quinta-feira, 2 de junho de 2016

O estupro político

Da vergonha do estupro sexual já se escreveu tudo, com motivo da tragédia sofrida pela adolescente do Rio nas mãos de um pelotão de machos violentos.

Existe, entretanto, outro tipo de estupro, que não deve ser esquecido neste momento, e que é vivido pelo Brasil. Suas vítimas não são unicamente as mulheres, mas milhões de cidadãos.

É a violência imposta pela classe política à parte mais fraca da sociedade, que se sente uma vítima impotente diante das suas corrupções e atropelos.

A mulher, na nossa sociedade machista, é, real e simbolicamente, objeto de violência – e não só sexual –, vítima dos prejuízos atávicos que, desde as cavernas, a considera inferior e submissa ao poder masculino.

Existem, entretanto, outras categorias de pessoas igualmente violentadas física e moralmente fora da esfera sexual.


A palavra estupro procede do latim stuprum, que significa desonra, vergonha pública. No sentido jurídico, simboliza “emprego da força contra alguém mais fraco”, compreendida a violência sexual, mas não só. Na raiz indo-europeia, estuprar significa golpear.

Se estupro, originalmente, indica a força exercida contra alguém mais fraco, sempre que a classe política, através de suas instituições, usa a força contra os marginalizados está cometendo um estupro moral coletivo.

Nesse sentido, todas as feridas sociais produzidas pelas crises econômicas, as violências policiais, geralmente contra pobres e negros, as mentiras que enganam a boa fé das pessoas humildes e a corrupção que impede melhoras na educação, na saúde e na cultura são também um estupro.

São um estupro o esbanjamento e os privilégios dos governantes perante os olhos de famílias que, mesmo trabalhando duro, não conseguem terminar o mês sem se endividar, nem podem oferecer a seus filhos uma formação que os prepare para um futuro melhor que o vivido por seus pais.

São vítimas de estupro os milhões de desempregados, os jovens sem futuro, as mulheres que, mesmo quando mais preparadas que os homens, ganham sempre menos que eles.

Etimologicamente, estupro significa também “vergonha pública”. Nesse sentido, hoje poderíamos dizer que a grande massa da sociedade deste país está sofrendo um estupro coletivo, graças ao espetáculo que oferecem seus políticos e governantes, que parecem se mover não para melhorar as condições de vida dos que mais sofrem o açoite da crise, e sim para se manter em seus cargos, para se salvar dos tribunais que lhes pedem explicações, ou para crescer economicamente.

O escândalo do estupro coletivo e indecente da adolescente do Rio foi rechaçado com estupor e indignação por uma sociedade que está amadurecendo no respeito e na defesa dos direitos humanos.

Isso deveria servir também de alerta para dizer não a esse outro estupro moral e coletivo ao qual as práticas políticas machistas das velhas panelinhas de caciques, sem distinção de ideologias, condenam o tecido mais frágil da sociedade.

O estupro moral, social e político pode, às vezes, doer e até matar, tanto ou mais que o da carne.

Constituição, a primeira vítima do oportunismo

Na teoria, o sistema de governo no Brasil é presidencialista. Na prática, vige um semipresidencialismo de coalizão. Neste, o presidente manda e os parlamentares o chantageiam permanentemente, sem terem condições de mandar sequer no Orçamento da União, a principal lei da República. Mas, com capacidade para arrancar do Poder Mandante (muito mais do que Executivo) todos os privilégios para seus membros, o Legislativo não se responsabiliza por praticamente nada. E o Judiciário protela mais do que julga. No fundo, vige sempre, agora mais, o oportunismo, que, na crise, prospera, mas também fica nu.

Essa radiografia dos intestinos da República como ela é não resulta exclusivamente da alta tecnologia e da falta de decoro, que permitem o grampo de telefones, a revelação de e-mails e a publicação de gravações de conversas privadas. Mas também da hipocrisia generalizada, que põe à venda na feira das ilusões o despudor mais descarado em nome dos conceitos mais nobres. É o caso da antecipação em dois anos da eleição presidencial de 2018 como forma mais “democrática” de resolver o impasse causado pelo processo de impedimento da presidente da República. Afastada do poder por um prazo de até seis meses para responder a um processo, ela poderá ser alijada de vez do cargo e substituída pelo vice-presidente, momentaneamente no exercício deste.

Não se trata só de uma quimera, um projeto ou um lance de esperteza. É um golpe, para usar a palavra posta na moda pelos asseclas e vassalos do Partido dos Trabalhadores (PT), que quebrou a Petrobras, desempregou milhões de assalariados, fechou centenas de milhares de empresas, depauperou a economia e paralisou a gestão do Estado Democrático de Direito. Não é um pronunciamento militar clássico que joga a Constituição no lixo, rasga-a à força de baionetas ou a torna periódica, como os que derrubaram o Império, a República Velha e a democracia liberal de 1946. Mas apenas uma cusparada nela.

Luiz Inácio da Silva recorreu à sua lábia incomum para ascender à Presidência da República duas vezes e pôr no lugar quem bem ele quis. Mas terminou por fazer um mal enorme à própria biografia e à sobrevivência de 200 milhões de patrícios. Agora esse ex-líder sindical planejou e tenta construir uma boia de saliva para emergir vivo do tsunami pelo qual ele é o maior responsável. Desmascarado, se não por ter chefiado a organização criminosa composta por dirigentes dos partidos com que mandou e desmandou no país nestes 13 anos, 4 meses e 12 dias para praticarem a maior rapina da História, por no mínimo ter dela participado, apela de novo para a capacidade de iludir para ficar de pé neste instante.

Para isso, Lula dispõe-se a desmentir Tancredo Neves, que avisava às raposas felpudas do PSD mineiro que a esperteza é um bicho que, quando cresce demais, engole o dono. Para ser mais esperto do que a maior esperteza o for, ele sabe que precisa contar com o oportunismo de próceres políticos que podem pegar uma carona em sua balsa de saliva.

Já aderiu a essa cantiga de sereia a ex-senadora petista Marina Silva. Ministra do Ambiente no primeiro mandato dele e sobrevivente à luta pela redenção dos povos da floresta, que tem em Chico Mendes um mártir de fama internacional, ela tem um partido pra chamar de seu, a Rede Sustentabilidade, e a fisionomia identificada com as de pobres e oprimidos que todo colega de ofício gostaria de ter. Essa era uma vantagem de Miguel Arraes, que, oriundo da mais antiga e próspera oligarquia rural nacional, representou como ninguém com os traços marcados de suas rugas o rosto do sertanejo miserável, vítima da seca e do coronelismo. Agora Marina hasteou a bandeira popular do “nem Dilma nem Temer”, na certa porque pesquisas de intenção de voto a dão como favorita, mas quem garante agora que em 2018 ela ainda será?

Na condição de um dos 81 senadores que decidirão se o provisório Temer fica ou a afastada Dilma cai, o senador Cristovam Buarque joga sua reputação ilibada numa candidatura presidencial que o fez mudar do PT, de que saiu após ter sido demitido do Ministério da Educação por Lula numa chamada telefônica internacional, para o PDT. Agora está no PPS, pois o chefão de seu ex-partido, Carlos Luppi, prefere um governo em extinção à mão a uma disputa sedutora, mas improvável.

À espreita completa o Trio Esperança outro senador, Aécio Neves, presidente do PSDB. Ele comunga os mesmos interesses dos adversários, mas prefere esperar, pois deve ter percebido que abusou ao alimentar o monstro da esperteza e o viu devorar porção significativa dos 51 milhões de votos que teve em 2014 e dificilmente voltará a ter agora. Talvez seja mais cauteloso esperar para observar até que ponto chegarão seus correligionários que se oporão ao seu voo do ninho tucano de Minas direto para a rampa palaciana.

Talvez seja mais sensato para o presidente do que se acha, embora na prática não comprove sê-lo, o maior partido da oposição esperar que seus desafiantes naufraguem, cada qual na sua tempestade. O governador Geraldo Alckmin arrisca-se a perder o controle do PSDB em São Paulo se ocorrer a anunciada derrota de seu candidato à Prefeitura da Capital, João Dória. E o senador José Serra pode afundar se a nau capitaneada por Michel Temer naufragar no Mar das Tormentas de um ministério, com os arautos da esperança Serra e Henrique Meirelles e vários parlamentares com dívidas a pagar à implacável “república de Curitiba”, à prova de queda.

A História mostra que, nesse quadro, pode vencer um inesperado, como Jânio e Collor. Joaquim Barbosa, por exemplo. Desmentem suas juras de que não quer concorrer suas manifestações públicas contra o impeachment, et pour cause, contra a Constituição, que ele deveria conhecer bem. Seja como for, esta será a primeira vítima do eventual vencedor.

O bebê morto

A beleza da solidariedade e a tragédia da indiferença foram estampadas na foto do voluntário e terapeuta alemão Martin. Pai de três filhos e integrante da organização humanitária Sea-Watch, segurou o bebê morto retirado das águas do Mediterrâneo e o embalou com uma canção, acreditando estar ainda vivo.

A imagem foi fugaz no atual noticiário digestivo alcunhado de jornalismo de informação como se a essência jornalística virasse adjetivo. Chocou muitos. Mas quantos pensaram sobre o que viam ao menos três minutos, bem mais do que os segundos de locução no noticiário televisivo?


A morte do bebê no Mare Nostrum dos romanos não está tão longe de nós para que dediquemos à foto tão pouco tempo de reflexão. Bela em sua dramaticidade, alerta para a própria situação brasileira. Também vemos crianças morrerem sob a zika, o descaso hospitalar, a saúde desmantelada. A inocência dos jovens aqui parece também ter vida e muita, mas foi estuprado seu futuro.

Lá e cá não houve nenhuma vingança dos deuses ou cataclismas naturais para provocar morte. Não há que invocar aos céus compaixão. O mar daqui não se enche de refugiados, mas as terras estão repletas de covas infantis e de rios de sangue da violência contra jovens.

No Mediterrâneo e no Brasil destes tempos confusos, a autoria das tragédias não é de sobrehumanos mas dos próprios homens. São os europeus que fecham as portas aos necessitados refugiados das guerras e da miséria, que paradoxalmente é fomentada pelos país daqueles.

Não é outra nossa tragédia, criada e alimentada pelos marginais dirigentes, com a indiferença dos mais frios assassinos e ladrões. Em nome de uma estrela, de um projeto partidário, fez-se o caos e a população em debandada procura emprego, assistência.

Todos em busca da solidariedade, que deve ser oferecida pelos governos. No entanto, para essa faltam voluntários. O que encontram são mercenários dentro e fora de palácios, Congresso, Câmaras. E o Brasil mais se parece ao bebê reconchudo, morto.

A habilidade específica do político

A habilidade específica do político consiste em saber que paixões pode com maior facilidade despertar e como evitar, quando despertas, que sejam nocivas a ele próprio e aos seus aliados. Na política como na moeda há uma lei de Gresham; o homem que visa a objetivos mais nobres será expulso, excepto naqueles raros momentos (principalmente revoluções) em que o idealismo se conjuga com um poderoso movimento de paixão interesseira. Além disso, como os políticos estão divididos em grupos rivais, visam a dividir a nação, a menos que tenham a sorte de a unir na guerra contra outra. Vivem à custa do "ruído e da fúria, que nada significam". Não podem prestar atenção a nada que seja difícil de explicar, nem a nada que não acarrete divisão (seja entre nações ou na frente nacional), nem a nada que reduza o poderio dos políticos como classe
Bertrand Russell
 

A foto da presidente afastada vale mais que 1 milhão de palavras

O talentoso publicitário George Norman, falecido, criou o slogan “Um gesto vale mais que mil palavras”. Lembrei-me do amigo depois que vi a foto de Dilma Rousseff, toda sorridente, no Palácio da Alvorada. Na entrevista à “Folha de S.Paulo” (que li inteirinha), o que ela disse é um atestado de que jamais poderia ter chegado à Presidência da República. Essa foto, leitor, vale mais que 1 milhão de palavras!

Mas passemos adiante. Mesmo errado e titubeante, em momentos decisivos, não seria exagero dizer que não há ninguém que conheça mais o Congresso Nacional, suas entranhas e, hoje, sua baixíssima qualidade moral, do que o presidente interino Michel Temer, que o presidiu por três vezes. Temer também conviveu com Ulysses Guimarães, de quem foi companheiro durante anos no PMDB.

Estou falando de 1981, quando o paulista de Tietê (SP) foi nomeado, pelo então governador Franco Montoro, procurador geral do Estado. Em 1984, Montoro o nomeou secretário de Segurança Pública. Em 1986, foi eleito suplente de deputado federal constituinte. Assumiu a Câmara em 1987, em seguida à nomeação, para o cargo de secretário de Agricultura do mesmo governo, do deputado Antônio Tidei de Lima.

Em 1990, Temer foi candidato à Câmara Federal, mas novamente permaneceu na suplência. Obteve, na época, 32 mil votos. Em 1991, assumiu de novo o cargo de procurador geral do Estado, no governo de Luiz Antônio Fleury Filho, e, em 1992, ocupou outra vez a Secretaria de Segurança Pública, por ocasião do massacre do Carandiru. Em 1995, foi eleito deputado com 71 mil votos. Foi reeleito até o ano de 2010. Integrou depois, como vice, a chapa de Dilma à Presidência.

Exponho isso aí em cima só para dizer, com algum amparo, que, por dedução lógica (depois dessa avalanche, que é só o carnegão de uma corrupção que já existe há séculos aqui, não conheço nem sequer a mim mesmo), Temer não é um neófito. Ou estou enganado?

Adotemos, então, leitor, o bom humor diante do mau humor que está levando o país ao pior dos confrontos. Admitamos que Temer tenha acertado na nomeação da equipe econômica chefiada por Henrique Meirelles; admitamos que tenha ainda, pelas mãos do senador José Serra, acertado na condução de nossa política externa, que tem, agora, um rumo visível e defensável; admitamos também que as medidas econômicas que serão propostas pelo referido ministro Meirelles sejam aprovadas pelo Congresso (se este é ruim, espere pelo próximo, como novamente diria hoje Ulysses Guimarães); admitamos que Temer não mais titubeie na dispensa de seus auxiliares que sejam pegos pela Lava Jato; admitamos, enfim, que nenhuma fita o alcance... Temer seria, então, um bom caminho. Afinal, Dilma demitiu, na faxina ética, sete ministros, e Itamar, além de demissões, fez o diabo para chegar às eleições.

Pior, muito pior, seria imaginar que a presidente afastada possa voltar. “Cruzes!”, diria o Brasil. Só ela acredita nisso, ou melhor, só ela é capaz de falar à imprensa que acredita nisso. Na verdade (virtude que ela definitivamente não pratica), nem ela mesma acredita. E ela sabe (à exceção de alguns renitentes ou comprometidos petistas) que, além de o PT não acreditar nessa volta, ele não a quer mais.

Eleição direta, neste ano, sem dois renunciantes, é impossível; mediante estupro à Constituição, é o sonho de alguns golpistas; indireta, pelo atual Congresso, é terrível pesadelo, além de uma enorme temeridade.

Ruim com Temer, poderá ser pior sem ele.

O partido dos artistas

"Impressiona o quão diverso é o universo dos que reivindicaram a volta do MinC. Não me recordo de ter visto tamanha reação à extinção de um órgão federal.” Juca Ferreira, ex-ministro da Cultura, autor das frases, tem razão nesse ponto específico: a “volta do MinC” tornou-se uma “causa célebre” dos artistas (ou dos “produtores de cultura”, se preferirem). Os artistas venceram — mas, no processo, perderam uma oportunidade singular de explicar sua causa à sociedade. Afinal, eles querem a cultura ou querem o MinC, que não são a mesma coisa?

Não são? Na “guerra do MinC”, falou-se da cultura como “alma de um país” (Fernanda Montenegro) e “área estratégica” (Juca Ferreira). As definições soam bem, mas suas implicações substanciais preocupam.

A primeira remete à noção de identidade nacional: a “educação das massas” por uma elite iluminada. No Império do Brasil, a cultura deveria servir como ferramenta do projeto de edificação de uma nação europeia nos trópicos. No outono da República populista, sob o signo do CPC da UNE, a cultura tinha a missão de estabelecer um “caráter nacional” inspirado pela ideia de “resistência ao imperialismo”. A cultura ajuda-nos a entender quem somos, como indivíduos. Algo bem diverso é a deliberação política de contar uma história sobre quem somos, como nação. Fernanda Montenegro, imagino, não pensa nisso, apesar de sua frase sobre a “alma”. Mas é nisso, entre outras coisas, que Juca Ferreira pensa quando enaltece o “projeto de nação” associado ao “governo Lula”.

A segunda definição remete à geopolítica. Na França, por exemplo, atribui-se à cultura a função estratégica de proteger a esfera da francofonia diante da marcha avassaladora da língua inglesa. O “patrimônio cultural”, nesse caso, coagula-se em prestígio nacional, influência externa e negócios nos mercados dos audiovisuais. Juca Ferreira tem algo paralelo em mente quando escreve que o “seu” MinC inscreveu a “cultura brasileira” na nossa “agenda internacional”, convertendo-a em “ativo do Brasil” que “desperta a admiração do mundo”. Na “guerra pelo MinC”, os artistas não esclareceram se o que querem mesmo é essa “cultura for export”, selecionada por um órgão estatal e necessariamente higienizada, pois formatada de modo a produzir a “admiração do mundo”.

Juca Ferreira diz que, no governo Lula, “a política cultural foi elevada ao patamar de Política de Estado” (assim, com as maiúsculas reverenciais) — e, referindo-se especialmente aos “mais de cinco mil” Pontos de Cultura designados a “apoiar diretamente as iniciativas de cada comunidade”, explica que a cultura ganhou lugar de relevo na “agenda social”. O ex-ministro reivindicava para o MinC uma dotação assegurada de 2% do Orçamento da União, mais que o dobro do Bolsa Família e quase metade do valor destinado à Educação. A meta, nunca atingida, evidencia a vontade de erguer uma poderosa estatal da cultura, capaz de colocar um rótulo do governo federal em “cada comunidade” — ou, dito de outro modo, de atrelar ao patrocínio oficial os incontáveis grupos de “fazedores de cultura” espalhados pelo país.

“Cultura”, aqui, adquire um nítido significado político, ligado a operações de cooptação e à difusão de extensas redes de patrimonialismo. Uma parte desse programa foi realizada na gestão de Ferreira, que chegou a obter 1,3% do Orçamento da União. As implicações disso estão, hoje, à vista de todos. Na etapa derradeira da “guerra pelo MinC”, o partido dos artistas cindiu-se em duas alas — e a mais radicalizada delas proclamou que a ocupação de unidades do MinC prosseguiria até a “queda de Temer”. Explicitamente celebrado pelo ex-ministro, o movimento não exibe demandas culturais discerníveis — a menos, é claro, que se postule uma equivalência entre “cultura” e “lulopetismo”. Será disso que efetivamente se trata, quando se fala na “alma de um país”?

Existe, certamente, um papel do Estado na esfera da cultura, como sabem as pessoas razoavelmente cultas e sensatas, que não se deixam hipnotizar pelos porta-vozes de uma insignificante seita ultraliberal. Isso dito, por que precisamos de um ministério exclusivo para a cultura? No exterior, há modelos que, de olhos postos na revolução da informação, vinculam cultura e comunicação num órgão único. São igualmente fortes os argumentos para unificar Cultura e Educação, como sugere inadvertidamente a própria Fernanda Montenegro (“a educação é um esqueleto que para ficar de pé tem que ter a musculatura da cultura”). Contudo, o partido dos artistas privou-nos de um debate sobre o tema, fixando-se no dogma sacrossanto do ministério exclusivo. Suspeito que a obsessão não mantém relação alguma com a cultura.

A pesca é importante — mas precisamos de um Ministério da Pesca? As mulheres e os direitos humanos também o são, assim como, por motivos distintos, os portos e as micro e pequenas empresas. Sabe-se que o organograma dos 39 ministérios de Dilma Rousseff tinha a finalidade de comprar o apoio da “base aliada”. Esquece-se, vezes demais, que funcionava igualmente como instrumento de uma política neocorporativista que concedia a setores sociais organizados o privilégio de uma cadeira reservada no salão reluzente de intercâmbios e negócios com o poder público. Desconfio que, na sua épica “guerra pelo MinC”, o partido dos artistas combatia essencialmente pela manutenção de um passaporte diplomático que lhes confere acesso direto aos cofres do Tesouro.

“Alma de um país”? Os museus e as orquestras sinfônicas desfalecem à míngua, longe das luzes dos holofotes. “Área estratégica”? A Biblioteca Nacional, a sétima maior do mundo, com suas dez milhões de peças, está entregue às traças, aos ratos e à água de infiltrações, um destino compartilhado por tantas bibliotecas públicas municipais. Não tenho notícia de um manifesto dos artistas sobre isto ou aquilo. Viva o MinC!

Demétrio Magnoli

O cão e o lobo

Um lobo muito magro e faminto, todo pele e ossos, pôs-se um dia a filosofar sobre as tristezas da vida. E nisso estava quando lhe surge pela frente um cão – mas um cão e tanto, gordo, forte, de pelo fino e lustroso.

Espicaçado pela fome, o lobo teve ímpeto de atirar-se a ele. A prudência, entretanto, cochichou-lhe ao ouvido: – “Cuidado! Quem se mete a lutar com um cão desses sai perdendo”.

O lobo aproximou-se do cão com toda a cautela e disse :

– Bravos! Palavra de honra que nunca vi um cão mais gordo nem mais forte. Que pernas rijas, que pelo macio! Vê-se que o amigo se trata …

– É verdade! – respondeu o cão. Confesso que tenho tratamento de fidalgo. Mas, amigo lobo, suponho que você pode levar a mesma boa vida que levo.

– Como?

– Basta que abandone esse viver errante, esses hábitos selvagens e se civilize, como eu.

– Explique-me lá isso por miúdo, pediu o lobo com um brilho de esperança nos olhos.

– É fácil. Eu apresento você ao meu senhor. Ele, está claro, simpatiza-se e dá a você o mesmo tratamento que dá a mim: bons ossos de galinha, nacos de carne, um canil com palha macia. Além disso, agrados, mimos a toda hora, palmadas amigas, um nome.

– Aceito! – respondeu o lobo. Quem não deixará uma vida miserável como esta por uma de regalos assim?

– Em troca disso – continuou o cão – você guardará o terreiro, não deixando entrar ladrões nem vagabundos. Agradará ao senhor e à sua família, sacudindo a cauda e lambendo a mão de todos.

– Fechado! resolveu o lobo – e emparelhando-se com o cachorro partiu a caminho da casa. Logo, porém, notou que o cachorro estava de coleira.

– Que diabo é isso que você tem no pescoço?

– É a coleira.

– E para que serve?

– Para me prenderem à corrente.

– Então não é livre, não vai para onde quer, como eu?

– Nem sempre. Passo às vezes vários dias preso, conforme a veneta do meu senhor. Mas que tem isso, se a comida é boa e vem à hora certa?

O lobo entreparou, refletiu e disse:

– Sabe do que mais? Até logo! Prefiro viver magro e faminto, porém livre e dono do meu focinho, a viver gordo e liso como você, mas de coleira ao pescoço.

Fique-se lá com a sua gordura de escravo que eu me contento com a minha magreza de lobo livre.

E afundou no mato.
Monteiro Lobato