sábado, 1 de junho de 2019

Bolsonaro e a democracia

A manifestação de 26 de maio não alterou em nada a situação política. Permanece a tensão entre o Palácio do Planalto e o Congresso Nacional. Houve um discreto apoio oficial aos atos, mas sem a participação direta do presidente da República. Se o objetivo era o de emparedar o Congresso, acabou fracassando. As ruas não ficaram tomadas pelo povo, como nas manifestações pelo impeachment de Dilma Rousseff.


A questão central é a governabilidade. Algo que não será resolvido com os apoiadores de Jair Bolsonaro nas ruas. Se nada mudou, então o governo perdeu. Ficou demonstrado que o apoio popular está menor do que estimado. Pode ser que o presidente tenha caído na armadilha das redes sociais. O mundo virtual não é o melhor conselheiro político. E mais: robôs não fazem história.

O Palácio do Planalto padece de um déficit de democracia. As constantes diatribes de Bolsonaro contra o funcionamento do Congresso reforçam o seu desinteresse pela negociação política, essência da democracia. A demonização dos partidos e das principais lideranças políticas do Parlamento compõe o receituário. Nesses cinco meses de presidência, ele não deu nenhum sinal real de que pretende conviver com a independência dos poderes. É provável que até desconheça o funcionamento de cada poder consagrado na Constituição, apesar de ter permanecido 28 anos na Câmara dos Deputados.

O governo não conseguiu apresentar um conjunto de medidas que possam conduzir o País à recuperação econômica. O discurso monocórdio de que tudo passa milagrosamente pela Reforma da Previdência produz uma narrativa de que, a partir da sua aprovação, o Brasil vai entrar numa rota de crescimento econômico em ritmo chinês. Que o capital estrangeiro vai afluir aos bilhões de dólares. É uma falácia. São necessárias diversas ações no campo macroeconômico, devidamente articuladas dentro de um amplo projeto nacional, a fim de criar as condições para que o País saia da crise criada a partir do início do segundo governo Dilma. Isso não vai ocorrer espontaneamente, mas será produto de uma ação governamental responsável.

E ao Presidente da República, o que caberia fazer? Coordenar os esforços para que o Brasil tenha um rumo seguro. Para tanto, necessitaria ter ciência dos principais projetos. Bolsonaro deveria entusiasmar o País. Viajar, inaugurar obras, discursar apresentando as ações governamentais e dialogar com os setores políticos.

Um triunfo tão perto do desastre

Nas recentes eleições para o Parlamento Europeu, a bancada ecologista saiu vitoriosa, subindo de 52 para 69 deputados, num total de 751, e transformando-se na quarta maior força do hemiciclo. Até agora eram a sexta. Na Alemanha, os Verdes ultrapassaram os sociais-democratas, elegendo 21 deputados. No Reino Unido, elegeram onze. Na França e na Finlândia os ecologistas conseguiram, respectivamente, o terceiro e segundo lugar. Em Portugal, um pequeno partido, o PAN (Pessoas Animais Natureza), que se tem distinguido sobretudo no combate contra a caça, as touradas e a utilização de animais nos circos, e que até agora muitos analistas encaravam com um sorriso trocista, conseguiu eleger um deputado.

Esta onda verde parece ser uma boa notícia. Sugere uma pequena mudança de percurso num mundo entalado entre duas grandes potências, os EUA e a China, que desprezam as políticas ambientais. O desdém do atual presidente americano, Donald Trump, em relação aos esforços para conter o aquecimento global vem reforçando e multiplicando os inimigos do meio ambiente no planeta. Entre eles, está o governo de Jair Bolsonaro.


O triunfo dos Verdes no seio da União Europeia é, ao menos em parte, consequência direta do despertar da juventude para a causa ambiental. Nos últimos meses, a principal novidade política, na Europa e no mundo, foram as grandes manifestações de estudantes, em milhares de cidades, um pouco por todo o planeta, em defesa do clima e da preservação da vida e da sua diversidade, num movimento não partidário criado por uma jovem sueca, Greta Thunberg, de apenas 16 anos.

É, infelizmente, um despertar tardio. Acresce que as eleições europeias confirmaram também a afirmação de uma direita e extrema direita contrárias a todas as políticas de proteção do ambiente. Receio, pois, que a cegueira prevaleça sobre o bom senso. A Terra é o Titanic prestes a colidir com um iceberg. Já se avista a superfície do mesmo — uma imensa montanha de lixo, produzida por todos nós; contudo, uma boa parte dos passageiros ainda insiste na ideia de que o navio aguenta muito bem o embate. Há até quem assegure, sorrindo, que o iceberg não existe. Pouco importa as multidões que gritam no convés. O barco continua a sua marcha suicida.

Os alheados que dançam nos salões enquanto o navio avança para o desastre são, talvez, mais felizes do que aqueles que gritam e protestam, em pânico, tentando alertar quem está no comando. No fim, naufragaremos juntos. Uns morrerão a dançar e a beber. Os outros, os lúcidos, talvez até morram antes, de susto, de frustração e de furor.

Em todo o caso, prefiro estar entre estes últimos. Quero acreditar que esta pequena mudança de rota na Europa seja o início de um movimento de viragem muito mais amplo, mais sólido, mais sustentado, que logo repercutirá noutras latitudes, em especial naqueles países, como os Estados Unidos e a China, com maiores responsabilidades na destruição do planeta. Não nos resta muito tempo. Entretanto, eu vou para o convés: gritar!

Amnésia contumaz

Nossos governantes não querem saber da História. Para eles, tudo começa na hora em que assumem o poder. E o poder sem memória sempre foi arbitrário. As constituições que, no mundo civilizado, os dirigidos impõem e fazem jurar aos dirigentes, tentam conjurar o perigo dessa amnésia contumaz. Infelizmente, entre nós, até sobre os Evangelhos se jura com um pé no ar...
Miguel Torga

Rescaldos

O presidente Bolsonaro passou no teste da Avenida Paulista vista de cima. Talvez não houvesse tanta gente quanto na manifestação dos estudantes, mas havia o suficiente para reafirmar o bolsonarismo como força de rua. E eis-nos conduzidos, de manifestação a manifestação, ao vestíbulo do modo venezuelano de fazer política. Bolsonaro até cogitou de comparecer a um dos eventos, o que o enquadraria como perfeita réplica, pela direita, ao modelo consagrado por Maduro pela esquerda. Arrependeu-se a tempo. As bandeiras empunhadas pelos manifestantes, nas diversas cidades, traíam equívocos e contradições na superfície e um segredo mal escondido nas profundezas. O segredo é o desejo, acalentado pela franja lunática do bolsonarismo, de virar a mesa.

O ministro Paulo Guedes ficou animado. “Nunca vimos isso antes, o povo apoiando a reforma da Previdência”, disse. Alguns objetariam à qualificação de “povo” para o segmento visto nas ruas, de extração diferente da do Brasil trigueiro e inzoneiro, mas, vá lá, o ministro tem razão — deu-se o inimaginável de gente abalar-se a gritar por uma reforma carimbada na folha de rosto como impopular. Resta que, se os manifestantes eram a favor da reforma, por que escolheram como alvo o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, amaldiçoado em todas as praças e premiado, em Copacabana, com um pixuleco? Maia é, entre os políticos, o mais insistente e articulado defensor da reforma da Previdência. Quem é contra é Bolsonaro, cujo último torpedo, no afã de inviabilizá-la, foi a revelação, com um sorriso alvar, como se descobrisse a pólvora, de um plano de cobrar taxas para atualizar o valor dos imóveis e com isso arrecadar o trilhão de reais sonhado por Guedes com a reforma.


A franja lunática passou os últimos dias em silêncio. Seu mentor, o bruxo Olavo de Carvalho, disse que não mais se manifestaria sobre a política brasileira. Os filhos do presidente se contiveram. Os ministros da Educação e das Relações Exteriores nos pouparam das intervenções, belicosas ou cômicas, que os distinguem. Pode ser um recuo, pode ser uma retirada tática. Bolsonaro postou, às vésperas das manifestações, texto que denunciava as instituições como empecilhos a suas sãs intenções e um vídeo em que um pastor congolês o aclamava como escolhido de Deus. Depois das manifestações, amigável, convocou os chefes dos demais poderes a um café da manhã no Alvorada e lhes propôs um “pacto pelo Brasil”. Tudo somado, estamos diante de um festival de despistes, de acobertamentos de secretas intenções, das calmarias que antecedem as tempestades — ou da barafunda característica de uma Presidência sem rumo?

A luta contra a corrupção expressou-se, nas manifestações, pelo protesto contra a retirada do Coaf das mãos do ministro Sergio Moro. Haveria, no noticiário recente, outros casos contra os quais protestar. Por exemplo, a revelação de que Fabrício Queiroz, o desaparecido faz-tudo da família Bolsonaro, pagou em dinheiro vivo os 133 600 reais que lhe custou a cirurgia de câncer no hospital Albert Einstein. Ou as transações imobiliárias em série — seriam 37, segundo as últimas contas do Ministério Público do Rio de Janeiro — que propiciaram lucros expressivos ao senador Flávio Bolsonaro.

O “pacto pelo Brasil” discutido no Alvorada selaria o apoio conjunto dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário a causas prioritárias como a reforma previdenciária e o combate à criminalidade. Impossível acreditar que as assinaturas dos presidentes da Câmara e do Senado decretariam o alinhamento automático de casas caracterizadas, por natureza, pelo debate e pelo conflito. Ilógico imaginar que a assinatura do presidente do Supremo Tribunal Federal arraste o conjunto dos ministros a endossar de antemão matérias passíveis de vir a ser levadas a julgamento. De duas uma: ou o Planalto tenta atrair Congresso e STF a uma missão impossível, para depois acusá-los de boicotar seus esforços para salvar o Brasil, ou o tal pacto não passaria daquilo que o elegante inglês cunhado no Brasil apelidou de “embromation”.

Consta ter sido o ministro Toffoli o primeiro a aventar a ideia de um pacto. O ministro erra de alvo ao não dirigi-­lo ao interior do próprio tribunal. Está mais do que na hora de o STF, tão acossado quanto o Congresso pela sanha do bolsonarismo, proteger seus flancos. Um pacto que incluísse itens como restringir as decisões monocráticas, impedir pedidos de vista que se eternizam e apressar os julgamentos de políticos seria um primeiro passo. Mas como pactuar numa casa em que as brigas atingiram tal nível que uns não falam com outros?

Imagem do Dia


Risco ambiental atinge a economia

Investidores de um país europeu procuraram uma autoridade brasileira da área econômica. A primeira pergunta não foi sobre a questão fiscal, mas sim sobre o meio ambiente. Queriam saber que garantias o Brasil daria de respeito às leis ambientais. Disseram que olham com extremo cuidado esse assunto, tanto que nunca investiram na Vale porque não sentiam confiança na governança da empresa nessa área e hoje sabem que acertaram. Contaram que os investidores de seus países querem saber exatamente que tipo de prática suas aplicações estão estimulando.

A reunião que houve na segunda-feira, 27, entre o ministro Ricardo Salles e os embaixadores da Noruega e da Alemanha foi constrangedora. Eles pediram dados concretos que justificassem as suspeitas levantadas pelo ministro sobre a direção do Fundo Amazônia, e ele respondeu com críticas genéricas. Eles não têm ingerência no dinheiro, mas a estrutura de governança foi amarrada no contrato.

O ministro, ao desmontar o conselho, pode ter quebrado esse contrato. Há neste momento, segundo uma fonte que acompanha as conversas, perplexidade e pessimismo entre os noruegueses. Se os financiadores recuarem, os governos estaduais sentirão falta desse dinheiro instantaneamente. Há secretarias de meio ambiente, como as do Pará e do Acre, cuja maioria dos projetos é financiada pelo Fundo Amazônia.


Por diversas formas esse comportamento desastrado na área ambiental pode afetar a economia. O presidente Jair Bolsonaro pode dizer que não enganou ninguém e que seu projeto na campanha era inclusive o de acabar com o ministério setorial. Porém, o governo não está entendendo que suas decisões ambientais afetarão a economia. O ministro Ricardo Salles detesta o meio ambiente, nunca tinha ido à Amazônia e é adepto fervoroso do centralismo estatal. Seus atos invertem o lema da campanha de Bolsonaro e impõem mais Brasília e menos Brasil nos conselhos ambientais.

O que fez no Conama gerou protestos e poderá levar a ações na Justiça, mas o que está fazendo no Conselho Orientador do Fundo Amazônia pode levar o país a perder dinheiro grande. O senador Flávio Bolsonaro apresentou um projeto tão estupidamente radical que seria cômico se não fosse grave. Quer acabar com toda a reserva legal nas fazendas. Só para se ter uma ideia: 80% da Mata Atlântica estão nas reservas legais. Cumprida à risca, isso acabaria com o que resta do bioma que protege a vida na região onde moram 70% dos brasileiros.

Cento e dezesseis pesquisadores da Embrapa assinaram um documento mostrando os riscos à produção agrícola e à vida se essa proposta for aprovada. A primeira lei que criou a reserva legal é de 1934. O senador Flávio Bolsonaro quer um retrocesso de 85 anos. O passado que esse governo busca é bem pretérito.

Quem é atualizado sabe que a proteção ambiental deixou de ser, há muito tempo, um assunto de nicho. Hoje o termo “ambientalista” vai muito além da sua concepção original. Gestores de dinheiro de investidores, como os citados no início dessa coluna, não perguntam sobre meio ambiente por ativismo.

Os donos do dinheiro que administram não querem investir em países e negócios que significam risco ambiental. Há óbvio risco de barreiras às commodities brasileiras. Se o ruralismo não reagir a tempo e com visão estratégica o setor vai sentir o impacto. Mas vai além do agronegócio. Um país que se isola, e vira um pária na questão ambiental e climática, é uma economia vulnerável.

Os investidores de qualquer área estão neste momento de olho em cada um dos movimentos do governo. O documento dos pesquisadores da Embrapa explica pacientemente como a reserva legal eleva a produtividade das fazendas e diz que fizeram a nota pelas “numerosas discussões recentes no contexto das propriedades rurais”. Segundo eles, a relação entre polinização e controle biológico por insetos com a produção é direta: “Levando-se em conta os dados da produção de 2012, a polinização mediada por insetos foi responsável por 30% da produção de 44 culturas brasileiras.”

O governo Bolsonaro brinca, por ignorância, com coisa séria. E enfrentará muito mais consequências do que consegue perceber na sua curta visão ideológica.

Pequisa da Embrapa mostra que desperdício de alimentos chega a R$ 1 mil por família/ano

O desperdício de alimentos de uma família brasileira composta por três pessoas em um ano pode ultrapassar R$ 1.002,00, valor superior ao salário mínimo nacional. Os dados são de estudo liderada pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), que ouviu 1.764 famílias em todo o País, em parceria com a Fundação Getúlio Vargas (FGV), em 2018.

A pesquisa mostra que cada família desperdiça, em média, 128 quilos de alimentos por ano. Por pessoa, o desperdício de comida em casa atinge 41 quilos por ano - o equivalente a R$ 323. Os cálculos foram realizados pelo analista Gustavo Porpino, um dos líderes do levantamento, a pedido do Estadão/Broadcast, com base nos valores do Instituto de Economia Agrícola (IEA), de São Paulo, em abril de 2019.

A análise levou em conta apenas o universo familiar, sem considerar perdas em restaurantes, empresas, hotéis e escolas. "Os R$ 1 mil perdidos ao ano representam apenas o gasto com a compra dos alimentos mais desperdiçados. Se levarmos em conta o custo do preparo, que inclui gás de cozinha, óleo, água e outros recursos, o montante será ainda mais impactante".

Os produtos mais perdidos são arroz - 28,33kg -, carne, com 25,76kg, feijão, com 20,60kg, e frango, com 19,32kg. O leite completa a lista dos principais alimentos jogados fora, com 5,15 litros anuais.


Na avaliação do pesquisador, chama a atenção o fato de a renda não explicar totalmente a diferença entre as famílias que desperdiçam mais ou menos. O estudo, que integra o programa de cooperação Diálogos Setoriais União Europeia-Brasil, identificou altos níveis de desperdício mesmo em famílias de classe média-baixa. A diferença recai, isso sim, sobre o que é jogado fora, como hortaliças e frutas, que são mais consumidas nas famílias mais ricas. "Mas em termos de volume, a renda e a idade não explicam".

Porpino afirma que alguns hábitos esclarecem esse elevado desperdício, próximo ao de nações mais ricas. A compra mensal é um deles, assim como o hábito da "fartura". "O costume de fazer uma grande compra depois de receber o salário e encher a despensa faz com que as famílias preparem porções muito grandes e não aproveitem as sobras. Esses fatores comportamentais estão associados à valorização da abundância, da preferência por uma comida 'fresquinha' e até por haver certo preconceito com sobras de refeição, a 'comida dormida'".

Segundo o especialista, planejar melhor as compras e refeições, não adquirir alimentos em excesso e reaproveitar sobras é fundamental para reduzir a quantidade jogada fora. "A cultura do 'melhor sobrar do que faltar' também deveria ser mudada", avalia.

Gustavo Porpino ressalta que as famílias brasileiras percebem que o desperdício causa impacto no orçamento, mas a força da cultura é tanta que o hábito de desperdiçar permanece. "Como trata-se de uma média, não significa que todos os brasileiros jogam fora estes volumes. A pesquisa mostra que há tanto famílias que desperdiçam pouco quanto outras que desperdiçam muita comida, e os fatores comportamentais explicam a variação", pondera.

Ele sugere ações educacionais e de comunicação realizadas por parcerias público-privadas para elevar conscientização da população sobre o problema. Recentemente, a Embrapa renovou memorando de entendimento com o WWF Brasil para dar continuidade à iniciativa "Sem Desperdício", que inclui ações de comunicação para mudança comportamental.

"As estratégias para redução do desperdício podem ser direcionadas ainda para gerar novas oportunidades de negócio e incrementar a disponibilidade de alimentos saudáveis. O Brasil, por exemplo, produz muitas frutas e hortaliças mas, paradoxalmente, o consumo per capita é bem abaixo dos valores recomendados pela Organização Mundial de Saúde e as perdas e o desperdício são muito elevados", diz.

Segundo Gustavo Porpino, mudar esse quadro demanda ações em diferentes elos da cadeia produtiva. Ele diz que vê no Brasil tecnologias disponíveis e uma geração jovem empreendedora antenada com inovações sociais. "Se houver vontade política, podemos avançar consideravelmente", estima.

Segundo dados da Organização das Nações Unidas (ONU), a América Latina desperdiça, em média, 127 milhões de toneladas de alimentos a cada ano. Em valores, seriam cerca de US$ 97 bilhões. A entidade elencou como um dos objetivos de desenvolvimento sustentável a redução pela metade do desperdício de alimentos até 2030.

Para Porpino, os números mostram uma contradição e uma oportunidade de aliar o combate ao desperdício com o fortalecimento da segurança alimentar no Brasil.

"Temos características de países ricos no fim da cadeia, com elevado desperdício de alimentos, e características de países em desenvolvimento no início, com perdas na produção, transporte. Temos uma grande oportunidade de pegar toda essa abundância que se perde e direcionar para a rede de enfrentamento à fome, como os bancos de alimentos, por exemplo, além de aprovar as Leis que incentivam a doação de alimentos por parte do varejo".

Gente fora do mapa


O país à deriva

Fechamos o quinto mês do ano com a economia estagnada: menos 0,2% de crescimento do PIB no último trimestre em relação ao mesmo período do ano anterior, com o governo de Michel Temer já na bacia das almas. No ano passado, o crescimento do PIB foi de 1,1%; as agências de risco já estão projetando um PIB abaixo de 1% neste ano. O mercado já não espera a reforma da Previdência, cuja discussão na Câmara vai muito bem, obrigado. Está esperando que o governo Bolsonaro corrija o seu rumo de proa, porque a agulha aponta numa direção, mas o país deriva para o mesmo destino no qual foi lançado pelo governo Dilma Rousseff: a recessão.

Não existe bilhete premiado na Presidência da República. A eleição provou que o presidente Bolsonaro é um homem de sorte, poderia até ter morrido com a facada que levou em Juiz de Fora, em plena campanha. A brutal agressão acabou catapultando ainda mais sua candidatura e teve um papel importante na sua vitória. Mas não é bom abusar da sorte. A compulsão por jogos é semelhante a outros vícios, como alcoolismo, tabagismo e as drogas em geral. Estimula as mesmas áreas cerebrais e o comportamento é bem semelhante: compulsivo e impulsivo, a única coisa que tem de diferente é que não há o consumo de uma substância, mas se repete várias vezes na prática de mesma atividade prejudicial.

Diferentemente das drogas, o jogo é visto como um desvio moral, principalmente pela questão financeira, já que o jogador compulsivo geralmente perde muito dinheiro. Entretanto, é uma patologia, um transtorno diretamente proporcional à disponibilidade de jogos. Alguém já disse que a política é a arte das artes e a ciência das ciências, mas também é um jogo. E todo político é uma espécie de jogador compulsivo, pode perguntar a qualquer um das suas relações. O problema é que na Presidência da República, ainda mais num país de dimensões continentais, social e culturalmente complexo como Brasil, a caneta presidencial não é um taco de sinuca. As ações do governo têm uma força de inércia que afeta tremendamente a vida das pessoas. Quanto se erra estrategicamente nesse jogo, os estragos são em grande escala: os quase 13 milhões de desempregados, por exemplo. Não adianta rezar.

O mundo moderno deve a Nicolau Maquiavel a separação entre a política e a religião. No exílio, o sábio de Florença escreveu O Príncipe, um manual político para governantes que almejassem não apenas se manter no poder, mas ampliar suas conquistas. Conta sucessos e fracassos dos poderosos da época para ilustrar conselhos e opiniões, numa tentativa de reaproximação com os Médici. No fim da Idade Média, retomava-se a clássica visão antropocêntrica do mundo, na qual o homem era a medida de todas as coisas. Foi um resgate dos filósofos gregos em resposta ao poder teológico-político dos reis e da Igreja em plena Renascença. O diálogo entre a burguesia emergente e a realeza, com a emergência do mercantilismo, está na gênese do nosso humanismo. Não por acaso, o pensamento de Maquiável resulta da experiência das cidades-estado sob influência papal.

A questão da legitimidade e o exercício do poder estavam no centro das preocupações de Maquiavel. O governante precisa ser dotado de virtú e fortuna, simultaneamente, para chegar e manter o poder. A virtú exige conhecimento e habilidade, que são também os atributos dos bons jogadores para não brigar com a sorte. A fortuna não é a sorte, simplesmente, como deduz a leitura vulgar de Maquiável. Trata-se das contingências ou das circunstâncias com as quais o governante tem que lidar, que mudam a cada conjuntura. É por isso que o florentino adverte: as mudanças de conjuntura podem transformar certas virtudes em grandes defeitos: “Quando um príncipe deixa tudo por conta da sorte, ele se arruína logo que ela muda. Feliz é o príncipe que ajusta seu modo de proceder aos tempos, e é infeliz aquele cujo proceder não se ajusta aos tempos”. Napoleão Bonaparte foi um estudioso de Maquiavel, seus comentários sobre O Príncipe estão na edição brasileira da Ediouro. Nem por isso deixou de errar, mas seus comentários são bem interessantes. Quem quiser saber por que perdeu a guerra, deve ler Guerra e Paz, de Liev Tolstoi (Companhia das Letras).

O Brasil é uma democracia de massas, com instituições republicanas que sobreviveram à hiperinflação, à recessão e a dois impeachments. Assim como houve uma radical alternância de poder, com a eleição de Bolsonaro, também existe o pleno exercício do dissenso, seja à direita, como no último domingo, seja à esquerda, como ontem. Faz parte do jogo, mas isso não significa que devamos apostar no caos ou no quanto pior, melhor. A ideia de que Deus está acima de tudo e de todos na política é anterior a Maquiável e não é boa conselheira. O país precisa desviar seu curso do desastre e encontrar um porto seguro. A calmaria econômica é um mau presságio.

De @Barack para @Bolzo

“Um mau professor pode te ensinar álgebra e outras coisas. Mas grandes professores conseguem te ajudar a identificar as coisas que impedem você de ser aquele que você quer ser.

“Algumas vezes, particularmente na América Latina, onde existem profundas divisões políticas entre esquerda e direita, tudo é muito ideológico, vejo que as pessoas não acreditam no governo e no mercado. Não existe um mercado funcional sem um bom governo. E, se você não tem um bom sistema educacional, não tem um bom mercado. Sem isso tudo, não há um bom governo”.
Barack Obama

Cabeça feita

 Brady Izquierdo Rodríguez
Temos botões de fácil acesso que, quando carregamos neles, libertam emoções poderosas. Podemos ser manipulados até extremos de insensatez por políticos espertos. Deem-nos o tipo de chefe certo e, tal como o mais sugestionável paciente do terapeuta pela hipnose, faremos de bom grado quase tudo o que ele quer - mesmo coisas que sabemos serem erradas 
Carl Sagan, "O Mundo Infestado de Demônios"

Fabricantes do indesejado

Muitas vezes, os movimentos sociais têm dinâmica que as pessoas não controlam, levando o país a tragédias, porque seus líderes políticos e sindicais, por omissão ou por ações erradas, fazem tudo que deveria ser evitado. Estes erros podem levar a guerras civis, a ditaduras e inflação. Alternativas que ninguém deseja mas cada um faz sua parte para que elas aconteçam. A realidade atual pode estar nos levando nesta direção.


A insistência em manter o país dividido em grupos corporativos sem sentimento do interesse nacional, pode levar à solução política de acabar com a democracia com a implantação, outra vez, de regime autoritário; e a recusa em fazer as reformas e a eliminação de déficit fiscais podem levar o Brasil a cair, mais um vez, na solução de inflação, como forma de pagar os gastos públicos com moeda desvalorizada.

São alternativas caóticas para enfrentar o caos criado por omissão, incompetência e falta de espírito público. Não seria a primeira vez que o Brasil caminharia para este desenlace que ninguém deseja mas que, como atores seguindo o roteiro da peça, todos desempenham o papel necessário para que o indesejado aconteça.
É triste, mas talvez estejamos mais uma vez representando esta tragédia. Ainda bem que ainda há tempo, se tivermos um despertar de responsabilidade com os destinos nacionais.

Paisagem brasileira

Piabanha, Antonio Parreiras

Na Educação, Bolsonaro revela-se um 'idiota útil'

Numa entrevista à revista Veja, Jair Bolsonaro contou como foi o processo de escolha do colombiano naturalizado Ricardo Vélez para o posto de ministro da Educação. Disse o presidente: "Foi uma indicação do Olavo de Carvalho? Foi, não vou negar. Ele teve interesse, é boa pessoa. Depois liguei para ele: "Olavo, você conhecia o Vélez de onde?Ah, de publicações.Pô, Olavo, você namorou pela internet?"

Foi assim, na galega, como se diz, que o capitão selecionou o primeiro titular da estratégica pasta da Educação. E não foi por falta de opção que Bolsonaro premiou a incompetência. Havia na praça uma fabulosa opção. O presidente cogitou a sério a hipótese de nomear Mozart Ramos, um educador de mostruário. Mas Mozart estava preocupado com a Educação, não com ideologia. Por isso, foi descartado.

Veléz caiu da poltrona com menos de três meses de governo. "Tive de dar uma radicalizada", declarou Bolsonaro. "Em conversas aqui com os meus ministros, chegamos à conclusão de que era preciso trocar, não se pode ter pena, e trocamos." Trocou, como se sabe, por Abraham Weintraub. Vem a ser outro adepto de Olavo de Carvalho, o bruxo que enfeitiça Bolsonaro desde a Virgínia, nos Estados Unidos.

Sob Vélez, dividido entre uma ala militar e uma banda de olavetes, o MEC brigava consigo mesmo. Sob Weintraub, a pasta da Educação dedica-se a guerrear contra estudantes e professores. Para usar uma terminologia que o próprio capitão transformou num lema dos novos tempos, Jair Bolsonaro administra o prioritário setor da Educação como um "idiota útil" a serviço do polemista Olavo de Carvalho.

Educação no Brasil vive clima de ditadura

Junto com o descalabro econômico que poderia levar o Brasil a uma recessão técnica, o clima de medo nas instituições educacionais públicas é um dos pontos cruciais do novo Governo de extrema direita presidido por Jair Bolsonaro. A tal ponto que no mundo da educação já se vive um clima de ditadura e medo perante as ameaças impostas pelo ministro Abraham Weintraub.

Esse medo de professores e alunos com relação às ameaças do MEC pode ter sido a causa da forte diminuição de público nas manifestações desta quinta-feira em relação à gigantesca mobilização do último dia 15. Se 220 cidades aderiram à primeira marcha contra os cortes orçamentários no ensino, nesta quinta foram só 82.

As ameaças das autoridades do MEC foram taxativas: “Nenhuma instituição pública de ensino tem prerrogativas legais para incentivar movimentos políticos partidários e promover a participação de alunos nas manifestações”. Mais ainda, houve uma solicitação oficial do MEC para que “a população denuncie quem estimula manifestações em horário escolar”.


Se os estudantes que se manifestaram contra os cortes do orçamento educacional foram descritos por Bolsonaro de “idiotas úteis”, nesta quinta-feira um jovem em Fortaleza o chamou, em um cartaz escrito à mão, de “idiota inútil”. Isso indica o clima de tensão, preocupação e medo que se vive o mundo da escola e da universidade, que se veem acusados de infundir ideologia marxista aos seus alunos e que incitam a sociedade a denunciar professores e alunos.

Todo isso junto cria, com efeito, um clima de regime ditatorial que só pode causar prejuízos graves à já cinzenta educação no Brasil. Se Bolsonaro pode ter razão em denunciar que recebeu a educação com índices que aparecem sempre entre os piores em nível mundial, e que é preciso melhorar todo o universo do ensino, o que não pode é acusar os professores de terem instituído um clima ideológico de esquerda imposto aos alunos, e agora querer substitui-lo por outro de ultradireita com intimidações adicionais a quem não aceitar esse tipo de imposição.

Enquanto isso, o presidente Bolsonaro parece querer emular o carismático ex-presidente Lula, que se apresentava como Lulinha paz e amor. O até ontem duro mandatário, apaixonado pelas armas e a briga, parece transformado em Jairzinho paz e amor. Assim o vimos trocar o gesto de suas mãos imitando a uma arma pelo gesto de um coração. Mais ainda, rodeado de sorridentes deputadas e tendo ao seu lado o presidente do STF, Dias Toffoli, também com um sorriso de orelha a orelha.

A foto é emblemática porque é sabida a pouca simpatia e estima de Bolsonaro pelas mulheres. Basta recordar que defende que devem ganhar menos que os homens, e que, referindo-se à única filha de seus três matrimônios, confessou que nasceu mulher por causa de “uma fraquejada”. Assim como é enigmático a repentina paixão de Bolsonaro por Dias Toffoli, presidente do Supremo Tribunal Federal, quando seus seguidores mais radicais pedem o fechamento desse órgão.

Algo de significativo deve existir nesse amor repentino de Bolsonaro por Toffoli, a tal ponto que, enquanto fazia o gesto do coração com as mãos, transformando-se uma vez em pacifista, chegou a confessar: “É muito bom ter a Justiça ao nosso lado”. Caberia se perguntar qual interesse, inclusive pessoal ou familiar, pode ter o presidente para sentir o gozo de ter ao seu lado, como protetor, o controvertido presidente do STF, Dias Toffoli.

Enquanto isso, no Ministério da Educação, pede-se à sociedade e aos alunos que denunciem os professores que tentarem estimulá-los a desenvolver um direito sagrado e constitucional de manifestação e de liberdade de expressão e pensamento. O que fará Dias Toffoli, o presidente do Supremo, a última conquista amorosa de Bolsonaro, se chegar às suas mãos um pedido para julgar esse clima ditatorial e de medo nas escolas e universidades?

Tem razão Bolsonaro ao dizer que “é muito bom”, em certos momentos, “ter a Justiça ao seu lado”. Enquanto isso, com o Governo às voltas com essas inúteis brigas ideológicas, parece que os milhões de pobres, que o são cada dia mais e mais numerosos, sumiram de cena. Ninguém fala dos 13 milhões de pessoas sem emprego, das quais seis milhões, desiludidas, nem o buscam mais. Dos milhares de estudantes que tiveram que deixar as salas de aula para ir aliviar a pobreza de seus pais trabalhando para pagar dívidas.

Ninguém fala em fazer uma grande campanha para ajudar os milhões de analfabetos funcionais que este país arrasta desde os tempos da escravidão, e que são os verdadeiros párias, porque ficam sempre à margem da riqueza e da cultura, massa de manobra para a compra de votos que perpetua a política incapaz de se colocar ao lado dessa gente e escutar a dor que levam dentro de si há gerações.

Ainda ontem, um trabalhador, que tem a sorte de contar com um pequeno salário, me dizia: “Pobre tem que morrer”. Terrível exame de consciência para os satisfeitos, os que sim têm direito a viver, embora seja à custa de quem nasceu para morrer antes de ter tempo de sonhar.

Mais Messias do que Jair

Com impetuosidade, dom Sebastião levou tropas portuguesas sob seu comando a lutar contra os marroquinos, na batalha de Alcácer-Quibir, em 1578, na qual grande parte da elite de Portugal morreu e o rei desapareceu. Com o vazio em sua sucessão ao trono português, impôs-se o domínio espanhol. Logo surgiu o imaginário de que dom Sebastião estava vivo, “encoberto”, e apareceria para salvar a nação, livrando-a do despotismo castelhano.

O Brasil viveu ao longo do tempo fenômenos similares circunscritos, mas referenciados, ao mito de dom Sebastião. Como dizem Edna da Silva Polese e Sérgio Fernandes de Lima, o sebastianismo atravessou fronteiras temporais e espaciais com o surgimento, em momentos de infelicidade e de perdas, da crença no aparecimento de um salvador, um restaurador da ordem e da justiça (Revista Letras v. 16, n.º 19)

José Lins do Rego e Ariano Suassuna bem contam nos romances Pedra Bonita e A Pedra do Reino o episódio ocorrido em Pernambuco em 1838, na Serra Formosa, ao lado de formação rochosa. João Antônio dos Santos e depois seu sucessor, João Ferreira, alardeavam que dom Sebastião, incrustado na pedra, voltaria para trazer a bem-aventurança. Para tanto a pedra deveria ser banhada de sangue, promovendo-se grande massacre.


Igualmente no início da República Antônio Conselheiro, beato que se instalara em Canudos, na Bahia, proclamava a volta de dom Sebastião. Este retornaria dos mortos para restaurar a monarquia no Brasil e transformar males em bem, o sofrimento em alegria, o injusto no justo, numa visão imaginária delirante, bem retratada por Euclides da Cunha ao lembrar trova de Canudos: “Garantidos pela lei Aquelles malvados estão, Nós temos a lei de Deus, Elles tem a lei de cão”.

O mito do sebastianismo ilude a vinda de figura heroica que se sacrifica, com risco da própria vida, para promover uma nova era, um modo purificador de realizar as coisas com justiça em rumo ao paraíso.

Collor já indicava a adesão à figura de um “cavaleiro do bem”, o caçador de marajás que instalaria o reino da correção em face da corrupção do governo Sarney. Mas não tardou a surgirem as denúncias de sua corrupção. E desde 2005 revelaram-se o aparelhamento do Estado e a disseminação da corrupção em favor de políticos dos principais partidos, que irresponsavelmente levaram ao desemprego e à recessão.

Larga desconfiança do sistema político se instalou no espírito de parcelas consideráveis da população. Em 2016, o impeachment necessário para estourar o tumor que gangrenava a Nação trouxe um presidente impopular, logo acusado de corrupção, não afastado do cargo graças à cooptação do Congresso.

Bem fervido o caldo de cultura propício ao surgimento ilusório de um salvador, que instalaria um novo modo de ser, uma figura messiânica que – sem o carisma de Jânio, Ademar, Getúlio – iria galvanizar o povo por trazer uma boa-nova, valendo-se de poucas palavras em modo inusitado de comunicação: as redes sociais. Candidato dos indignados contra o desmando dos governantes, Bolsonaro aparece no imaginário popular como redentor.

Sem carisma, Bolsonaro, vítima de facada da qual se salva “por obra divina”, apresentou-se como quem governaria sem as intermediações próprias do regime representativo, impondo sua vontade por força da pressão popular que arregimenta pelas redes sociais. Nada disse de concreto: apenas prometeu a redenção e nova forma de exercício da “democracia”, sem diálogo com o Parlamento, a ser demonizado se não o apoiasse. Inimigos, “traíras”, seriam e são todos os que neguem sustentação absoluta àquele que aí está para – alegadamente – salvar o País e promover a justiça e o bem.

É proclamado mito e exerce influência no imaginário popular de modo irracional, comovendo parcela da população que acredita ser ele o portador de fartura e honestidade. O que dele provier se presume estar certo: o espírito crítico não tem lugar em face do mito.

No último domingo viu-se exatamente isto: não existem erros do governo, que bate cabeça desde janeiro. Para os que acorreram às ruas, o mito está sempre correto. O governo tosco tem uma pauta moralista e armamentista para dar sensação de prover a segurança. O chamado projeto anticrime de anticrime só o nome tem, pois, seguramente, dali não decorrerá nenhuma prevenção ou redução da criminalidade. Mas o que importa é a idolatria do “submito”, Moro.

Estamos diante de um novo surto sebastianista, com mistura de religião e política. Essa vertente político-religiosa vem expressa na atitude e em cartazes deste domingo: populares gritavam “mito, mito, mito, meu capitão!” e faixas estampavam: “Congressistas deixem o mito trabalhar”. Manifestantes iniciaram o ato em Brasília rezando um Pai-Nosso, com a oradora pedindo a Deus para “ajudar o presidente a dizer não a esse tal Centrão e a dizer não ao STF” e terminando com a frase: “Viva Jair Messias Bolsonaro!”. Outro orador alertava: “Estamos travando uma guerra espiritual”. Mas assegurava: “Deus está do nosso lado”. Com o monopólio do certo, dizem: “Tem de o Congresso aceitar. Não existe essa de o Congresso fazer as pautas do Executivo”. Faixas tratam os representantes dos outros Poderes como traidores da Pátria, por dificultarem a “tarefa salvadora” do presidente.

Em culto pela manhã, Bolsonaro interpretou as passeatas como um recado aos que “teimam, com velhas práticas, em não deixar que esse povo se liberte”. Como em Canudos, podem o presidente e seus asseclas entoar: “Nós temos a lei de Deus, eles têm a lei de cão”.

Bolsonaro se faz mais Messias do que Jair, a gerar nos espíritos abertos ao debate, e à força da persuasão, o receio imenso de um futuro de uma só verdade, cuja contestação vira traição.