguns exemplos de acusações falsas: o presidente acusou Ricardo Galvão, então diretor do Inpe, de estar a serviço de ONGs. Acusou os ambientalistas de Alter do Chão de serem responsáveis por queimadas. Acusou um ex-assessor seu de participar do complô para matá-lo. O ministro da Educação acusou as universidades federais de cultivarem plantações extensivas de maconha. O ministro do Meio Ambiente insinuou que o Greenpeace estaria ligado ao vazamento de óleo no Nordeste.

A fala de um líder se presta a diversos fins: um deles é mover os sentimentos de quem os ouve, transmitindo medo ou esperança, ódio ou conciliação; agregar ou dividir. As paixões das massas guardam um enorme poder, e por isso também enormes perigos. O dia do Holocausto, lembrado nesta segunda-feira (27), nos mostra o poder de destruição de um povo tomado pelo medo paranoico e pelo ódio. Buscar levar as paixões do povo ao extremo é a marca de um líder que busca o poder tirânico.

A fala também revela os valores e o caráter de quem a profere. No passado, seria um motivo de vergonha para um presidente se ele xingasse uma deputada federal de gorda e fizesse desse humor seu motivo para desmerecê-la publicamente. Hoje, não. Essa conduta do presidente Bolsonaro é motivo de orgulho para seus seguidores, que celebram a cada “mitada”.

Por fim, a linguagem costumava ter uma outra finalidade: comunicar a verdade. Regra que, se sistematicamente quebrada, acabaria com a razão de ser da fala. Em outros tempos, ser pego numa mentira flagrante —especialmente se dirigida contra alguém— era um motivo de desonra.

Hoje em dia, não. Mente-se e acusa-se impunemente, sabendo que na cacofonia ininterrupta de tuítes e gritos tudo isso será esquecido. Ficamos anestesiados à verdade, que aliás é impossível de ser devidamente averiguada se cada um fala uma coisa diferente e quem mente não responde por seus atos.

Conforme a linguagem vai sendo desgastada, seu conteúdo deixa de importar. É tudo uma questão de ser pró ou contra o governo, numa luta de paixões cada vez mais violentas porque incapaz de ser resolvida com palavras, isto é, com a razão. A dualidade radical e inegociável entre amigo e inimigo, que, num momento de crise terminal ou estado de exceção é realmente o fator determinante da política, se transforma no estado de espírito normal do cotidiano.

As tais “instituições” que garantem a democracia existem apenas em nossas mentes; existem na medida em que pessoas limitam algumas ações em nome do respeito a certas regras que, mesmo que não as beneficiem naquele momento, são importantes para o funcionamento justo do sistema.

Se, à custa de calúnias e teorias da conspiração, uma parcela relevante da população passar a odiá-las, a democracia estará em risco. Neste momento, ela resiste. Mas será possível cravar que o trabalho presidencial de corroê-la gradativamente por meio das palavras não terá efeito nenhum? Eu não iria tão longe.
Joel Pinheiro da Fonseca

Minha triste lembrança de Auschwitz

Há 41 anos entrei pela primeira vez na memória do campo de concentração de Auschwitz como enviado especial deste jornal por ocasião da primeira visita de um Papa, a do polonês João Paulo II, a um campo de concentração nazista.

Perguntam-me hoje o que senti há 41 anos ao pisar naquele lugar de tragédia e morte onde mais de um milhão de pessoas perderam a vida. Se for verdade que um jornalista, assim como um cirurgião, deve deixar seus sentimentos pessoais em casa na hora de recolher os fatos da vida para contar aos outros, também é verdade que às vezes isso é impossível. Assim foi para mim aquela visita a Auschwitz, que convulsionou meus sentimentos e ainda não foi apagada da memória.

No portal, "o trabalho liberta"
Também tive o privilégio de ser o único jornalista que conseguiu entrar com o Papa polonês na câmara da morte, onde deixavam os prisioneiros morrerem de fome e sede. O Papa estava acompanhado por um senhor idoso que carregava um maço de flores vermelhas nos braços. Era um dos prisioneiros que tinha se salvado de entrar naquela câmara da morte porque um companheiro, que era padre, o hoje canonizado por aquele Papa como São Kolbe.

Naquele dia tive a intuição de ir antes do resto dos jornalistas ao campo para ter uma experiência pessoal da visita. Ainda me lembro do calafrio que senti percorrendo aquele lugar de morte. Só não me atrevi a entrar nos fornos crematórios onde crianças e mulheres foram queimadas.

O Papa estava acompanhado, entre as autoridades do Vaticano, do substituto da Secretaria de Estado, o monsenhor espanhol Eduardo Martínez Somalo, um progressista que me conhecia e me acenou para que eu pudesse entrar com as quatro ou cinco pessoas que acompanhavam o Papa. Contaram-nos que quando colocaram naquela câmara da morte o prisioneiro Maximiliano Kolbe, que havia se oferecido para morrer no lugar de seu companheiro de campo que tinha família e vários filhos, todos iam morrendo, exceto ele, que continuava vivo e rezando. Como precisavam de espaço para colocar outros condenados à morte, acabaram lhe dando uma injeção letal.

De Auschwitz, o Papa foi visitar o campo de Brzezinka, a três quilômetros de distância, onde havia túmulos escritos em todas as línguas. O que mais impressionou foi a visita do Papa ao túmulo escrito em hebraico e ao escrito em russo. Diante daquele escrito em hebraico, lembrando a tragédia do Holocausto sofrido pelo povo judeu, o Papa disse que estava “diante de um novo Gólgota” e que ninguém podia passar indiferente por aquele túmulo. Diante do túmulo escrito em russo, improvisando algumas palavras que não estavam no discurso oficial, faz uma apologia do que a Rússia havia feito para libertar a Europa da tragédia da Segunda Guerra Mundial.

As boas relações entre o Papa polonês e o povo judeu eram conhecidas, a ponto de que se chegou a escrever que Wojtyla era viúvo quando decidiu se tornar sacerdote. Parece que tinha como noiva uma jovem judia com quem, antes de ter sido levada para um campo de concentração para morrer, havia feito um casamento de consciência.

O que surpreendeu em suas palavras a favor do papel da Rússia foi a ênfase em defender o papel de libertadora, uma vez que era conhecida a oposição radical que o Papa tinha com os comunistas na Polônia. Lá, porém, João Paulo II esqueceu sua ideologia para fazer um apelo ao mundo sobre a defesa dos valores da liberdade.

De Auschwitz, permiti-me levar naquele dia uma flor minúscula, uma espécie de cíclame que brotara entre duas pedras ao lado da cerca do campo. Aquela flor ficou na minha carteira durante muito tempo, junto da minha carteira de identidade. Um dia, caiu nas mãos de alguns policiais. Tinham me parado em uma estrada na Itália. Aparentemente, um dos faróis do meu carro não estava funcionando. Pediram-me a carteira de identidade e com ela veio a pequena flor já seca. Um dos policiais a viu e, muito à italiana, me disse que não me multaria porque eu “era muito romântico”. Nunca imaginou que aquela flor era qualquer coisa menos romântica. Carregava todo o peso da memória do inferno do Holocausto.

Teólogos da Igreja luterana escreveram que depois de Auschwitz “não seria mais possível acreditar em Deus”. O que se pode perguntar, 75 anos depois daquela loucura de morte, é se ainda é possível continuar acreditando no homem e nos valores da civilização. E se o mundo não está dando motivos hoje, com suas tentações de retorno à barbárie, para desconfiar que tenha aprendido e para sempre com aquela que foi uma das experiências mais trágicas perpetradas pelo Homo sapiens.
Juan Arias