Nos últimos dias, membros do sistema de justiça estrelaram três cenas bem brasileiras. Uma delas trouxe para a frente das câmeras nacionais uma procuradora de Goiás. Carla Fleury de Souza cometeu o crime do desabafo. Reclamou ao vídeo de seu parco salário de 37,5 mil reais. Insuficiente, declarou, para sustentar seu estilo de vida de princesa: "Meu dinheiro é só para fazer minhas vaidades, graças a Deus. Só para os meus brincos, minhas pulseiras, meus sapatos." Graças a Deus e ao marido, que, depreende-se da fala da esposa, arrecada bem mais.
A franqueza foi bisonha, coisa de quem ainda não se acostumou à vida filmada. Mas o franco exprime o que pensam os dissimulados. A procuradora delatou o sentimento de uma fração da elite social que, ilhada com seus iguais, nem mesmo imagina como vive a maioria dos habitantes de seu país. Na ilha da senhora Fleury, os proventos são muito, muito mais altos do que o da média dos brasileiros.
Outro distanciado da realidade, desta vez a jurídica, é um seu colega de beca de Santa Catarina. O desembargador Jorge Luiz de Borba é acusado de manter uma mulher com deficiência auditiva em condição análoga à escravidão por duas décadas.
A vítima, decerto, nunca teve tempo ou recursos para cultivar "vaidades" como a procuradora. Contou, contudo, com o que há de mais valioso, a afeição. Ao menos foi assim que o encarcerador se defendeu: "aquilo que se cogita, infundadamente, como sendo 'suspeita de trabalho análogo à escravidão', na verdade, expressa um ato de amor. Haja vista que a pessoa, tida como vítima, foi na verdade acolhida pela minha família". Ser "da família", na escravidão, como no serviço doméstico, é o mesmo que estar sob o jugo dela. A PF suspeita que a "tida como vítima" era vítima de fato e que o tratamento amoroso incluía maus tratos, jornadas de trabalho estafantes e restrição da liberdade.
Outro episódio a reverberar a escravidão foi aqui em São Paulo. A protagonista inicial foi a polícia. Sua maneira de deter um homem negro acusado de furtar duas caixas de bombons foi atar mão com mão e pé com pé. Com cordas. Depois, dois representantes da lei dividiram o peso, carregando o detido como se fosse um fardo, infensos aos seus gemidos de dor. A imagem é do escravismo redivivo. Debret pintou cena parecida.
O fato só veio a público porque uma testemunha o filmou, já que os policiais não usavam câmeras nos uniformes. Depois da desdita, Robson Rodrigo Francisco, o amarrado, passou por outra. Caiu na vara da juíza Gabriela Marques da Silva Bertoli, que não viu nada demais na forma da detenção. Nem tortura, nem maus-tratos, nem qualquer atentado aos direitos constitucionais, de modo que a prisão foi mantida.
Cada um desses casos recebeu atenção imediata, intensa e passageira. A indignação suscitada gerou desdobramentos diferentes. A vaidosa submergiu no anonimato de onde surgira, o desembargador declarou a intenção de adotar formalmente a pretensa filha e o amarrado está preso.
Desfechos desparelhados apenas de face. Daqui a pouco tudo volta aos seus lugares costumeiros na sociedade brasileira. Logo ninguém mais, salvo as almas como a do Padre Lancellotti que denunciou o caso, se lembrará de Robson. Pode bem ficar esquecida também a promessa de adoção do desembargador de olhos azuis. E apesar de seus parcos dividendos, a senhora Fleury retornará tranquila ao seu roteiro de compras.
Estamos perdendo o Brasil. E não é para os estrangeiros, como as teorias conspiratórias propalam. É para coisa pior: a criminalidade organizada, apátrida e cruel. Ela se apodera de grande parte da Amazônia Legal, por incúria do Estado brasileiro, que não leva a sério a regularização fundiária.
O que acontece com aquele patrimônio da Nação e que pertence a todos? A Procuradoria-Geral da República admite não saber quais são as terras da União. O mesmo ocorre em relação às unidades subnacionais, os Estadosmembros e os municípios, estes erigidos à condição de entidade federativa a partir da Constituição Cidadã.
Valendo-se da balbúrdia registraria, os inescrupulosos fazem uma autodeclaração de que possuem terras protegidas e preenchem o Cadastro Ambiental Rural (CAR). Confiar na declaração do interessado é um pouco ingênuo para um país que nasceu e que convive confortavelmente com a corrupção.
Boa intenção existe só no discurso. Implementou-se o georreferenciamento, que vincula a descrição do imóvel a um ponto de localização absoluta, imprimindo certeza na identificação da área. Só que se encarregou o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) de atestar a precisão e a não sobreposição dos polígonos certificados. Como é notório, Incra, Ibama, ICMBio e outras estruturas preordenadas a defender a natureza foram esvaziadas e defenestradas no último quatriênio. Com isso, a possibilidade de certificação é bastante reduzida.
Para ter uma ideia, até 15 de outubro de 2022 haviam sido georreferenciados quase 25 milhões de hectares. A dimensão do Brasil é de 851.034.554 hectares. Faltam ser georreferenciados apenas 830 milhões de hectares. A média diária do Incra é de 55.379,37 hectares. O cálculo mais otimista prognostica, nesse ritmo, mais 10.784 dias de trabalho, ou seja, mais de 29 anos pela frente!
Até lá, as sofisticadas organizações criminosas que garimpam, desmatam, assassinam indígenas e se apoderam da exuberante biodiversidade que poderia sustentar economicamente o Brasil neste e no próximo séculos continuarão a impor a sua vontade e o seu poderio.
Enquanto não houver a regularização fundiária, para poder identificar quem é o responsável pelo garimpo ilegal ou pelo desmatamento, esta “terra de ninguém” se mostrará suscetível a encontrar um proprietário: o crime organizado. A delinquência sem pátria, sem Deus e sem moral.
O Brasil consciente, um resíduo da massa que não consegue pensar senão em subsistir com a dignidade possível, deveria se articular e assumir esta cruzada heroica. Os fanáticos invocam a “soberania nacional”, porém não se importam com a invasão desenvolta da delinquência num território abandonado pelo Estado.
As instituições que têm consciência e voz deveriam coordenar um grande movimento, que congregasse as entidades de classe mais interessadas – as associações mantidas pelas várias categorias de delegação extrajudicial, os antigos cartórios, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), o Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB) –, a universidade, a academia, o empresariado, a mídia, a Igreja e todos os demais integrantes da sociedade civil, para que a “regularização fundiária” não servisse apenas para a retórica estéril de alguns políticos profissionais, mas que seja uma política pública estatal, da qual está a depender o futuro do Brasil.
A República da hermenêutica – aquela mesma que viu explodir a criação de faculdades de Direito em seu território (pasmem: o Brasil tem mais faculdades de Direito do que a soma de todas as outras existentes no restante do planeta!) – deveria conclamar as centenas de milhares de estudantes para uma atuação prática de sobrevivência da Nação. Em lugar dos superados e inúteis júris simulados, das Semanas Jurídicas das quais nada resta e nada se acrescenta à formação integral do profissional do Direito, colocar o alunado para atuar na regularização fundiária seria uma missão salvífica.
E isso não é absurdo, quando se examina a tríade sobre a qual se assenta a universidade brasileira: ensino, pesquisa e extensão. O que se faz em termos de extensão? Para devolver o Brasil aos brasileiros, seria muito mais importante fazer com que o futuro profissional da área jurídica encarasse a realidade fundiária, cujo caos põe em risco a utopia da possível segurança neste universo.
Seria interessante que os empenhados em discutir filigranas jurídicas, em encontrar brechas no ordenamento e hábeis em arremessar ao combalido Poder Judiciário milhões de novos processos atentassem para este quadro terrível. Como responderão às futuras gerações os brasileiros que assistiram passivamente a esta apropriação criminosa de vasta área de seu território? Território, exatamente um dos elementos caracterizadores do Estado soberano, tão louvado em prosa e verso pelos patriotas contemporâneos.