segunda-feira, 28 de abril de 2025

Pensamento do Dia



É impossível perdoar um pecado eterno contra a Constituição

Há pecados imperdoáveis, blasfemar contra o Espírito Santo, por exemplo, pois quem os comete põe a si mesmo fora do alcance das leis de Deus. Um pecado imperdoável nega frontalmente a autoridade de Deus, como fez Satanás, cujo destino já está traçado. Ao cometer tal pecado a pessoa escolhe, livremente, ficar fora do alcance da infinita misericórdia do Senhor, tomando uma atitude da mais extrema arrogância.

“Em verdade vos digo: todos os pecados serão perdoados aos filhos dos homens, e também todas as blasfêmias que proferirem; mas quem blasfemar contra o Espírito Santo jamais terá perdão, é réu de pecado eterno.” 
Marcos 3:28-29; cf. Mateus 12:31-32 e Lucas 12:10

Por assim dizer, perdoar um pecado imperdoável não pode depender da boa vontade, da misericórdia, do amor de Deus ou de seus sacerdotes. Fazer isso seria uma impossibilidade absoluta. Afinal, não se pode perdoar quem não reconhece, no fundo do seu coração, a autoridade de quem tem poder de perdoar e a gravidade dos atos cometidos. Um sacerdote que insistisse em uma ideia satânica como essa estaria contribuindo para o descrédito, para a destruição de Lei de Deus aos olhos dos homens.

Neste caso, o sacerdote estaria falando falsamente em nome Dele para falsamente perdoar alguém que não se arrependeu, que não reconhece Sua autoridade. Desta forma, estaria expondo a Deus e toda a Cristandade ao escárnio da multidão ao dizer, ainda que falsamente, que Deus perdoaria a quem não aceita Sua autoridade; que Deus se curva diante dos arrogantes que não se submetem à sua Lei.


Não é preciso nem dizer que Deus jamais faria ou autorizaria que alguém fizesse algo que contrariasse Sua autoridade. Dizer ou pensar algo assim é evidentemente ridículo, não faz sentido algum. Se é verdade que a vontade de Deus será sempre misteriosa, a sua autoridade não pode ser. Ela deve aparecer clara, cristalina, inequívoca para os crentes. Aceitar a autoridade de Deus e de sua Lei é imprescindível para quem tem fé, e a fé é a condição necessária para a salvação.

Há outros casos em que as leis se preocupam como o problema da sua própria destruição, leis divinas e leis humanas. Casos que podem nos ajudar a compreender o problema da anistia, pois exigem um raciocínio semelhante para serem plenamente compreendidos.

Por exemplo, há faltas de um pai ou de uma mãe de família, as quais nem o Judiciário, nem ninguém tem o poder de perdoar. Apontar tais faltas e puni-las é de interesse público, pois estamos falando de menores que merecem proteção de todos nós, inclusive contra violências ocorridas no seio das famílias. O servidor público, o Juiz que deixasse de tomar providências para responsabilizar os infratores estariam traindo seus deveres e poderia, inclusive, ser punido por isso.

Nesse caso, também não se trata de boa vontade, de misericórdia, de amor ou de senso de justiça. O perdão se torna impossível porque o pai ou a mãe destruiu a sua própria autoridade e colocou em risco a autoridade da instituição da família diante de toda a sociedade.

Tais pais ou mães, com suas ações ilegais, deixam claro que renunciam de fato à sua condição de pai ou mãe, destruindo a própria autoridade e negando as leis que regulam as famílias em geral. Manter filhos ou filhas sob o poder de alguém que, por exemplo, os abandonou, significaria oferecer ao escárnio público todos os demais pais e mães que cuidam bem dos seus filhos e ameaçar a autoridade dos chefes de todas as famílias que existem.

Além de um poder moral e religioso, o poder do pai e da mãe sobre filhos e filhas também é regulado pelo direito, tal é a importância da família para a nação brasileira. Assim, diz o Código Civil brasileiro em seu artigo 1.638 que, por exemplo, perderá por ato judicial o poder familiar, o pai ou a mãe que castigar imoderadamente o filho (inciso I), deixar o filho em abandono (inciso II) e entregar de forma irregular o filho a terceiro para fins de adoção (inciso V).

Como se vê, o direito protege tanto as crianças, quanto a autoridade de pais e mães e da família em geral. Não se pode permitir que um falso pai ou uma falsa mãe permaneça juridicamente exercendo poder sobre seus filhos depois de praticar atos que negam a sua autoridade. Fazer tal coisa, no limite, poderia destruir a autoridade de todo o pai e de toda mãe de família. Afinal, quem respeitaria o direito de um país que permitisse que pais e mães abandonassem seus filhos e continuassem a gozar do status jurídico de pai e mãe?

Também nesse caso, o que poderíamos chamar, por comparação, de pecados eternos contra o poder da família, são impassíveis de perdão. Perdoar colocaria em risco a proteção da família como instituição e as leis do país, que se tornariam ridículas aos olhos de todos.

E vale insistir nesse ponto: o Juiz, o servidor público que se deixasse levar pela boa vontade, pela misericórdia, pelo amor, pelo senso de justiça para perdoar, neste caso, estaria cometendo uma violência inominável contra todos os bons pais e mães de família, contra a instituição da família e contra as leis do seu país. E estaria incentivando a arrogância de falsos pais e falsas mães que poderiam se sentir acima das leis, autorizados a fazer as maiores barbaridades com seus filhos.

Em seu depoimento à justiça brasileira, a cabeleireira Débora Rodrigues, que participou dos atos no dia 8 de janeiro passado e pichou a estátua da Justiça localizada diante do STF, não se refere a si mesma como cidadã brasileira. Ela fala de si mesma como patriota. Faz questão de se identificar como patriota para mostrar que faz parte de um grupo que atribui a si mesmo uma qualidade que, aparentemente, essas pessoas julgam que nós, que eu, José Rodrigo Rodriguez, simples cidadão brasileiro, não possuo. Mas, se eles e ela são os patriotas nós, que não fazemos parte deste grupo, seremos por lógica simples, os não-patriotas.

É verdade que em seu depoimento, disponível no Youtube, Débora pede perdão ao estado de direito. Mas, ao mesmo tempo, diz que o Juiz está errado: ela não teria cometido crime algum. Fala de seus filhos, fala de sua família, chora para comover o juiz, afinal, pois está encarcerada, imersa no desespero da salvação, mas não nega nenhum dos fatos que lhe foram atribuídos. Em atitude soberba, julga saber melhor do que o Judiciário o que eles significam.

Uma pessoa arrogante, que fala de maneira arrogante para se colocar, na condição de patriota, acima das instituições. Uma pessoa que acredita saber mais do que o Juiz e pede… Pede não, exige, o perdão de nossas instituições.

Débora não está fazendo nada de diferente da liderança maior dos patriotas, Jair Messias Bolsonaro. Ele também não pede, ele exige anistia. Jamais demonstra arrependimento, também não nega os fatos que lhe foram atribuídos, apenas acredita saber melhor do que o Judiciário o que eles significam. Ele também alega não ter cometido crime algum, portanto, a anistia no fundo, não seria exatamente um perdão. Aos seus olhos e aos olhos de Débora Rodrigues, trata-se exigir do Estado de um julgamento pelo Congresso no lugar dos Juízes.

O ex-presidente quer que a anistia funcione como um julgamento que substitua o julgamento dos Juízes, aos quais ele não atribui autoridade competente para julgá-lo. Ele pede perdão, mas em atitude de afronta ao estado democrático de direito. Jair Bolsonaro primeiro, julga estar acima das leis, segundo acredita ser capaz de interpretá-las melhor do que as autoridades competentes e, terceiro, exige escolher o Juiz que deveria poder julgá-lo.

Será que ser patriota significa isso? Significa manter a soberba para colocar em risco, três vezes, para negar, três vezes, a autoridade de nossas leis?

O ex-presidente e a cabeleireira não foram investigados por qualquer crime. Foram investigados e serão julgados por um pecado eterno contra o estado de direito brasileiro. Os fatos que praticaram negam frontalmente a autoridade do estado de direito e, como no caso da blasfêmia contra o Espírito Santo e dos pecados eternos contra a família, não podem ficar impunes. Mais do que isso, são materialmente impassíveis de perdão.

O que está em jogo não é o ser humano Jair Messias Bolsonaro, o ser humano Débora Rodrigues ou qualquer outra pessoa acusada de participar da trama golpista e dos atos de 08 de janeiro. Está em jogo a autoridade das leis. É evidente que estamos diante de uma mãe, de um pai, é evidente as famílias, os filhos estão sofrendo com tudo isso. No entanto, infelizmente, nesse caso, as autoridades não podem se deixar levar pela boa vontade, pela misericórdia, pelo amor, pelo senso de justiça e simplesmente resolver perdoar.

Se houver alguma injustiça no cálculo da pena de Débora, que seja corrigida pelo Judiciário: é evidente que sua participação nos fatos não pode ser jamais comparada com a participação do ex-presidente. É fundamental que ela e Jair Bolsonaro sejam julgados com amplo direito de defesa. Dito isso, cabe observar, totalmente inadequado utilizar a anistia, esse favor do Estado que pode ser concedido a alguém, com a finalidade de substituir uma sentença que é de competência do Judiciário.

Ainda mais para perdoar pessoas arrogantes que não se apresentam como cidadãos brasileiros, mas como patriotas, e exigem um tratamento especial da República. Exigem um perdão que deveriam estar pedindo humildemente. Seguem negando a autoridade do Estado e das leis em uma atitude aberta de afronta.

Estas pessoas arrogantes, Débora Rodrigues e Jair Messias Bolsonaro, este, que ainda não reconheceu sua derrota nas urnas, que não respeita a autoridade da Presidência da República, que nega a autoridade da Polícia Federal para investigá-lo, que nega a autoridade dos Juízes para julgá-lo, que exige, não pede, anistia. Estas pessoas que exigem o perdão de autoridades que, no fundo de seus corações, consideram desprezíveis.

Não faz sentido algum perdoar quem nega a autoridade daqueles que são competentes, que têm o poder de perdoar. Insistir na ideia da anistia, neste caso, significaria premiar a soberba e expor o estado de direito ao mais completo ridículo. Ademais, por sua impossibilidade material, o perdão seria um fato juridicamente inexistente, irrelevante para o direito. Perdoar, nesse caso, é impossível.

A Constituição brasileira, evidentemente, não utiliza a linguagem do perdão, mobilizada neste texto apenas para facilitar a compreensão do instituto. No entanto, é claro — não é sequer preciso dizer — que não faria sentido algum conceder anistia a pessoas que negam a autoridade do Estado e acreditam que conspirar contra a Constituição e agir nesse sentido não constitui crime. A possibilidade de concessão de anistia, prevista na Constituição, só pode ter como objetivo preservar a lei — e não promover a sua destruição.

Assim como perdoar a blasfêmia contra o Espírito Santo contribuiria para destruir a autoridade da Lei de Deus diante de seus fiéis; assim como perdoar um falso pai e uma falsa mãe por atos violentos cometidos contra os seus filhos contribuiria para destruir a autoridade da lei da família diante da comunidade, anistiar pessoas que arrogantemente desafiam a autoridade do Estado, ou seja, das pessoas competentes para conceder a anistia, contribuiria para destruir a autoridade da Constituição e do estado democrático de direito brasileiro. Na verdade, essa proposta de lei de anistia não passa de uma proposta de lei do golpe.

Subterrâneos das redes sociais revelam riscos à sociedade

Três homens foram presos no Domingo de Páscoa. Planejavam matar um morador de rua, no Rio, e transmitir o crime ao vivo pela rede Discord. A notícia passou um pouco batida. Para mim, que acompanho algumas pesquisas, como as de Michele Prado sobre extremismo na internet, foi mais um sinal do tenebroso subterrâneo das redes sociais.

Por coincidência, um órgão da ONU, o Instituto Inter-Regional de Pesquisa sobre Crime e Justiça das Nações Unidas (Unicri), lançou um documento sobre o abuso das tecnologias digitais, focando na América Latina, África e Ásia. É um texto de 84 páginas que recomenda aumentar o investimento em investigações, a intensidade das pesquisas e a responsabilidade das big techs.


Os esforços de pesquisa sobre extremismo sempre se concentraram no Oriente Médio. As lentes se voltam para outros cantos. Ficamos sabendo de organizações de extrema esquerda, como a Individualistas que Tendem ao Selvagem, que atua no México. O texto passa também por supremacistas brancos da África do Sul e organizações na Índia voltadas para defender a “essência” do hinduísmo.

O Brasil tem destaque no relatório. Somos um país muito presente na internet, espaço onde se articulam os crimes que passam por atentados em escolas, assassinatos e outros típicos da rede, como o ataque DDoS, que consiste em inundar com chamadas um endereço para que pare de funcionar.

O destaque brasileiro no relatório é uma organização chamada Nova Resistência Duginista. Quase totalmente desconhecida da mídia, é uma organização muito falada no mundo clandestino. Ela diz seguir os ensinamentos de Alexander Dugin, intelectual russo cujo livro mais conhecido se chama “A quarta teoria política”. Ele defende a expansão do poderio russo e propõe um novo tipo de fascismo revolucionário, que poderia também encontrar algum eco na extrema esquerda preocupada em destruir o sistema.

A Nova Resistência recrutou nas redes voluntários para lutar ao lado dos russos contra a Ucrânia. Foi acusada pelos Estados Unidos de disseminar fake news em favor da Rússia. Essas organizações atuam na internet com dispositivos de comunicação interna e externa. Usam crowdfunding para se financiar e trabalham também com criptomoedas. Os textos da Nova Resistência afirmam que a organização levou brasileiros para Donbass, na Ucrânia, com fins humanitários e jornalísticos, e que atua de acordo com as leis brasileiras.

Esse é o lado mais intelectualizado. Há aspectos mais abertamente violentos nos subterrâneos das redes. São grupos que atuam em plataformas menores, mas constantemente enveredam pelo TikTok.

Um deles se intitula Ordem dos Nove Ângulos e propaga a violência de forma irrestrita, inclusive automutilação. O instrumento de trabalho também são os games. O Center on Extremism da Liga Antidifamação identificou, recentemente, uma grave ameaça na plataforma Roblox. Um grupo chamado Active Shooter Studios cria jogos para a Roblox simulando massacres escolares reais, como o de Columbine, e atentados com motivação racista. A ideia é se colocar no papel de atirador ou de vítima, com gritos, sangue e simulação de suicídio.

As organizações abordadas pelo relatório da ONU são principalmente as que têm mensagem política, como o fascismo da Nova Resistência, a supremacia branca dos sul-africanos, o hinduísmo radical na Índia. No subterrâneo atuam grupos com uma mensagem de pura violência como a True Crime Community. Funcionam na verdade como porta de entrada para todas as ideologias que propõem o colapso social pela violência.

No Brasil, há vigilância social por meio de sites como o Stop Hate Brasil e estruturas de investigação na Polícia Federal e em alguns estados. Tudo ainda é muito pouco para dar conta desse universo subterrâneo, mas em contato permanente com a superfície onde as big techs investem pouco no controle e, em certos casos, mal compreendem outro idioma que não seja o inglês.

Isto é simples

Muda é a força (me dizem as árvores)

e a profundidade (me dizem as raízes)
e a pureza (me diz o trigo).

Nenhuma árvore me disse:
“Sou mais alta que todas”.

Nenhuma raiz me disse:
“Eu venho de mais fundo”.

E nunca o pão me disse:
“Não há nada como o pão”.
João Guimarães Rosa

O papa Francisco e a extrema direita no catolicismo

Sem dúvida, o papado de Francisco foi um grande contraponto à ascensão de lideranças de extrema direita e regimes autoritários. Seu legado para a Igreja Católica e para o mundo foi de extrema importância para a defesa das igualdades e para a ampliação das vozes do Sul Global dentro da Igreja, vindas da Ásia, África e América Latina.

Atualmente, a América Latina está na liderança no número de fiéis com mais de 40% dos católicos do mundo, e o Brasil segue sendo o país com o maior número absoluto, com 182 milhões devotos, o maior rebanho do mundo.


Não à toa, dentre os líderes religiosos mais influentes do país estão padres católicos. O padre Fábio de Melo é o mais popular de todos, com 26 milhões de seguidores no Instagram, seguido pelo padre Marcelo Rossi, com 10,3 milhões, mesmo número de seguidores do perfil oficial do papa Francisco.

Porém, ao contrário do papa Francisco, Fábio de Melo e Marcelo Rossi jamais se posicionaram abertamente contra o crescimento da extrema direita no país. Sem citar nomes, o papa disse, durante as eleições de 2022: "Peço a Nossa Senhora Aparecida que proteja e cuide do povo brasileiro, que o livre do ódio, da intolerância e da violência", causando descontentamento entre eleitores do ex-presidente de extrema direita.

É justamente a oposição aberta ao papa Francisco que aglutinou e mobilizou setores da extrema direita católica no país nos últimos anos. De acordo com o teólogo Venâncio Romero, professor da Universidade Federal do Sergipe, a expansão das redes sociais, em conjunto com o abandono da formação de base e da piora da qualidade da preparação do clero brasileiro, influenciou a popularização da extrema direita católica no país e a atração de padres pelo tradicionalismo.

Para além de figuras populares nas redes sociais, como o padre Paulo Ricardo, que já soma 2,5 milhões de seguidores no Instagram, movimentos como os Arautos do Evangelho vêm crescendo rapidamente. Fundado em 1999 por João Clá Dias, o grupo está ligado à Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição Família e Propriedade, mais conhecida como TFP, que atuou em prol do golpe de 1964 e da ditadura militar no país.

Em 2011, os Arautos passaram a ser uma associação com caráter pontifício, aceitos pelo papa Bento 16 em 2011, mas que estavam sob intervenção do papa Francisco por conta do tratamento dispensado a seus internos. Os jovens que integram os Arautos do Evangelho usam pesadas vestes medievais a despeito do clima tropical e já foram alvo de agressões físicas, verbais, assédio sexual, alienação parental, tortura, estupro e até homicídio, segundo uma série de denúncias junto à Igreja e à Justiça brasileira.

Porém, a ampla exposição negativa na mídia e o conflito com o Vaticano parecem não ter tido maior impacto na atuação dos Arautos, que hoje já possuem 3.000 membros e já se espalharam por mais de 70 países.

No clima político atual, o crescimento de seitas como os Arautos do Evangelho tornou-se uma questão séria a ser enfrentada pela Igreja e pela sociedade. E a escolha do próximo papa pode fazer a diferença entre um futuro mais ou menos parecido com a distopia escrita por Margaret Atwood, "O Conto de Aia". Basta uma visita à sede dos Arautos do Evangelho para confirmar que a comparação está longe de ser exagerada.

Mao, Trump e a confusão sob os céus

Se bem observarmos, nem tão amalucada assim é a insólita aproximação entre Mao Zedong e Donald Trump, que diferentes observadores passaram a fazer. “Há uma grande confusão sob os céus, a situação está excelente” – sob este lema paradoxal, o primeiro daqueles dois se lançou à destruição das velharias que supostamente atravancavam o processo revolucionário em seu país na década de 1960. Trump, o seguidor inesperado, esmera-se hoje em lançar sua própria versão do caos: uma espécie de guerra econômica de todos contra todos, esperando com isso refazer unilateralmente a primazia norte-americana, com base no medo e na chantagem.

Em ambos os casos, o pressuposto da ação política vem a ser uma revolução cultural que não deve deixar pedra sobre pedra. A burocracia do partido e do Estado chinês era o inimigo declarado do voluntarismo extremado de Mao, tal como, agora, o deep State se tornou o alvo do radicalizado partido trumpista. Assim, China e Estados Unidos voltam a ocupar a atenção geral, ainda que com sinal invertido. Antes, a China do camarada Mao pretendia ocupar o posto de vanguarda da revolução comunista, com o cerco das cidades (capitalistas) pelo mundo rural sublevado. Neste momento, contudo, revolucionária seria a América ultraconservadora, com o projeto de fazer retroagir a roda da História e moldar o mundo à imagem e semelhança de um passado irretocável – e inexistente.


Certa de que o século 21 será mais cedo ou mais tarde asiático, a China age, calcula e enriquece com sabedoria, valendo-se das regras do jogo até há pouco jogado para realizar, desta vez com inegável êxito, seu grande salto para a frente. A arrancada econômica serve de biombo ou álibi, para esconder o evidente déficit democrático.

Estimula, ainda, a noção de um Ocidente em declínio, com sociedades irremediavelmente dilaceradas e grupos dirigentes particularmente incapazes de se moverem num contexto de “policrise”, para usar a inquietante expressão de Adam Tooze.

Mais nebulosa, porém, é a certeza de que uma ambição hegemônica, no sentido alto do termo, possa se concretizar a partir de uma sociedade controlada digitalmente por um partido único totalizante e onipotente como poucos. Um sistema de “créditos sociais”, atribuídos a cada indivíduo, tem o potencial de degenerar rapidamente em controle e repressão aberta ou silenciosa, com um desfecho de tipo orwelliano – se é que já não degenerou. A tímida liberalização chinesa estancou com a ascensão de Xi Jinping, o strongman requerido por estruturas sociais desta natureza, tão ou mais poderoso do que Mao a seu tempo.

A sedução dos strongmen também habita corações e mentes da extrema direita ocidental. É preciso qualificar um pouco mais o caos que ela celebra e em que prospera.

Impressiona antes de mais nada o tom apocalíptico usado por Trump – a figura típica por excelência – para descrever a realidade que percebe no seu país. Invadidos por imigrantes indesejáveis e manipulados pelo inimigo interno, que toma corpo em intelectuais, professores e demais camadas e classes de orientação cosmopolita, os Estados Unidos são ainda por cima sistematicamente espoliados e oprimidos por todos os demais países, aliados ou não, numa espécie de imperialismo às avessas. Trata-se, por isso, de mobilizar a enorme e confusa massa de ressentimentos contra um ambiente visto como universalmente hostil.

A economia, por exemplo, deve voltar a produzir bens palpáveis e empregar mão de obra masculina, de baixa qualificação relativa. A revolução dos costumes, que altera papéis tradicionais, é vivida como fonte de decadência moral e corrosão de valores. O líder tem, ou afirma ter, procuração para simplificar autoritariamente a complexidade da sociedade civil e as mediações institucionais da sociedade política, buscando a concentração de poderes. Neste ponto – Orwell de novo –, ignorância é força, as universidades são cerceadas, as pesquisas reprimidas, as liberdades públicas golpeadas – em detrimento, inclusive, do homem comum, o suposto beneficiário deste conjunto de arbitrariedades que se acumulam e terminam por anulara riqueza das formas ocidentais de vida.

Homens fortes se entendem e até se respeitam à sua maneira, por mais diversas que sejam as motivações, os contextos de origem e os antagonismos, que encenam ou realmente vivem. Entre Trump, Xi e Putin(o sócio menor que os dois primeiros disputam, coma óbvia vantagem de Xi), há um fio que os liga, uma secreta correspondência de que alternadamente se socorrem em benefício pessoal ou dos sistemas de poder que encarnam. Por trás da guerra comercial desatada e dos conflitos militares correntes ou potenciais, existe, na verdade, uma grande questão democrática a ser enfrentada e desenvolvida. Para tanto, os democratas e a própria democracia deverão saber se reinventar sob fogo cerrado, reafirmando tanto quanto possível sua vocação cosmopolita e retomando contato com medos e esperanças da gente comum, hoje demagogicamente explorados em sentido regressista.