sexta-feira, 18 de outubro de 2019

A natureza já não pode mais sustentar os humanos

Em 30 anos, mais de metade da população mundial sofrerá as consequências de uma natureza gravemente ferida. Um amplo estudo modelou o que os diferentes ecossistemas e processos biológicos oferecem hoje aos seres humanos e o que poderão lhes dar em 2050. Por diversas causas, a maioria antropogênicas, processos naturais como a polinização dos cultivos e a renovação da água reduzirão sua contribuição ao bem-estar humano. A pior parte caberá a regiões que hoje têm um maior capital natural, como a África e boa parte da Ásia.

Os autores da pesquisa determinaram a contribuição natural dos diversos ecossistemas a três processos cruciais para os humanos: a polinização por parte de insetos e aves, a regeneração da água mediante a retirada do excesso de nitrogênio procedente da agropecuária e a proteção que diversas barreiras naturais oferecem na linha de costa. "A natureza oferece muito mais aos humanos: em um anterior trabalho propusemos 18 grandes famílias de contribuições naturais, mas não há dados de todas elas e para todo o planeta", diz o pesquisador Unai Pascal, do Basque Centre for Climate Change (BC3), coautor do estudo, explicando a escolha destas três contribuições.


Sobrepuseram esses dados aos da população atual e a prevista em 2050 em escala local. O modelo incluiu também os diferentes fatores que mais estão deteriorando a natureza, como as mudanças no uso da terra em forma de desmatamento e o avanço da agricultura, a acelerada urbanização e a mudança climática. Por último, aplicaram seu modelo a três possíveis cenários: um em que as sociedades continuarão baseadas no uso dos combustíveis fósseis, como agora, outro emergente, que denominaram de rivalidade regional, e um terceiro protagonizado pela sustentabilidade.

O trabalho, publicado na Science, conclui que, no pior dos cenários, até 4,45 bilhões de pessoas poderiam ter problemas com a qualidade da água por causa da incapacidade dos diferentes ecossistemas para regenerá-la. Além disso, quase cinco bilhões de humanos sofrerão uma diminuição significativa no rendimento de seus cultivos por causa da polinização deficiente.

Os piores resultados não se dão no cenário onde o petróleo (e as emissões de CO2) são a base do sistema, e sim no novo, de rivalidade regional. "É num cenário de geração de blocos, onde o comércio internacional se regionaliza, algo que já estamos vendo com o Brexit e Trump", comenta Pascal, que é também copresidente do relatório de Avaliação sobre os Valores da Natureza da IPBES (Plataforma Intergovernamental sobre Biodiversidade e Serviços dos Ecossistemas). Neste panorama de nacionalização da globalização, o aumento da população intensificará a pressão sobre os recursos que a natureza pode oferecer em muitas regiões do planeta.

Só uma aposta por uma trajetória sustentável poderia reduzir a um terço ou até um décimo o número de pessoas afetadas pela deterioração dos ecossistemas. Entretanto, seja qual for o cenário que se dê dentro de 30 anos, 500 milhões de habitantes das zonas costeiras enfrentarão um maior risco de erosão do litoral ou de inundações.

O trabalho, plasmado numa poderosa ferramenta visual do Projeto Capital Natural, permite saber quem serão os maiores perdedores. Até 2,5 bilhões de pessoas do leste e sul da Ásia e outros 1,1 bilhão na África sofrerão uma redução na qualidade de sua água. Os riscos costeiros se concentrarão no sul e o norte da Ásia. Enquanto isso, os maiores problemas com a polinização natural caberão de novo ao Sudeste Asiático e África, mas também à Europa e América Latina. Nessas regiões, as pessoas afetadas poderiam se aproximar de 900 milhões.

"Os países em desenvolvimento, que já estavam em desvantagem social e econômica, contavam com supostas vantagens do maior capital natural, mas é aqui onde se degrada mais rapidamente", diz Pascal.

Embora a tecnologia venha suprindo um número crescente de serviços antes prestados pela natureza, desta vez ela poderia não ser a resposta. "Se nos referimos a tecnologias como aquelas que substituam por completo as contribuições da natureza, como a polinização manual de cultivos que fazem na China, ou usinas de tratamento de água para eliminar o nitrogênio, ou a elaboração de estruturas sólidas para proteger as costas, não me parece que sejam a solução", opina por email a pesquisadora da Universidade Nacional Autônoma do México (UNAM) Patricia Balvanera, não relacionada com o estudo.

Especializada na inter-relação entre biodiversidade e bem-estar humano, Balvanera explica: "Não são soluções, por um lado, porque elas não cumprem todas as funções que cumpre a natureza. Ter vegetação ao longo dos rios ou à beira dos lagos não só contribui para a retenção de nitrogênio, mas também para a infiltração da água, para bombear água para a atmosfera, além de ser um lugar apto para a recreação. O mesmo com os mangues, recifes, pastos marinhos. Não só contribuem para a proteção costeira como também são os ninhais dos peixes e, portanto, contribuem para a regulação pesqueira".
A tecnologia não parece ser a solução já que "não cumpre todas as funções que a natureza cumpre"

A concentração das maiores perdas de capital natural nas zonas mais pobres revelada pelo estudo também torna inviável a aposta tecnológica. Assim argumenta a pesquisadora mexicana: "Não é realista que Madagascar possa investir em construções custosas para a proteção costeira. Não é realista que a Índia pudesse instalar centenas ou milhares de usinas de tratamento de água. Tampouco é realista que a China compense toda a polinização com trabalho manual".

Mais realista parece ser conservar a biodiversidade onde ela mais tem a oferecer. E, como diz em nota a cientista Becky Chaplin-Kramer, do Projeto Capital Natural e coautora do estudo, "contamos com a informação que necessitamos para evitar os piores cenários que projetam nossos modelos e avançar para um futuro justo e sustentável".

Jair Bolsonaro transforma PSL em sua Waterloo

Jair Bolsonaro mostra ao país que tem poderes mágicos. Além de extrair crises do nada, o presidente consegue magnificar os problemas, transformando-os em encrencas gigantescas. Na crise com o PSL, Bolsonaro decidiu encenar um personagem conhecido, só que as avessas. Tornou-se um anti-imperador, uma espécie de de Napoleão que se descoroa em praça pública.


Numa manhã, o presidente diz aos repórteres que não fala em público sobre o PSL. À noite sua voz soa em gravações captadas por hipotéticos aliados sem o seu conhecimento. Nelas, Bolsonaro aparece tramando a destituição do líder do partido. Queria trocar o Delegado Waldir pelo filho Eduardo Bolsonaro. Jogou o peso da faixa presidencial numa Operação Tabajara em beneficio da sua dinastia.

Uma guerra de listas transformou a representação do PSL na Câmara numa bancada de fancaria. No câmbio oficial, o partido tem 53 deputados. No câmbio negro das listas, a soma dos apoiadores de Waldir e Eduardo deu 59, um ágio de seis cabeças. Depois de uma checagem, descobriu-se que prevaleceu na guerra da liderança o delegado Waldir, convertido pela conjuntura numa versão pós-moderna do Duque de Wellington, o algoz de Napoleão.

Bolsonaro sabe como fabricar crises. Mas não sabe desfazê-las. Até a semana passada, o presidente tinha uma mulher chamada Michelle, dois filhos no controle dos diretórios do PSL em São Paulo e no Rio, tinha um partido cujos deputados votavam 100% fechados com o governo e um cofre milionário do fundo partidário para conquistar. Hoje, Bolsonaro precisa chegar mais cedo em casa, par verificar o que foi feito de Michelle. Depois de armar contra si mesmo uma derrota com ares de Waterloo, a solidariedade da primeira-dama talvez seja a única coisa que restou ao anti-imperador do Planalto.

A fila anda

Um dos grandes amigos do Brasil e dos brasileiros de hoje é o calendário. Só ele, e mais nenhum outro instrumento à disposição da República, pode resolver um problema que jamais deveria ter se transformado em problema, pois sua função é justamente resolver problemas — o Supremo Tribunal Federal. O STF deu um cavalo de pau nos seus deveres e, com isso, conseguiu promover a si próprio à condição de calamidade pública, como essas que são trazidas por enchentes, vendavais ou terremotos de primeira linha.

Aberrações malignas da natureza, como todo mundo sabe, podem ser resolvidas pela ação do Corpo de Bombeiros e demais serviços de salvamento. Mas o STF é outro bicho. Ali a chuva não para de cair, o vento não para de soprar e a terra não para de tremer — não enquanto os indivíduos que fabricam essas desgraças continuarem em ação.

Eles são os onze ministros que formam a nossa “corte suprema”, e não podem ser demitidos nunca de seus cargos, nem que matem, fritem e comam a própria mãe no plenário. Só há uma maneira da população se livrar legalmente deles: esperar que completem 75 anos de idade. Aí, em compensação, não podem ser salvos nem por seus próprios decretos. Têm de ir embora, no ato, e não podem voltar nunca mais. Glória a Deus.


Demora? Demora, sem dúvida, e muita coisa realmente ruim pode acontecer enquanto o tempo não passa, mas há duas considerações básicas a se fazer antes de abandonar a alma ao desespero a cada vez que se reúne a apavorante “Segunda Turma” do STF — o símbolo, hoje, da maioria de ministros que transformou o Supremo, possivelmente, no pior tribunal superior em funcionamento em todo o mundo civilizado e em toda a nossa história.

 A primeira consideração é que não se pode eliminar o STF sem um golpe de Estado, e isso não é uma opção válida dos pontos de vista político, moral ou prático. A segunda é que o calendário não para. Anda na base das 24 horas a cada dia e dos 365 dias a cada ano, é verdade, mas não há força neste mundo capaz de impedir que ele continue a andar.

Levará embora para sempre, um dia, Gilmar Mendes, Antônio Toffoli, Ricardo Lewandowski. Antes deles, já em novembro do ano que vem e em julho de 2021, irão para casa Celso Mello e Marco Aurélio — será a maior contribuição que terão dado ao país desde sua entrada no serviço público, como acontecerá no caso dos colegas citados acima. E assim, um por um, todos irão embora — os bons, os ruins e os horríveis.

Faz diferença, é claro. Só os dois que irão para a rua a curto prazo já ajudam a mudar o equilíbrio aritmético entre o pouco de bom e o muitíssimo de ruim que existe hoje no tribunal. Como é praticamente impossível que sejam nomeados dois ministros piores do que eles, o resultado é uma soma no polo positivo e uma subtração no polo negativo — o que vai acabar influindo na formação da maioria nas votações em plenário e nas “turmas”.

Com mais algum tempo, em maio de 2023, o Brasil se livra de Lewandowski. A menos que o presidente da época seja Lula, ou coisa parecida, o ministro a ser nomeado para seu lugar tende a ser o seu exato contrário — e o STF, enfim, estará com uma cara bem diferente da que tem hoje. O fato, em suma, é que o calendário não perdoa.

O ministro Gilmar Mendes pode, por exemplo, proibir que o filho do presidente da República seja investigado criminalmente, ou permitir que provas ilegais, obtidas através da prática de crime, sejam válidas numa corte de justiça. Mas não pode obrigar ninguém a fazer aniversário por ele. Gilmar e os seus colegas podem rasgar a Constituição todos os dias, mas não podem fugir da velhice.

O Brasil que vem aí à frente, por esse único fato, será um país melhor. Se você tem menos de 25 ou 30 anos de idade, pode ter certeza de que vai viver numa sociedade com outro conceito do que é justiça. Não estará sujeito, como acontece hoje, à ditadura de um STF que inventa leis, censura órgãos de imprensa e assina despachos em favor de seus próprios membros.

Se tiver mais do que isso, ainda pode pegar um bom período longe do pesadelo de insegurança, desordem e injustiça que existe hoje. Só não há jeito, mesmo, para quem já está na sala de espera da vida, aguardando a chamada para o último voo. Para estes, paciência.

(Poderiam contar, no papel, com o Senado — o único instrumento capaz de encurtar a espera, já que só ele tem o poder de decretar o impeachment de ministros do STF. Mas isso não vai acontecer nunca; o Senado brasileiro é algo geneticamente programado para fazer o mal). Para a maioria, a vitória virá com a passagem do tempo.
José Roberto Guzzo, última crônica, censurada esta semana pela Veja onde publicava quinzenalmente desde 2008

Pensamento do Dia


Crise põe em riscos governabilidade

A crise de vários megatons que explodiu no PSL é a prova mais clara da incapacidade política do presidente Jair Bolsonaro. A sucessão de conflitos foi detonada pelo próprio presidente de forma intempestiva e estabanada. E foi ele que a agravou. Todos os ingredientes seguem seu padrão de comportamento: palavras impensadas, falta de diálogo, privilégio para os filhos. O partido com o qual ele poderia começar a construir a governabilidade está implodindo.

O que alguns analistas disseram logo após a eleição era que Bolsonaro conseguira, com a força da onda em seu favor, eleger a segunda maior bancada. A primeira é a do PT, com um deputado a mais. A partir daí, seria razoável supor que ele conduziria negociações para uma fusão com um ou vários partidos da direita e aumentaria a sua bancada. Que ele, por ter passado 27 anos no parlamento, saberia construir um diálogo com o Congresso, necessário para o seu projeto de governo.

Contudo, seu partido não cresceu, não recebeu adesões, entrou em várias guerras de falanges que ele jamais soube arbitrar. Ontem, no áudio vazado da reunião do PSL, o que fica claro, em meio aos inúmeros palavrões, é que muitos têm a mesma queixa: o presidente não os ouve, não dialoga, não demonstra que eles fazem parte da estrutura de poder.



Se Bolsonaro escanteia seus correligionários, o que dirá dos outros partidos que poderia ter atraído para uma coalizão. Desde o início da administração, ele fez críticas indiretas e genéricas ao Congresso ao afirmar que não faria a “velha política”. Ontem, nomeou um senador do MDB para líder do governo.
Ele jamais foi a nova política, se é que a categoria existe. Quem passou por oito partidos e ficou mais de uma década no PP de Paulo Maluf não representa renovação. Ele inventou essa fantasia porque cabia na demanda do eleitorado de 2018. Para continuar dentro do figurino criado para a ocasião, Jair Bolsonaro disse que não negociaria a formação de alianças, porque não repetiria os erros do passado. A explicação era inverossímil. Seu governo enfraqueceu órgãos de controle do combate à corrupção. O desmonte do Coaf foi apenas um exemplo. O nepotismo o levou a querer o filho na embaixada nos Estados Unidos, pretensão da qual teve que desistir. Ele não construiu uma coalizão porque tem temperamento autoritário. Só telefona para deputados do seu próprio partido quando é para perseguir alguém, como foi dito na reunião da bancada com outras palavras. Ouve apenas os filhos e alguns áulicos.

Para tornar tudo ainda mais complicado, o PSL, que tinha parte pequena do rateio do dinheiro público, ficou rico. Pela lei que distribui os recursos dos fundos partidário e eleitoral, o partido, por ter uma das duas maiores bancadas, passou a ter o controle sobre verba gorda. De novo, os analistas consideraram que Bolsonaro aproveitaria a abundância para tentar dar capilaridade ao partido nas eleições municipais. Em vez disso, ele jogou uma bomba em seu próprio partido.

O que o fez dar aquela declaração contra o PSL e Luciano Bivar, dias antes da operação da Polícia Federal no Recife? Uma coincidência impressionante, dado que a notícia de que o presidente do PSL teria montado um laranjal em Pernambuco foi publicada pela “Folha de S. Paulo” em fevereiro. O presidente demorou oito meses para dizer que ele estava “queimado”. Curioso é que não acha que o laranjal de Minas queima o ministro Marcelo Álvaro Antônio. Uma coisa é certa: na guerra intestina, partiu de Bolsonaro o primeiro tiro.

No Brasil, presidentes constroem coalizões não por opção ou gosto, mas por uma decorrência natural do pluripartidarismo. Nenhum governo desde a redemocratização conseguiu ter a maioria das cadeiras contando só com a própria legenda. O PSL, quando unido, representa 10% da Câmara. Com isso não se governa, mas sem isso fica difícil entender como o presidente pretende garantir governabilidade pelos próximos três anos, dois meses e 14 dias que restam ao seu mandato.

Até hoje, a maioria das crises do governo foi criada pelo próprio governo. O presidente ataca as forças políticas, ofende as instituições, frita ministros, descarta aliados e atira contra seu próprio partido. Segue à risca o manual do isolamento.

De louco todos têm um pouco, ou demais

O presidente parece enlouquecido.  Péssimos assessores têm agravado a situação, à medida em que estimulam uma característica beligerante e irracional já existente. E, para piorar, o presidente ainda passou por mentiroso, uma vez que negou se intrometer em assuntos partidários, o que foi provado ter acontecido
Gustavo Bebianno, ex-presidente do PSL, chefe de Gabinete e homem forte de  Bolsonaro durante a campanha eleitoral 

Segunda temporada

Assim como o antipetismo elegeu Bolsonaro, agora é o antibolsonarismo que cresce e poderá eleger um candidato de oposição em 2022. Acontece em qualquer democracia. Bolsonaro continua caindo nas pesquisas e, desde o início de seu governo, só perdeu eleitores, sem conquistar novos entre os que votaram na oposição. O aumento da truculência, da intolerância e da grossura do “Bolsonaro raiz” só agrada aos devotos do mito, é só para eles que fala, um terço do eleitorado. Mas esse estilo também incomoda e afasta parte de um terço dos independentes e moderados. Uma estratégia arriscada, em que a radicalização pode levar ao isolamento e a unir adversários: os antibolsonaristas são hoje um terço da população.

E se a economia melhorar, o emprego e o salário crescerem, a criminalidade cair? E se forem feitas as reformas da Previdência, a tributária, a administrativa, a eleitoral? Bolsonaro seria imbatível?


Mesmo com o desastre da educação, comandada por um ministro trapalhão, e a constrangedora diplomacia olavista, que — mesmo depois dos choques de realidade que levou — segue tosca e provinciana, a população seria muito beneficiada, voltaria a ter esperanças. Os méritos seriam dos ministérios da Economia e da Justiça. E, no caso das reformas, do Congresso. Seria impossível não reconhecer o sucesso do governo, mesmo se presidido por um personagem detestável, autoritário e divisionista, que se move entre a ala racional-militar e a passional-familiar de seu governo e vive uma espécie de esquizofrenia filosófica: como harmonizar o espírito do liberalismo econômico com o ultraconservadorismo cultural?

Se o liberalismo empodera o cidadão e aumenta a sua liberdade pessoal, econômica e política, diminuindo a influência do Estado, com consequências positivas para toda a população, por que o mesmo governo se intrometeria na vida pessoal dos cidadãos e de suas famílias, com regras de comportamento baseadas em crenças religiosas pessoais, como um enviado de Deus num Estado laico?

O preocupante marasmo econômico

Continuo insistindo em que a situação da economia é altamente preocupante e que a percepção disso não está bem disseminada na sociedade, e tampouco no âmbito da classe política, que está por demonstrar capacidade de enfrentar o problema eficaz e rapidamente.

A situação é pior do que muitos imaginam. Como, por exemplo, neste trecho de reportagem deste jornal na terça-feira (15/10): “Desde o fim da recessão, a partir de janeiro de 2017 (...), era de esperar uma redução na incerteza, mas as turbulências políticas vêm impedindo essa acomodação (...)”. Ora, a economia pode não estar em recessão, conforme definida por convenção entre economistas, mas está muito pior, numa depressão que já dura cinco anos! Como esperar uma sensível redução das incertezas que pairam no cenário econômico?

Depressão é mais grave e duradoura que recessão. Deixando de lado o economês, em 2015 a economia caiu num buraco do qual ainda não saiu. Em números redondos, no biênio 2015-2016, seu PIB caiu 6,0%. No biênio 2017-2018 cresceu 2,0% e, supondo mais 1% este ano, no triênio 2017-2019 terá crescido 3%. Ou seja, recuperou só metade do que perdeu no biênio 2015-2016. E, ainda no buraco, apenas rasteja rumo à superfície.

Os últimos dados do PIB foram os do 2.º trimestre deste ano e mostraram que ele voltou ao seu valor do 2.º trimestre de 2012, retrocedendo sete anos! Estamos noutra das décadas perdidas que se tornaram comuns desde 1980. O pior é que a década atual, com desempenho decenal medido pela taxa média anual de crescimento do PIB, é a pior da série de dados disponíveis desde 1901!

Passando ao desempenho setorial, verifiquei que no mês passado: 1) o produto do setor de serviços estava 12% abaixo do seu nível mais alto, em novembro de 2014; 2) o da indústria geral estava 19,3% inferior ao mesmo ponto, em março de 2011; e 3) o do comércio varejista ampliado estava 9,1% abaixo do recorde da série, em julho de 2012.

Só a agropecuária ficou fora desse desastre, com destaque para a safra de cereais, leguminosas e oleaginosas, que neste ano teve novo recorde e foi 5,9% superior à de 2018. A área plantada foi 3,2% maior que a de 2018. Como a produção cresceu mais que essa área, houve aumento de produtividade, que os demais setores não conseguem entregar.

Coloquei marasmo no título acima na esperança de atrair atenção adicional para o problema. Como marasmo, meu dicionário fala de atrofia progressiva dos órgãos, como os decadentes setores apontados; uma longa enfermidade, como a prostração da economia que já dura um quinquênio; estado de apatia e falta de coragem, como mostrados pela sociedade e seus representantes políticos, respectivamente; e estagnação, que é a ausência de crescimento econômico condizente com o potencial do País. É, mesmo, o Brasil do marasmo.
Uma das manchetes da primeira página da Folha de S.Paulo anteontem também é indicativa desse estado: Economia segue errática, e apostas vão para 2020. O Brasil segue sendo o país do futuro.

Enquanto isso, Brasília continua apostando em reformas capazes de ampliar a confiança de empresários e consumidores, que, assim, acelerariam o consumo e o investimento. Mas os dados citados refletem a presença de capacidade ociosa na economia, o que contribui para retardar novos investimentos empresariais. E os consumidores sofrem com o desemprego, rendimentos estagnados e suas próprias incertezas quanto ao futuro.

Reformas tomam muito tempo na sua formulação e no trânsito pelo Legislativo. A reforma previdenciária deve ser aprovada pelo Senado só na próxima semana. E lá se foi quase um ano para concluí-la. Na reforma tributária, o governo nem sequer apresentou seu próprio projeto, e os que seguem no Legislativo têm mais de receitas simplistas do que assentadas num diagnóstico adequado dos muitos males do nosso sistema tributário. Este exige medidas muito além da ideia de agregação de impostos enfatizada por essas receitas.

Muita coisa pode ser feita na área de privatizações, concessões e outras obras de infraestrutura, mas, evidentemente, é preciso acelerar o passo. Nesse sentido, medida que me pareceu interessante foi uma do ministro Dias Toffoli, presidente do Supremo Tribunal Federal, que reuniu ministros do Tribunal de Contas da União e representantes dos tribunais de contas estaduais, e foi criado um grupo de trabalho para destravar investimentos na esfera do setor público que estes tribunais frequentemente impedem ou atrasam com suas decisões. Vamos ver se funciona.

Nos últimos dois meses o governo federal acenou com os imensos recursos esperados do leilão de áreas do pré-sal outorgadas à Petrobrás, nas quais há muito mais petróleo do que o total que ela acertou com o governo. Ótimo, mas será preciso assegurar que todo esse dinheiro não leve, com seu alívio passageiro, à procrastinação de medidas de ajuste, como é praxe em Estados e municípios que levarão um bom pedaço do valor desses leilões.

Diante deste quadro, e com a precária situação das finanças públicas impedindo o uso eficaz da política fiscal para estimular a economia, em vários artigos neste espaço preguei o recurso à política monetária, que não sofre dessas limitações. Isso mediante liberação robusta dos depósitos compulsórios que os bancos mantêm no Banco Central, mas voltada para financiamentos habitacionais. E, da mesma forma, um afrouxo monetário na linha do quantitative easing, utilizado por outros países no enfrentamento de crises e que no mês passado voltou a ser praticado pelo Banco Central Europeu.

Minha pregação não tem sido ouvida, mas continuarei insistindo, como hoje ao falar no Congresso Brasileiro de Economia, mesmo diante deste marasmo que também não favorece a adoção de outras ideias pela política econômica do País.

Um garimpo com suas histórias de crimes. mortes, politicagem e ilusão

No noroeste do Mato Grosso, região da Amazônia que faz divisa com Rondônia, o município de Aripuanã, com cerca de 20.000 habitantes, a 1.000 quilômetros de Cuiabá, capital do estado, se tornou sinônimo de esperança para centenas de pessoas. Em outubro de 2018, de acordo com sites de notícias da região, um agricultor se deparou com uma rocha que parecia ter algo incomum. Depois de algumas horas, arquivos de áudio começaram a circular entre grupos virtuais: “O cara estava plantando arroz na beirada de um córrego e subindo lá achou uma pedra meio esquisita e foi mexer. Tinha um mais inteligente um pouquinho, foi com uma máquina lá e já meteu a escavadeira, começou no domingo”. A pedra era ouro.


Em menos de uma semana, 2.000 pessoas chegaram ao local indicado para verificar se a história era verdadeira. Com a força de uma multidão, garimpeiros experientes e amadores invadiram a área, dentro da Fazenda Dardanellos, a 11 quilômetros do centro de Aripuanã, e começaram a escavar na base da picareta. Ao ganhar o título de “Nova Serra Pelada”, assim como tantas outras promessas em referência ao maior garimpo a céu aberto do mundo, no Pará, máquinas começaram a chegar e a prática se consolidou. Vídeos do local, com homens, mulheres e crianças acampados debaixo de lonas, prometiam acesso garantido ao sonho dourado.

Em pouco tempo, a Polícia Federal começou a investigar a extração e o comércio ilegal de ouro no Mato Grosso. A Operação Trypes foi deflagrada em setembro, quando 60 policiais federais cumpriram 16 mandados de busca e apreensão, dois mandados de suspensão de atividade econômica, dois mandados de bloqueio de contas e seis mandados de prisão preventiva. A segunda etapa foi desencadeada no dia 7 de outubro com o objetivo de encerrar o garimpo ilegal de Aripuanã. De acordo com a PF, além do impacto ambiental, o município começou a sentir problemas sociais, como o aumento do índice de homicídios, de tráfico de drogas e de prostituição. No confronto entre garimpeiros e policiais, uma pessoa morreu.

A promessa de lucro rápido, dentro de um Brasil onde a diferença de renda entre pobres e ricos bateu recorde em 2018, se disseminou com a potência das fake news nos grupos virtuais. Conforme a multidão foi chegando, garimpeiros fizeram vídeos para mostrar a dura realidade da busca pelo minério. Em 2018, reportagens relataram que a maior vala tinha 12 metros de profundidade e corria o risco de desabar – em junho deste ano, um homem morreu soterrado após a terra ceder dentro de um buraco de 8 metros. Cada 40 ou 50 quilos de terra escavados rendiam algo perto de meio grama de ouro. Os garimpeiros tiravam pouco mais de 70 reais por saco. Uma tonelada de escavação poderia equivaler a 1.500 reais. Sem água disponível no local, tudo era transportado em caminhões e caminhonetes. Mercúrio para separar o ouro da rocha já estava começando a poluir os córregos da região.

Este é apenas um caso que ilustra as tensões ao redor de uma região de garimpo. Um mapa divulgado pela Rede Amazônica de Informação Socioambiental Georreferenciada (RAISG), em dezembro de 2018, mostrou como o garimpo ilegal se espalha na Amazônia boliviana, brasileira, colombiana, equatoriana, peruana e venezuelana. Além disso, foram identificados 2.312 pontos e 245 áreas de garimpo ou extração de minerais, como ouro, diamantes e coltan. Foram mapeados 30 rios afetados pela atividade ou por rotas para a entrada de máquinas, insumos e pela saída de minerais.

Um ano depois da abertura do garimpo em Aripuanã, os áudios que circulam nos grupos têm outro tom. Ao identificarem veículos de fiscalização do ICMBio e do Ibama, as mensagens reproduzem planos para ameaçar os fiscais do meio ambiente. Nas últimas semanas, garimpeiros participaram de reuniões com o governo federal para apresentarem demandas. Uma das principais reivindicações é o fim da queima de maquinários, prática utilizada quando a atividade acontece de forma ilegal. O governo vem se mostrando favorável a atender às reivindicações e afirmou que apresentará uma proposta para liberar a mineração dentro de terras indígenas. Sob a justificativa de que a atividade já acontece e que precisa ser regulamentada, não há um olhar para os problemas sociais e ambientais vinculados ao garimpo e à mineração.