quarta-feira, 30 de junho de 2021

Pensamento do Dia

 


Um país de repetições?

Numa vida longa, recordações se misturam a fantasias, miragens e pesadelos. Acabam-se os projetos... Talvez nisso resida a irritante ambiguidade dos idosos, pois envelhecer é descobrir que abotoar uma camisa é mais complicado do que explicar uma época, um livro ou um regime político.

O pouco conscientizado preconceito cósmico contra os velhos tem raiz na consciência da fragilidade física, combinada a uma enorme e orgulhosa resignação diante do fim da vida – uma dimensão que inexoravelmente todos os idosos são forçados a vivenciar.

Como um filme meio terminado, a vida longa desbota pessoas e circunstâncias, mas permite enxergar, com nitidez de lupa, repetições, reprises, retornos – os ossos dos mortos. O verdadeiro caráter de culturas, sociedades e pessoas. Nela, se enxergam melhor o falso, a ignorância e a hipocrisia – esses companheiros do ser e estar humanos.

Como é que fui gostar daquele poeta afogado no seu sentimentalismo barato? Como é que eu fui simpático àquela ideologia política ultrarreducionista? Onde eu estava com a cabeça quando fui enganado e, pior que isso, enganei a mim mesmo escondendo minhas intenções, desejos e invejas? Como eu não saquei que a mentira não tem desculpa e que não se deve mentir para ninguém e, sobretudo, para “desconhecidos” – aqueles para os quais o mentir vira um enganar malandro?


A culpa é minha ou, como tantos outros, sou apenas mais uma vítima de um enredamento sociopolítico da pior qualidade?

Os velhos são condenados à repetição.

Eu vivi os cinquenta anos em cinco de JK, o suicídio de Vargas, a renúncia de Jânio, a resistência dos coronéis a Jango, o parlamentarismo de ocasião, o golpe e a ditadura militar e uma alvissareira abertura democrática. Achei que o governo petista (que, como dizia Lula, não podia errar) ia efetivamente mudar, como indubitavelmente fez o de FHC com o Plano Real (gerador da tal herança maldita...).

Meus enredos retornam, meus temores são antigos. Minha esperança de ver o mundo público brasileiro livre de formalismos legais obviamente contraditórios e cheios de múltiplas hipocrisias, hoje expostas digitalmente, é diariamente arrasada.

Será que é o meu isolamento niteroiense que me faz ver fantasmas na “política”? Esta pobre idealização nacional do poder exclusivamente como vantagem pessoal e força; como capacidade de desordenar, fingir e corromper? Será o “mandonismo”, traço que (como dizia a socióloga Maria Isaura Pereira de Queiroz, uma pensadora do Brasil onde não cabem mulheres) estaria hoje mais agudo do que nunca, confirmando a nossa repetitiva vocação aristocrática e monárquica que sempre volta?

Estou farto de ver os mesmos filmes. Liberais abrem portas para protoestalinistas, xerifes viram bandidos e pilantras viram heróis. No resfolego do poder à brasileira, todos inovam, repetindo velhos chavões.

Thomas Mann dizia que a repetição abole a história. Repetir é abolir a diferença entre o ser e o ter sido. As repetições estão impressas nas compulsões e dependências. Elas reiteram e revelam velhos e mesquinhos modos de ser, ter e estar.

No Brasil, a racionalidade burocrática transforma-se em papeladas ritualísticas. Max Weber falava da burocracia como uma jaula de ferro, na qual todos estavam enclausurados, mas no Brasil, ela é uma gaiola de ouro da qual escapam, por meio de malabarismos jurídicos, criminosos agasalhados pela “política”. A nossa resistência à universalidade e ao anonimato da lei é imoral.

A reação criminosa do governo à pandemia é um exemplo perverso do peso das nossas hierarquias. Nela, “superpessoas”, conforme digo no meu velho ensaio sobre o “você sabe com quem está falando?”, repetem os privilégios de família e compadrio. O mandonismo nega a vacina universal em favor da simpatia interesseira ou ocasional. Morre meio milhão por vezo da danação do supremo mandatário do País.

Ser fiel a valores democráticos é um sinal de inferioridade – de “babaquice” –, conforme ouço até hoje. O resultado do privilégio de estar “por cima das normas”; de correspondê-las às suas conveniências é a marca do autoritarismo nas sociedades de republicanismo formal. Repúblicas que se recusam a discutir honestamente o protagonismo dos resíduos de fidalguia e da escravidão em confronto com a imensa tarefa imposta pelo igualitarismo.

Não deve espantar que estes sistemas se caracterizem pela repetição! Pela intrusão de ‘aristocratismos’ nos seus ‘republicanismos’ e viceversa. O resultado é o populismo malandro e os absolutismos cujos governos têm uma linguagem para os seus seguidores (“Deus acima de tudo, a pátria acima de todos” e, é claro, “eu controlando tudo!”) e outra para o público externo. Aí está o centro do despotismo repetitivo de repúblicas mal-acabadas, conforme ensina Raymundo Faoro.

P.S.: Volto, se os planos não forem modificados, na primeira quarta-feira de agosto. Mais velho, mais grato, mais curtido e mais incerto.

O Brasil tá lascado

CPF cancelado. À parte a crueldade nela contida, a expressão é deboche impar. Coisa de cafajeste, linguagem de miliciano, despudoramente usada e repetida pelo presidente da república – assim mesmo com letras minúsculas. Maior função pública do país está apequenada desde que a faixa de PR foi vestida por um sujeito capaz de imitar, rindo, em público, a falta de ar dos acometidos de Covid.

Capaz de misturar, como piada, as mortes da pandemia com o fim de um assassino psicopata.

“Ele não morreu de covid, não?” Ironizou o PR sobre o bandido Lázaro Barbosa, cuja morte, antes, havia anunciado como “CPF cancelado”. Mixando um e outros, de novo, desprezou, desqualificou, desrespeitou mortes e mortos do covid.

O Brasil tá moralmente lascado.

Não merecemos nem uma palavra de lamento do PR em questão no dia em que o país registrou 500 mil mortos da pandemia. No sentir dele, apenas meio milhão de CPFs cancelados. Nenhum respeito pelos que se foram, pelos que ficaram órfãos, viúvos, pelos desolados.

Não importa se as duas palavrinhas foram usadas, ontem, para “celebrar” a morte de Lázaro, que feria, estuprava e matava sem dó e há 20 dias assombrava o entorno do DF, dando olé nas polícias que tentavam capturá-lo. Um Presidente não se manifesta com zombarias.

Nenhuma surpresa com a exibição do bandido morto, dito vivo, levado a hospital. Qualquer brasileiro conhece o modus operandi das polícias brasileiras São violentas. Com raras exceções. Se podem matar com um ou dois tiros, usam 100. Matar é mais fácil que prender. Reagindo ou não, Lazaro seria CPF cancelado com muitos tiros – 125 disparados, 38 “pegaram”, dizem as mídias.

Minha fraqueza desumana não lamenta a morte de Lázaro. Não consigo me condoer com destino de estupradores. Que as forças divinas me perdoem.

Mas a comemoração da morte provocou mal estar. Chocante. Mesmo em tempos de choques diários e assimilados como se nada demais fossem.

Lamento muito nosso destino de ter de passar pelos Bolsonaros no comando do país. Com toda a violência e maldade que estimulam, as cafajestices que praticam. A ameaça que representam.

Não foi com meu voto. Nem com o de outros milhares de brasileiros.

Infelizmente, votando ou não, somos todos vitimas da tragédia da eleição que, pretendendo, supondo ou querendo livrar-se dos políticos, pinçou entre eles o mais desqualificado possível. E trouxe à tona esse Brasil horroroso.

Retrocedemos. Em dois anos e meio, parece, voltamos 500 anos.

Corrupção serial killer


Corrupção que implique desvio de recursos públicos mata. Corrupção que implique desvio de recursos públicos da área da saúde mata muito mais
Ricardo Noblat

Bolsonaro é um agente letal que agrava a pandemia

Mais de meio milhão de pessoas morreram em decorrência da covid-19. O vírus está aí, fazendo o papel dele que é infectar. Enquanto isso a pessoa que foi eleita, não por mim, mas pela maioria dos votos válidos, nada faz para cessar esta catástrofe. Aliás, ele com sua agenda e postura negacionistas ajuda, e muito, na disseminação do vírus. Nesse contexto o presidente da República, Jair Bolsonaro, se torna um agente letal. Presidente? Ao pronunciar esta palavra me vem um sentimento de indignação e de revoltas profundos. Como alguém tão desqualificado para a função e tão desprovido de valores ligados à humanidade, pode chegar lá?


Bolsonaro tem uma relação íntima com a morte. Enquanto foi deputado federal nada propôs em prol da vida, da saúde pública e do bem estar da população. Ficou famoso – sim, grosseria pode trazer fama – pelo que não fez de útil, e pelo que fez de absurdo. Ele é lembrado pelas frases infames, pela canalhice com a deputada federal Maria do Rosário, pela apologia à tortura ao exaltar a figura de Brilhante Ustra, quando da votação do impeachment da Dilma Rousseff.

Bolsonaro fala e age como se fosse um zeloso pai dos policiais, e olhem que tem muito policial idiota que acredita nisso. Mas, ele também não está nem aí para estes profissionais. Quer mais que eles se danem, usa os corpos e as mentes dos incautos, como escadas na sua caminhada populista. Instiga os policiais para matarem, serem violentos e arbitrários. Não é por acaso que ele despreza o avanço das mortes por covid-19 e é o primeiro a tuitar “CPF Cancelado” nesta segunda, enaltecendo o extermínio do criminoso Lázaro Barbosa. Tudo isso como se fosse sinônimo de autoridade.

Bolsonaro abraça a morte ao apregoar que policiais saiam matando e sejam considerados heróis por isso. Quanto aos policiais que adoecem psiquicamente e aqueles que chegam ao suicídio? Quanto aos familiares dos policiais que sofrem? Bom, para Bolsonaro, são problemas deles. Coisa de maricas. Danem-se. E daí?

Bolsonaro tem um torturador como herói e exemplo de conduta. Ele fez inúmeras menções nesse sentido ao Major Ustra, ser das trevas. Exemplo do que é mais anti-humano e degradante. Bolsonaro se identifica com esse tipo de pessoa. Há uma afinidade de valores – torturar, degradar, humilhar, destruir. São verbos que ele conjuga, assim como Ustra, com maestria. A morte simbólica daqueles que foram e são submetidos a condição desumana, daqueles que foram e são reduzidos à condição de nada, de objeto descartável e a morte, proveniente da eliminação física, abraça Bolsonaro para chamar de parça, de amigo de fé e meu irmão camarada.

Para quem acredita que a morte é o fim de tudo, que ela representa a falência do organismo, Bolsonaro também demonstra que “está em relacionamento sério com a morte”, apaixonado, cego, ligadão. Esse senhor tem prazer na destruição. Vejam o que fez e faz com o meio ambiente, com as agências regulatórias e com as instituições de Estado. Basta ver o que ele fez com o Exército brasileiro, o que fez e está fazendo com as universidades públicas, o que fez com o Ministério Público Federal, com o COAF, com a Polícia Federal e com a Câmara dos Deputados. Todos assassinados, para servir ao seu propósito destrutivo, ele tem atração pela morte e pela destruição. “Morte, I love you!”, diz Bolsonaro, sonha Bolsonaro. Certa feita, ele disse para o Trump: “I love you!”. Realmente, Bolsonaro tem atração por todos aqueles que, de alguma forma, simbolizam a destruição e o absurdo.

Algo precisa ser feito para cessar essa aberração. Não dá mais para suportar, nem por um segundo, Bolsonaro na presidência, presidindo um enorme cortejo fúnebre de pessoas e do Brasil, como nação. Esse ser precisa ser sacado do poder. Urgente!

Há meios. Para tanto, o Procurador Geral da República e o presidente da Câmara dos Deputados devem assumir as suas responsabilidades para com a nação. Tanto Augusto Aras, como Arthur Lira são cúmplices nesse morticínio. Tudo para receber verbas, emendas e posição política? Basta, senhores. Nada vale mais do que vidas humanas. Partidos políticos, os mais variados, devem igualmente assumir suas responsabilidades para com a nação. O Congresso Nacional se tornou uma extensão do matadouro instalado na presidência da República. Verbas, emendas e cargos políticos valem mais? Não, senhores.

Senhores procuradores da República, se manifestem contra o seu chefe. Proponham ações e iniciativas para retirá-lo do poder. As associações de classe devem se manifestar publicamente pela saída do sr. Aras. Ele não é dono do Ministério Público. Ele não é procurador ou defensor mor de Bolsonaro. Ele tem que agir a favor da República. E isso, definitivamente, ele não faz.

Não quero que alguém execute Bolsonaro, não estou tramando e nem propondo que ele seja assassinado. Portanto, André Mendonça, Augusto Aras, Ministro da Justiça e demais autoridades afins, não percam seu tempo comigo. Façam isso cumprindo suas missões constitucionais, há mais gente que, de fato, merece ser alvo da atenção de vossas senhorias. Dou uma sugestão: comecem pelo presidente da República. Não sejam omissos, não sejam mesquinhos, não sejam desumanos. Honrem as funções que exercem.
Adilson Paes de Souza, tenente coronel aposentado da Polícia Militar de São Paulo, doutor em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano, e mestre em Direitos Humanos

terça-feira, 29 de junho de 2021

Funerária Brasil

 


Brasil é citado na ONU por risco de genocídio de indígenas

O Brasil foi citado nesta segunda-feira pela primeira vez no Conselho de Direitos Humanos da ONU como um caso de risco de genocídio, devido aos crescentes crimes contra as populações indígenas.

A menção foi feita por Alice Wairimu Nderitu, conselheira especial para prevenção de genocídio, em relatório apresentado em sessão regular do conselho.

"Na região das Américas, estou particularmente preocupada com a situação dos povos indígenas. No Brasil, Equador e outros países, peço aos governos que protejam as comunidades em risco e garantam a responsabilização pelos crimes cometidos", disse Nderitu.

Em seu último relatório, do final de 2020, o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) mostrou que os casos de violência contra indígenas no Brasil praticamente dobraram no primiero ano do governo Jair Bolsonaro.

Em meio a uma série de retrocessos nos últimos anos, preocupa os observadores atualmente o polêmico Projeto de Lei (PL) 490/2007, que muda as regras sobre a demarcação de terras indígenas e dificulta o processo.

Segundo o Estatuto de Roma, o regimento que descreve os crimes que podem ser julgados pelo Tribunal Penal Internacional (TPI), o crime de genocídio configura "atos perpetrados com a intenção de destruir total ou parcialmente um grupo nacional, étnico, racial ou religioso".

Isso pode se dar através da morte de membros do grupo; lesão grave à integridade física ou mental dos membros do grupo; infligir intencionalmente ao grupo condições de vida calculadas para provocar sua destruição física no todo ou em parte; medidas destinadas a evitar nascimentos dentro do grupo; transferência forçada de crianças do grupo para outro grupo.

Em novembro de 2019, antes da pandemia, o presidente Jair Bolsonaro se tornou alvo de denúncia no TPI acusado de incitação ao genocídio de povos indígenas e crimes contra a humanidade, ao minar a fiscalização de crimes ambientais na Amazônia.

A denúncia foi apresentada pelo Coletivo de Advocacia em Direitos Humanos e pela Comissão de Defesa dos Direitos Humanos Dom Paulo Evaristo Arns – a Comissão Arns, uma entidade civil que reúne juristas e acadêmicos com a finalidade de denunciar violações aos direitos humanos.

Em entrevista à DW no ano passado, Sylvia Steiner, a única juíza brasileira a já ter atuado no TPI, a denúncia apresentada à Corte em Haia pode levar o presidente a um julgamento e a uma condenação internacional por genocídio. 

A menção ao Brasil no Conselho de Direitos Humanos da ONU foi interpretada por observadores como um primeiro alerta para o governo Bolsonaro de que o órgão está ciente das atrocidades cometidas contra indígenas e pode dar fôlego à denúncia apresentada em Haia.
 

Clamor da ralé

Enquanto o povo, em todas as grandes revoluções, luta por um sistema realmente representativo, a ralé brada sempre pelo "homem forte", pelo "grande líder". Porque a ralé odeia a sociedade da qual é excluída, e odeia o Parlamento onde não é representada 
Joel Silveira, "Guerrilha noturna"

Barros e a morte como negócio

Era um segredo de Polichinelo a identidade do parlamentar mencionado na conversa entre Bolsonaro e o deputado federal Luís Miranda (DEM-DF) sobre “rolos” na compra da vacina Covaxin. O anonimato se mantinha havia horas na CPI quando o senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE) furou o tumor: “Está lhe faltando coragem para falar o nome do deputado federal Ricardo Barros”.

A pressão, com técnica de interrogatório, funcionou. Na inquirição seguinte, Miranda, já desestabilizado emocionalmente, capitulou diante da senadora Simone Tebet (MDB-MS). Esta é a revelação mais explosiva obtida pela CPI até agora. Indica uma quadrilha incrustada no Ministério da Saúde e aponta indícios de crimes cometidos por Bolsonaro e Ricardo Barros (PP-PR), líder do governo na Câmara e expoente do centrão.


Não é surpresa que Barros apareça no "vacinagate". Trago à memória caso revelado em 2017, quando ele era ministro da Saúde do governo Michel Temer. Naquele ano, fiz uma série de reportagens para o Fantástico, mostrando que o ministério comprou um remédio produzido na China, sem comprovação de eficácia, para tratar um tipo de câncer muito agressivo que ataca principalmente crianças.

A alegação do ministério era o preço mais barato do medicamento chinês. O contrato estava repleto de irregularidades. Foi feito por meio de triangulação com uma empresa que tinha escritórios de fachada no Uruguai e no Brasil. Soa familiar? Barros defendeu o contrato e tentou desqualificar as reportagens.

Na época, 4.000 crianças estavam em tratamento. Médicos se mobilizaram para manter a importação de outro remédio, usado até então no Brasil e validado por estudos internacionais. A Justiça chegou a proibir o uso do produto chinês, mas o ministério manteve sua distribuição. Botar em risco a vida de crianças deveria ser crime hediondo. Não surpreende que o mesmo personagem apareça agora no morticínio comandado por Bolsonaro.

Os 20 mil Fiats Elba de Barros & Bolsonaro

Desde a última terça-feira 22 de junho, os despertadores do Palácio da Alvorada e do condomínio Vivendas da Barra foram desligados e o estoque de ansiolíticos nas farmácias das proximidades dos esconderijos da famiglia Bolsonaro, reforçado. Em reportagem que deu manchete de primeira página (Governo comprou vacina indiana por preço 1.000% mais cara), Júlia Affonso relatou: “Telegrama sigiloso da embaixada brasileira em Nova Délhi de agosto do ano passado, ao qual o Estadão teve acesso, informava que o imunizante produzido pela Bharat Biotech tinha o preço estimado em 100 rúpias (US$ 1,34 a dose). Em dezembro, outro comunicado diplomático dizia que o produto fabricado na Índia ‘custaria menos do que uma garrafa de água’. Em fevereiro deste ano, o Ministério da Saúde pagou US$ 15 por unidade (R$ 80,70, na cotação da época) – a mais cara das seis vacinas compradas até agora”.

Tudo leva a denúncia espetacular de uma compra escatológica e estapafúrdia. O sobrepreço da vacina indiana, que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) teve enorme dificuldade em aprovar, e com restrições, apesar das pressões sofridas pelo servidor encarregado de importações de insumos e vacinas no Ministério da Saúde, é o fio da meada de um escândalo gravíssimo. O governo Bolsonaro, que tinha levado quase um ano para comprar imunizantes testados no mundo inteiro e oferecidos pela Pfizer, comprou a Covaxin em um quarto desse tempo, graças à interferência pessoal do presidente da República, Jair Bolsonaro, em telefonema ao primeiro-ministro da Índia, Narenda Modri. Para isso empenhou R$ 1,6 bilhão, o equivalente aproximado ao custo de 20 mil Fiats Elba, cuja compra serviu de prova para fundamentar o impeachment de Fernando Collor, em 1992.


A cada dia, sua agonia, diria dona Benta. Desde então até hoje já se sabe que, ao contrário do que dizia Bolsonaro — aliado de Collor, quem diria ­–, não ficamos esperando o vendedor de mezinhas oferecer o produto. Ao contrário das compras feitas de Coronavac, AstraZeneca e Pfizer, houve um atravessador, a Precisa Medicamentos, de propriedade do queridinho da vez, Francisco Maximiano. O pagamento da partida seria pago à Madison, com sede em Singapura e não foi porque a compra não foi entregue.

Desdobramentos diários do furo do Estadão levaram à Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid, no Senado, um bolsonarista de quatro costados, não como suspeito, mas como delator. O deputado Luís Cláudio Miranda procurou a cúpula dela para informar que acompanhou o irmão, o servidor do Ministério da Saúde Luís Ricardo Miranda, em visita ao chefe do governo no Palácio da Alvorada para denunciar a falcatrua. No depoimento duplo, ele detalhou, pressionado pelos senadores Alessandro Vieira e Simone Tebet, um claríssimo flagrante de prevaricação.

O próprio parlamentar da base governista deu detalhes em entrevista, publicada domingo na Folha de S.Paulo: “Com 10 minutos de conversa ele (Bolsonaro) já soltou. Quando a gente começa a mostrar os papéis acontece essa conversa, ele dá uma desabafada, fala dos combustíveis, que era aquilo que estava irritando. Ele falou assim: ‘Vocês têm informações se o Ricardo Barros estava influenciando ou fazendo?’. Eu digo: ‘Presidente, a gente não sabe o nome de ninguém, trouxemos informações técnicas’. Aí ele disse: ‘Esse pessoal, meu irmão, tá foda. Não consigo resolver esse negócio. Mais uma desse cara, não aguento mais’”.“Ou o presidente da República desmente cabalmente ter citado o líder de seu governo aos irmãos Miranda ou o presidente passa a ser, pelo silêncio, o maior acusador do deputado Ricardo Barros”, resumiu o relator da CPI, senador Renan Calheiros, no Twitter.

“Fica evidente que não há dados concretos ou mesmo acusações objetivas, inclusive pelas entrevistas dadas no fim de semana pelos próprios irmãos Miranda”, disse Barros, que, exemplo de seus aliados do governo, nada esclareceu, até porque não se submeteu a uma entrevista coletiva, com perguntas de repórteres. A temporada do terrorista fardado dos anos 80 não é favorável. Os norte-americanos interceptaram uma carga de madeira contrabandeada do Brasil com evidências de participação do então ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles. Este foi exonerado, derrubando, na queda, o diretor da Polícia Federal (PF), Alexandre Saraiva, e outro delegado federal, Franco Perazzoni, que chefiou busca e apreensão ordenada pelo ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes, relator do inquérito contra o até então o mais querido do chefão.

Bolsonaro mandou o secretário-geral da Presidência, Onyx Lorenzoni, e o ex-secretário-geral do Ministério da Saúde coronel Elcio Franco ameaçarem o servidor que levou a informação com inquéritos da Advocacia-Geral da União, da Coordenadoria-Geral da União e da própria PF. Ou seja, em vez de investigar o delito gravíssimo, como dizem os irmãos que ele faria, no encontro, inventou a delação punida. Aparentemente, lançou mão de éditos de um Estado policialesco. Na prática, contudo, adotou método das milícias, que matam ou infernizam quem se dispõe a narrar os podres dos chefões das quadrilhas.

O líder do governo no Senado, Fernando Bezerra Coelho, passou o recibo da aposta na ingenuidade do pagador de impostos ao alinhavar argumentos vazios para tentar defender o indefensável. Em discurso na sessão histórica da CPI na sexta-feira 25, equiparou o atravessador ao Instituto Butantan, fabricante da Coronavac, e à Fiocruz, parceira da AstraZeneca.

Papelão maior fez Flávio Bolsonaro ao confessar que levou Francisco Maximiano ao presidente do BNDES, Gustavo Montezano, para vender uma “boa ideia” do apadrinhado. “Não era vacina”, disse ele. Mas não teve imaginação sequer para dizer qual teria sido e defendê-la perante os senadores e os cidadãos em geral.

Me chama de jacaré, que eu gosto!

Eu sabia que iria me transformar num jacaré e estava feliz por essa oportunidade única. Não via a hora de fazer a mutação. Sairia do posto de vacinação direto para o pantanal da vida cotidiana, com muito prazer. Mas, inesperadamente, caí no choro.

Sou um caboclo chorador. Minha mãe, além de um irmão e uma irmã, são a mesma coisa. A nossa emoção se expressa nos olhos. Quando a moça me avisou que eu iria receber uma dose de AstraZeneca, e perguntou qual o braço que eu gostaria de receber a primeira dose, comecei a chorar.

Pelo que dizem, crocodilos é que choram. Se fosse assim, já estaríamos falando de outra espécie, de outro réptil. Chorei feito um jacaré mesmo, coisa família. E não lembro da última vez que senti tanta emoção.

Há uma música que diz: “Chorei, não procurei esconder, todos riram”. Riram mesmo, chamei a atenção. No posto, houve quem imaginasse que eu estava chorando por medo da agulha. Que nada, eu tenho medo é do vírus da covid-19, de político escroto e da covardia da máfia miliciana.


Não acho que foi mico, nem dei vexame. Foi de emoção o meu choro, as lágrimas caíam de quatro em quatro. Eu tinha planejado fazer umas coisas, fotos com plaquinha e tudo, para postar nas redes sociais. Não fiz nada, só chorei. Não gritei viva o SUS! Não disse vacina para todos!

O curioso é que a agente de saúde também se emocionou. Ela ficou sensível porque eu explicava que estava chorando porque lembrei dos amigos que partiram. Três homens e uma mulher, que tive a graça de conhecer nesta dimensão. A vacina não chegou a tempo.

Poderiam estar vivos, comemorando conosco, mas agora fazem parte das estatísticas. Pessoas com quem partilhei minha vida e, com a morte delas, morri um pouco também. Beto, Lúcia, Carlinhos e Tarcísio. Como dói.

Ao final, saí do posto muito grato pela oportunidade que me foi dada de continuar vivo. Tive covid-19 no ano passado, fiquei com sequelas, superei. Hoje, sou um jacarezinho fofo, com bocarra, e dentes afiados.

Agradeço a Deus, à ciência, cientistas, pesquisadores, médicos, pessoas que estão aplicando as vacinas. Ser imunizado contra um mal que nos mata é só uma das razões da minha felicidade. A principal, na verdade.

Para além de vencer a pandemia, ser vacinado é também uma atitude política e afirmativa contra um governo negacionista, que fere indefesos, que tira onda com a nossa dor; e gosta de nos ver na pior. Que enterrou milhares de brasileiros, nossos afetos.

A marca da vacina, no braço, é o sinal de nossa resistência. Se tivermos alguma reação ao imunizante, será o símbolo da nossa aflição. Não vamos nos esquecer dos dias que choramos sem socorro e sem esperança.

Se hoje somos aqueles que ainda podem sorrir, com plaquinhas, nas redes sociais, também somos os sequelados. Temos muito respeito pela dor que acusou nossos limites. Ser vacinado é o status de quem, agora, faz parte de um clube que assiste à vitória da ciência sobre a cretinice.

Quem se vacina recebe no braço uma dose de misericórdia. Saímos dos postos com a sensação de renascimento e a convicção de que não é por acaso que continuamos. É como se, eureca, entendêssemos nossa missão.

Gratidão exige resposta afetiva, com alegria. Chorei e vou chorar de novo, na segundona, em setembro. É como na música Sol de Primavera, de Beto Guedes, que mal sei a letra: “Já sonhamos juntos. Muitos se perderam no caminho… Agora, quero ver crescer nossa voz no que falta sonhar”.

segunda-feira, 28 de junho de 2021

Contra perguntas incômodas, o silêncio ou desaforos

Se nada disse até hoje sobre os 89 mil reais depositados por Fabrício Queiroz na conta da sua mulher, Michelle; se nada disse sobre o fato do seu advogado Frederick Wassef ter escondido Queiroz da justiça; por que Bolsonaro confirmará se citou o nome do deputado Ricardo Barros (PP-PR), líder do governo na Câmara?

Nem que o caminho dele cruze com o de uma jornalista ciente do seu dever de fazer perguntas incômodas, Bolsonaro admitirá que citou o nome de Barros em conversa com os irmãos Miranda sobre a compra superfaturada da vacina indiana Covaxin. Ou negará. E, convenhamos, por razões compreensíveis.


Se admitisse que citou, confessaria que cometeu o crime de prevaricação, porque obrigado a mandar investigar Barros, não mandou. Se negasse, se arriscaria a ser acusado de mentir ao país caso a conversa com os Miranda tenha sido de fato gravada, algo que Miranda, o deputado bolsonarista, insinua que foi.

Dizia-se à época em que Dilma Rousseff presidia o país, que ela não se sentia à vontade para circular livremente com medo de ouvir desaforos ou de ser vaiada por grupos organizados que se lhe opunham. Bolsonaro já não pode mais dar-se a esse luxo, a não ser em ambientes sob o estrito controle dos seus devotos.

Dilma ainda respondia, vez por outra, a perguntas incômodas de jornalistas. Bolsonaro, cada vez menos. E quando o faz é sempre para detratar os autores de perguntas que ele não gostaria de responder, ou que não pode responder para não correr o risco de se complicar com a justiça. Que final de governo!

Pensamento do Dia

 


Reagir ao presidente cruel

Ainda que Jair Bolsonaro prove diariamente que sua maldade não tem limites, vê-lo arrancar a máscara de uma criança e constranger outra para retirar a proteção choca. Enrola o estômago. Confirma não haver no presidente qualquer traço de humanidade. Ele desdenha da vida, até mesmo de uma criança, para passar a ideia de bravura e valentia, relegando a máscara ao campo dos covardes. Mas a CPI, a Justiça e as ruas começam a assombrá-lo.


Bolsonaro herdou a demonização da máscara do ídolo Donald Trump, que usou o repúdio à proteção para forjar a imagem de forte e destemido na disputa contra o “velho e frágil” Joe Biden. Trumpistas eram machos, sadios, imbatíveis e, portanto, não precisavam se defender do vírus em um país que, à época, acumulava mortos aos milhares.

Os bolsonaristas também se enxergam assim, a começar pelo presidente “imbrochável, imorrível e incomível”. Como Trump, Bolsonaro desde o início alardeou a falácia de que o vírus não pega em machos. Contra a campanha de isolamento social, defendida em todo o planeta, reagiu dizendo que o Brasil tinha de deixar de ser “um país de maricas”. Avançou mais casas: virou garoto propaganda de hidroxicloroquina/cloroquina que até Trump abandonou, despachando para o Brasil uma generosa oferta de 2 milhões de comprimidos depois de a FDA (a Anvisa dos Estados Unidos) suspender o uso emergencial do medicamento para tratamento da Covid.

Mas nem Trump foi tão negacionista a ponto de desprezar as vacinas e apostar na imunidade de rebanho, como fez Bolsonaro. Mesmo com parte de seus eleitores absolutamente céticos quanto a imunizantes para qualquer doença, Trump comprou milhares de doses antecipadamente, ainda no período de testes, e financiou pesquisas.

Biden derrotou Trump e, com vacinas e máscaras, está derrotando o vírus. O país presidido pelo discípulo de Trump continua empilhando mortos como se disputasse uma fúnebre corrida para se tornar recordista. Atualmente, a média diária de mortes dos Estados Unidos – que tem 100 milhões de habitantes a mais do que o Brasil – gira em torno de 370, enquanto por aqui comemoramos quando os números ficam abaixo de 2 mil.

Contra a cruzada cruel de Bolsonaro e sem impeachment à vista – descartado sumariamente pelo presidente da Câmara, o aliado Arthur Lira (Progressistas-AL), que detém o poder constitucional de instauração do processo -, o país começa a reagir nas ruas e nos tribunais.

As manifestações em todas as capitais, no Distrito Federal e em dezenas de cidades médias e pequenas do país nos dias 29 de maio e 19 de junho foram demonstrações crescentes e poderosas contra o presidente, que tendem a ser ainda mais fortes em 24 de julho. E não adiantará taxá-las como atos exclusivos da esquerda, ou do PT de Lula. Nelas, a marca é o anti-bolsonarismo, repulsa explícita que arregimenta multidões.

Adicionalmente, partidos e organizações civis começaram a reagir para além das notas de solidariedade e repúdio, sempre bem-vindas, mas insuficientes para fazer frente às afrontas diárias do presidente, boa parte delas passível de ser punida pelos códigos civil e penal.

Além dos ex-ministros Eduardo Pazuello e Ricardo Salles, ambos enrolados em processos penais, e das investigações da CPI da Pandemia, cada vez mais próxima de comprovar crimes do presidente – incluindo corrupção -, há dezenas de representações pipocando nas regionais do Ministério Público e no STF.

Na sexta-feira, o PSOL apresentou uma notícia-crime ao STF pedindo a responsabilização de Bolsonaro pelos crimes de infração sanitária e afronta ao Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) por ter submetido crianças a constrangimentos e riscos à saúde. Dois dias antes, a juíza Ana Lúcia Petri Betto, da 6ª Vara Cível Federal de São Paulo, condenou o governo Bolsonaro a pagar uma multa de R$ 5 milhões por danos morais cometidos contra as mulheres em declarações misóginas do presidente e de sua equipe. Impôs ainda a obrigação de a União investir R$ 10 milhões em campanhas pró-direitos das mulheres.

Somadas à CPI e às ruas, as ações na Justiça, ainda que sujeitas a recursos, expõem, sem filtro, o caráter ignóbil e desumano de Bolsonaro. Deveriam se multiplicar, sem dar um único dia de trégua a um presidente que não honra o cargo que ocupa e se coloca acima da lei.

“Uma máscara não é uma declaração política”, disse Biden em sua pregação didática para salvar os Estados Unidos da pandemia. Ele está certíssimo. Mas no Brasil de Bolsonaro só dá para confiar em mascarados. Melhor ainda se a máscara estampar #foraBolsonaro.

Se terminar...


Quando tudo isso terminar, respiraremos aliviados, se conseguirmos respirar.
Raul Drewnick

Por uma democracia vacinada

Na Câmara dos Deputados havia um homem chamado Inocêncio de Oliveira. Sempre foi muito gentil comigo. Morreu há algum tempo; Deus o tenha.

Mas era um nome singular e nos inspirou uma antítese para definir pessoas muito suspeitas: Culpâncio de Oliveira.

Lembrei-me disso quando vi Onyx Lorenzoni defender o governo, ameaçando testemunhas, dizendo que é diferente de tudo o que aconteceu nos últimos 40 anos e representa o bem contra o mal.

Há alguma coisa errada nessa compra da Covaxin, do preço às condições do contrato e, sobretudo, a maneira como o governo reage às suspeitas de corrupção.


Considero o negacionismo, que contribui para milhares de mortes, algo muito mais grave que a corrupção. Admito, no entanto, que desvio de dinheiro é mais facilmente reconhecível.

Com bons advogados, uma lei branda e juízes garantistas, não é fácil punir governantes por corrupção. Mas o impacto político é inevitável e, no caso de Bolsonaro, pode significar a gota que faltava para que a proposta da extrema-direita seja reduzida às suas reais dimensões.

É uma tarefa do cotidiano levantar as estranhezas dessa compra de vacinas. O governo diz que a nota fiscal que cobra US$ 45 milhões é falsa. A empresa afirma que não é falsa, houve apenas um engano.

Quem se engana numa nota de US$ 45 milhões pode se enganar nos mandando vacinas contra a febre amarela destinadas ao Equador.

Mas é preciso olhar um pouco mais longe. À medida que o governo decai, a sociedade precisa ocupar um espaço maior, discutir os caminhos.

Perdido num labirinto de desculpas esfarrapadas na pandemia, o governo seguirá destruindo a Amazônia, dizimando as populações indígenas.

As manifestações de rua podem crescer e representar uma ampla frente nacional, pois só uma força dessa dimensão consegue abalar de vez o edifício obscurantista.

O pós-Bolsonaro não será apenas isso, pois coincidirá também com o fim da pandemia. Sairemos de uma terra arrasada, e essas situações, às vezes, como no fim da Segunda Guerra, contribuem para o surgimento de novas ideias.

O combate às desigualdades sociais renasce com grande força. Mas outros temas nos esperam e não podem ser resolvidos apenas com a experiência. A sustentabilidade é um deles, uma vez que a crise ambiental se aprofunda e projeta uma posição de destaque para o Brasil.

A digitalização também estará muito acentuada, abrindo caminhos e cavando novas crises. O centro das grandes cidades, de um modo geral ocupado por escritórios, terá de ser reinventado, pois o home office poderá torná-lo um grande deserto.

Na verdade, há toda uma agenda complexa nos esperando, mas é importante que seja pelo menos esboçada. A existência de uma ampla frente não só nos ensina a superar o governo da extrema-direita. Ela é também essencial quando se pensa em governar o Brasil com um mínimo da estabilidade que nos faltou em muitos momentos da redemocratização.

Por que falar de futuro num presente tão nebuloso? É sempre bom ter algo em mente, sobretudo porque a superação do bolsonarismo não significa que tenhamos resolvido os problemas que lhe deram a oportunidade de ascender.

Desde 2013, o Brasil manifesta uma profunda desconfiança no desempenho de seu governo. Além disso, o processo econômico tem deixado muita gente para trás. Voltada apenas para eleições, a elite política não ouve com atenção pessoas comuns no seu cotidiano.

Se não pensarmos em reconstruir essa estrada, estaremos apenas superando Bolsonaro, deixando aberta uma senda para novas ofensivas autoritárias no Brasil.

É uma das lições de casa, após esses anos de obscurantismo. Muito se diz sobre como morrem as democracias, a partir da decadência das instituições. Mas todos sabemos que, sobretudo, morrem quando o povo se coloca contra elas.

Democracias na gangorra

As democracias padecem nas crises. Uns e outros, portando a bandeira do bem da coletividade, fazem pontuações autoritárias, sinalizam “convulsão social’, como se as massas estivessem rogando aos protagonistas com mando sobre o poder militar uma intervenção (um ponto fora da curva) na direção do Estado para justificar “golpe” em pleno século XXI.

Mas isso não ocorre apenas nas democracias incipientes, como a brasileira. A democracia francesa é uma das mais fortes do planeta, farol da liberdade contemporânea. Pois bem, em abril, mil membros das Forças Armadas da ativa e vinte generais da reserva assinaram uma carta aberta onde afirmavam que a França estava a caminho de uma “guerra civil”, culpando “fanáticos” pela divisão social, entre eles os islamitas, que estariam tomando conta de regiões inteiras. O país estaria em perigo.

Quem diria que isso poderia ocorrer ali? Bravata? Maneira de alertar o presidente Macron para a imigração descontrolada? Por aqui, é usual a resposta da esfera política para amenizar as crises: as instituições funcionam. Não é bem assim.


Nunca o Judiciário, representado pelo STF, foi tão questionado e bombardeado. Cenário: ministros objetos de ferrenha crítica, alguns considerados “suspeitos” por terem sido nomeados por fulano e sicrano, decisões que seriam de competência do Poder Legislativo, outras inseridas como recompensa a determinadas figuras.

Os legisladores, por sua vez, apesar do compromisso social, acabam decidindo, por maioria, aprovar pautas do Poder Executivo, ancorados no toma lá, dá cá, em manobras para viabilizar a governabilidade, como orçamentos “secretos” e quetais. Mesmo assim, há tensão entre os políticos e o Palácio do Planalto.

As reformas ganham camadas de bolor e descrédito. A política entrou no índex das coisas imexíveis e só avança naquilo defendido pelo presidente da República, como o voto impresso. Um demérito à urna eletrônica, até então o nosso cartão de modernidade. Um retrocesso está para ser aprovado.

Quando teremos apenas nove, oito ou sete agremiações? Partido virou negócio. Em função de seu descrédito, todos se juntam nesse pântano, o que motiva a permanência de 35 siglas, podendo chegar a 70. Os fundos partidários semeiam os recursos, como é o caso do desconhecido PSL, hoje entre os mais ricos. E onde estão os escopos ideológicos ou doutrinários? No baú.

Tendo como pano de fundo esse queijo suíço, o mandatário-mor bola artifícios para sustentar seu tempo na cadeira presidencial. Ganhará as eleições de 2022, garante ele, e derrotará a quem se refere como o “nove dedos”. Por isso, prega o voto impresso, que na década de 30 era a arma secreta dos “coronéis”. (P.S. “Seu coroné, posso abrir o envelope para saber em que tô votando? Tá doido, cabra, ocê não sabe que o voto é secreto?”)

Pergunta de fecho: seria viável um golpe no Brasil? Gasset escreveu que o homem é ele e suas circunstâncias. Eis algumas: apoio social, economia saudável, pandemia controlada, contexto internacional e imagem do Brasil, felicidade nacional líquida e ameaça de divisão extremada na sociedade.

Por que Bolsonaro lavou as mãos para o rolo de milhões de dólares justamente na Saúde?

O presidente Jair Bolsonaro vem perdendo condições de governabilidade rapidamente. Esta realidade está aí, à vista de todos, mas ele é incapaz de reagir demonstrando alguma capacidade de liderança, reassumindo seu próprio governo, dando um choque de gestão e adotando um discurso minimamente condizente com o tamanho da crise – crise dele e do País. Bolsonaro está fora de órbita e seu governo, perdido no espaço.

Não, o presidente não é acusado de comandar ou arquitetar a negociação espantosa da vacina Covaxin. A questão é de prevaricação e expõe o quanto ele não governa, não quer saber, não dá bola para o que acontece nos ministérios e no País e está mergulhado até o último fio de cabelo no Centrão, na defesa dos filhos, na sua própria ideologia e, acima de tudo e de todos, na sua reeleição.

O funcionário concursado Luís Ricardo Miranda e seu irmão, deputado Luis Miranda, foram à residência oficial do presidente num sábado, relataram a pressa e a pressão no Ministério da Saúde em favor da Covaxin e entregaram a ele a nota fiscal (NF) com discrepâncias graves em relação ao contrato. Não erros burocráticos, superficiais nem “de digitação”, mas uma evidente tentativa de roubo do dinheiro público. Na compra de vacinas!


A NF previa o pagamento para uma empresa não citada no contrato e que, ora, ora, é, nada mais nada menos, uma offshore com sede em paraíso fiscal e patrimônio de US$ 1 mil. O pagamento de US$ 45 milhões seria integralmente antecipado e o “importador”, ou seja, nós, o povo brasileiro, arcaríamos com frete e seguro.

Soma daqui, diminui dali, a quantidade de doses era uma no contrato e outra na NF e mais: o Brasil pagaria antecipadamente por vacinas com prazo de validade prestes a vencer. Ah! Pelo preço mais caro do que o de todas as demais, inclusive da desprezada Pfizer.

Mais do que não ter sido autorizada, a Covaxin tinha sido desautorizada pela Anvisa e não era reconhecida nem pela agência reguladora do seu país, a Índia. Não bastasse, sua representante no Brasil, a Precisa, é envolta em suspeitas no setor público, por superfaturamento e má qualidade de testes de covid, além de sócia da Global, processada por receber a grana, mas não entregar os medicamentos para... o Ministério da Saúde.

Não precisa ser advogado, economista, contador, basta saber ler para ver que aí tem! Responsável pela área de importações do ministério, Luiz Ricardo Miranda leu, assustou-se, contou para o irmão, aliado de Bolsonaro, e foram ambos relatar ao presidente, que prometeu levar para a PF e não fez nada. Agora ataca os dois e inventa que repassou para o general Eduardo Pazuello, o bobo que mata todas as bolas no peito.

A revista Veja informa que o empresário Francisco Maximiano, da Precisa, foi introduzido no BNDES pelo 01, senador Flávio Bolsonaro. Ok, acontece. Quem está no olho do furacão é o ex-ministro da Saúde Ricardo Barros, líder de todos os governos anteriores e do atual. Segundo o deputado Miranda, o presidente nem ficou surpreso com o novo “rolo” do próprio líder.

Por que Bolsonaro lavou as mãos? Deixar para lá uma roubalheira desse tamanho na Saúde só para preservar Ricardo Barros? Quando Ricardo Salles cai por denúncia de corrupção? Em nome do que, e de quem, o ministro Onyx Lorenzoni e o coronel Élcio Franco jogam lama, PF e MP em cima dos irmãos Miranda, acusando uma nota fiscal verdadeira de fraudulenta? Não é fake news, é calúnia, difamação e coação de testemunhas.

Enquanto suas condições de governabilidade e seu governo esfarelam ao vivo e em cores, o que faz Jair Bolsonaro? Motociatas, ameaças ao Supremo, ataques a jornalistas (mulheres, em geral) e campanha contra máscaras e a urna eletrônica, um orgulho nacional. As pesquisas dizem que não está dando certo.

domingo, 27 de junho de 2021

Pensamento do Dia

 


A chance

O mundo precisa lavar-se e pausar por uma semana, escreveu em 1947 W.H. Auden, um dos mais admiráveis autores de língua inglesa do século XX. O verso no original tem aparência ainda mais simplória quando retirado de seu conjunto — o monumental poema “The age of anxiety” (A era da angústia), quase tão extenso quanto um livro. Nele, Auden trata da busca humana por algum significado e identidade no mundo cambiante do pós-Segunda Guerra. Na narrativa em verso, quatro personagens reunidos num bar de Nova York contemplam onde foram parar suas vidas, sonhos e perdas. Hoje, passados quase 80 anos, cá estamos, igualmente aflitos e perturbados com a condição humana, o tempo a escoar, a pandemia a cavalgar, o futuro de cada um em suspenso. Juventude, posses, família, relacionamentos, esperança, status social, tudo parece incerto, adiado ou precário.

Aquém do noticiário nacional de emergência máxima (a combustão acelerada de Jair Bolsonaro graças à investida letal da CPI da Covid), sempre aparece um fait-divers que também diz montes sobre o Brasil miúdo. Dias atrás, o repórter Artur Rodrigues, da Folha de S.Paulo, pinçou um anúncio publicado num site de vagas de emprego, o Trabalha Brasil. Rodrigues apontou uma novidade trazida pela Covid-19 ao anúncio: a exigência de a candidata ao emprego ter tomado a vacina da Pfizer.

Pela descrição da vaga em Campinas (SP), um casal oferecia R$ 1.600 mensais a uma “babá/governanta” para cuidar de duas crianças, organizando suas rotinas, alimentação, atividades diárias (estudos, cursos, lazer). Fossem estrangeiros, a remuneração oferecida seria escandalosa. Pagar o equivalente a US$ 320 mensais por 160 horas trabalhadas (ou seja, US$ 2 a hora) é tido como ilegal em qualquer país desenvolvido do planeta. A exigência de cinco dias da semana no emprego, mais meio sábado, por salário tão minguado também seria tachada de exploração abusiva.

No Brasil de quase 15 milhões de desempregados, é provável que não faltassem candidatas. Mesmo assim, não seria fácil encontrar quem coubesse no figurino nobre (além da vacina de grife, ter boa bagagem cultural, carteira de motorista, “responsabilidade pela residência e suas dependências”) e também na realidade nativa de sempre: apenas uma folga remunerada por mês (ou 15 dias de férias ao ano), limpeza e serviços domésticos quatro ou cinco vezes por semana.

O anúncio preferiu não explicitar a preferência por cor.


Numa sociedade que ainda não conseguiu acabar com a função segregadora de seus elevadores de serviço, algumas mudanças são bem mais resistentes que a Covid-19. Elevadores existem em qualquer país do planeta, sendo indispensáveis para a entrega de cargas. Só nos mais racistas, porém, é preciso armar barraco no condomínio para fazer cumprir a lei que proíbe toda sorte de discriminação. Sempre é bom relembrar a história contada pelo saudoso geógrafo baiano Milton Santos, de uma experiência vivida por ele na Salvador dos anos 1950. O professor fora visitar um amigo recém-instalado num edifício inaugurado havia pouco. Surpreendeu-se ao entrar no ascensor dividido por uma partição mambembe com duas sinalizações — “social” e “de serviço”. À falta de dinheiro para instalar dois elevadores, foi a solução encontrada pela incorporadora e pelos condôminos para honrar a divisão de castas.

Vem aí, portanto, a inevitável discriminação social por vacinas. Pode-se entender o desejo frenético por uma agulhada da Pfizer, considerada imunizante de grande eficácia contra o vírus (94% para prevenir os sintomas). Mas ele é, e continuará sendo por longo tempo, inalcançável para a imensa maioria dos brasileiros. Ainda chafurdamos num país que estende o braço sem encontrar vacinas — o índice de apenas 12% de vacinados com duas doses não é uma fatalidade, e sim um crime de irresponsabilidade, da mesma forma que é crime o Brasil ter mais de 510 mil vidas jogadas fora pelo desvario do governo.

Ninguém, nem país algum, será o mesmo de antes da chegada da pandemia. A questão é saber se estamos a construir um futuro melhor que nosso passado. O tempo corre. Para o poeta grego C.P. Cavafy, quando falamos em ‘‘tempo’’, falamos de nós mesmos. “Quase todas as abstrações não passam de pseudônimos. Nós somos o tempo”, escreveu ele. Se assim é, temos uma grande chance para o amanhã no Brasil.

“Eu só confio nas pessoas loucas, aquelas que são loucas pra viver, loucas para falar, loucas para ser salvas, desejosas de tudo ao mesmo tempo, que nunca bocejam ou dizem uma coisa corriqueira, mas queimam, queimam, queimam…”, escreveu Jack Kerouac. Não é preciso tanto. O caminho está apontado pelos senadores da CPI da Covid.

Há mais de um século, Brasil adotava quarentena e rastreamento contra doenças vindas do exterior

Em 1893, quatro navios que chegavam com grupos de imigrantes italianos a São Paulo tiveram que dar meia-volta. O motivo: uma epidemia de cólera que assolava a Europa e que fez vítimas entre os passageiros durante a viagem.

As embarcações foram proibidas pelas autoridades brasileiras de atracar nos portos de Santos (SP) e Rio de Janeiro, como registrou a historiadora Fernanda Rebelo (1975-2018), que se dedicou ao estudo da história das ciências e da saúde pública no Brasil.

A estratégia era impedir a chegada da doença no país, já que locais para quarentena e tratamento de doentes estavam cheios.

"Era uma medida mais drástica, mas mostra a atenção de autoridades naquela época em relação a epidemias", explica o historiador Henrique Trindade, pesquisador do Museu da Imigração, em São Paulo.


Se o navio registrasse doenças, poderia ter de
 ficar mais de uma semana em quarentena

A própria Hospedaria do Brás, onde hoje funciona o Museu, foi inaugurada devido a um surto de varíola em São Paulo, em 1887 — na ocasião, para proteger os novos imigrantes dos casos já registrados em outro alojamento, o do Bom Retiro.

O novo prédio, uma das maiores hospedarias da Américas, foi construído fora dos então limites da cidade, como uma forma de evitar o contato da população local com doenças que potencialmente poderiam ser trazidas de outras partes do mundo. E também o contrário, para preservar a força de trabalho saudável que chegava.

Mas essas não foram medidas pontuais na história do Brasil, como mostram o vasto registro em documentos históricos. Desde meados do século 19, com a intensificação do trânsito de pessoas pelo mundo, a preocupação com as fronteiras era uma prioridade.

Se o navio registrasse doenças antes da chegada ao Brasil, poderia ter de ficar mais de 1 semana em quarentena

Em 2020, com o início da pandemia de covid-19, o debate sobre medidas para proteger as "entradas" de países voltou ao radar.

Alguns, como a Coreia do Sul, conseguiram implementar medidas eficazes de rastreamento e controle em aeroportos, como quarentena obrigatória, aplicativo com monitoramento de passageiros e testes em massa nos terminais.

Outros, como o Brasil, não adotaram medidas semelhantes. Só em dezembro de 2020 (ou seja, nove meses após o início da pandemia) o governo passou exigir que passageiros vindos do exterior exibissem testes negativos para covid-19 nos aeroportos.

Ao menos desde 1810, ainda como colônia portuguesa, o Brasil se utilizava de quarentena nos portos e inspeção de navios como uma política pública para impedir a chegada de doenças ao território.

Havia ainda naquele tempo o tráfico de africanos, que forçadamente eram retirados da África para serem escravizados por aqui. Ao longo do século 19, essas medidas também se estenderam aos navios que de forma cada vez mais frequente traziam levas de imigrantes, principalmente da Europa.

Com esses novos trabalhadores, interessantes ao governo para "europeizar" o Brasil, a preocupação sanitária se intensificava.

"Por um lado, você tem a preocupação de evitar que quem chegasse pudesse trazer doenças. Por outro lado, você também tem, especialmente na corte, na cidade do Rio, a preocupação de que aqueles sujeitos saudáveis não fossem contaminados pelas epidemias daqui", relata o historiador Rui Fernandes, professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e coordenador no Centro de Memória da Imigração da Ilha das Flores.

Em 1829, após a Independência, o país aprovou um regulamento para a inspeção de saúde pública nos portos, que tinha por atribuição verificar o estado sanitário das embarcações e decidir se estavam desimpedidas ou deveriam aguardar quarentena.

Navios que vinham de locais da Europa onde havia surtos de doenças como a cólera precisavam passar dias sendo inspecionados por médicos. No Rio, as embarcações deveriam ficar em ancoradouros como o de Jurujuba, em Niterói, onde também havia o Hospital Marítimo de Santa Isabel.

Em um relatório do Império de 1856, o ministro dos Negócios dizia que "estabelecimentos desta natureza são de indispensável necessidade em portos tão frequentados como este da capital".

Também já havia a defesa de diminuir o uso de quarentenas como método e a necessidade de investimento em tecnologias de desinfecção e construção de lazaretos, locais para onde poderiam ser levados os doentes.

O principal lazareto, o da Ilha Grande, no Rio, ficaria pronto em 1886, logo após estourar uma epidemia de cólera na Europa.

Foi ali que ficou focado o serviço para quarentena de navios que vinham de portos como os de Triestre, na Itália, e Fiume, na atual Croácia, considerados locais de surto da epidemia, e até de Uruguai, Argentina e Chile, devido ao aparecimento da doença nos países vizinhos.

"Muitas vezes a própria tripulação já informava ao porto que aquele navio estava infectado. E aí nesse caso não era permitido que ele nem chegasse à Baía de Guanabara, ele já era levado lá pra Ilha Grande", explica Fernandes.

Com o telégrafo, os portos da América também ficavam sabendo rapidamente de epidemias.

Mas as quarentenas não ficaram restritas aos navios. As medidas também se estenderam às próprias hospedarias, como a do Brás, em São Paulo, e da Ilha das Flores, no Rio.

"Temos registros de quarentenas que geraram conflitos entre imigrantes e autoridades públicas. Eles chegavam obviamente angustiados, com medo, num país novo e, se tivessem algum tipo de doença, eram separados até de familiares", diz Trindade, do Museu da Imigração de São Paulo.

Na Ilha das Flores, hoje conectada ao continente na cidade de São Gonçalo (RJ), o local servia também para que imigrantes saudáveis não precisassem frequentar o centro do Rio, com condições sanitárias precárias, antes de seguir para lavouras e colônias no interior.

"Relatórios administrativos buscavam enfatizar que essa política sanitária era exitosa. Mas quando a gente cruza com alguns da imprensa do período, você identifica que nem sempre era exitoso", destaca Fernandes.

Já no final do século 19, um relatório do governo paulista apontava que a cólera que devastou partes da Europa chegou ao Brasil, apesar das quarentenas. A "culpa" foi atribuída às bagagens.

Segundo explica Trindade, com base nos registros do Museu da Imigração, foi quando se intensificaram medidas de se desinfectar roupas e malas para combater essa e outras doenças. Também havia cada vez mais uma preocupação com as perdas econômicas causadas pelas quarentenas.

Num surto de febre amarela no interior de São Paulo, também foram instaladas nas estações ferroviárias estufas e pulverizadores para desinfecção de bagagens e passageiros. Pessoas que embarcavam em cidades assoladas por algum surto eram colocadas em um vagão específico, já que não se sabia que a doença não era transmissível de pessoa pra pessoa.

Com avanço dos estudos bacteriológicos, surgiu o uso do aparelho de gás Clayton.

Em artigo na revista História, Ciências, Saúde, da Casa Oswaldo Cruz, a historiadora Fernanda Rebelo relata: "uso do gás sulfuroso seco, produzido sob pressão do aparelho de Clayton, nas condições em que foi empregado (grau de concentração de 8%), foi perfeitamente eficaz na desinfecção dos navios, para tornar inofensivos os objetos contaminados pelos micróbios da febre tifoide, da cólera e da peste".

"Além disso, o processo permitia destruir todos os ratos e insetos como pulgas, percevejos, baratas."

Com algumas dessas novas tecnologias, o governo começou a abolir as quarentenas de navios. Como mostram documentos da época, imigrantes desembarcados também passaram a gozar de liberdade de locomoção desde que indicassem a residência de destino, onde seriam visitados por funcionários da Inspetoria Geral de Saúde do Porto do Rio de Janeiro, durante o prazo de incubação da doença registradas nos navios.

As medidas para evitar o espalhamento de doenças também ocorriam dentro do Brasil.

Durante a epidemia de cólera que atingiu a parte paulista do Vale do Paraíba no final de 1894, registros em jornais da época mostram que o tráfego ferroviário entre os estados de São Paulo e Rio de Janeiro foi interrompido, para evitar a propagação da doença à então capital federal.

Empresários paulistas criticavam as medidas, que prejudicavam o comércio e a indústria. Por vezes, minimizavam a força da epidemia e faziam duras críticas à administração. A interrupção durou alguns meses, mas depois foi substituída por medidas como passaporte sanitário, desinfecção de passageiros e proibição de comércio de produtos como carne e leite.

Para o historiador Henrique Trindade, a política sanitária do período "contribuiu para que algumas epidemias do final do século 19, do começo do século 20, não fossem tão mortíferas quanto poderiam ser".

Mas também não impediu que doenças se alastrassem pelo Brasil, como a cólera, em 1899. O surto, porém, fez o país criar as suas duas mais importantes instituições de pesquisa em saúde: Fiocruz e Butantan.

'Mito' em surto: temor dos mortos, das ruas, CPI e Salles

Na visita a Guaratinguetá (SP), segunda-feira, o presidente da República tirou de vez o simulacro de máscara que lhe encobria o rosto, e os brasileiros viram, sem disfarce, o ocupante do Palácio da Alvorada amedrontado por seus demônios e fantasmas, em estado de aparente transtorno, ou surto, e nem precisa ser psicólogo ou psiquiatra para chegar a esta conclusão. A dúvida é quanto à causa (ou motivos, que parecem múltiplos) de seu nervosismo e destempero, basta rever vídeos e áudios que correm pelas redes sociais e sites da internet, no Brasil e no mundo. Sintomático o acesso de fúria do mandatário ao gritar ordens, de público, para assessores e auxiliares de seu governo, mas principalmente para a repórter da afiliada da TV Globo na região, durante a caótica entrevista coletiva na pacata Guará: “Cale a boca! Essa TV Globo é uma merda”. E desfiou um desaforado, aluado e desconexo palavreado retórico, com xingamentos, ofensas e desvarios como não se tem notícia na história republicana e democrática do Brasil. Salvo, talvez, o caso do sucessor do presidente Venceslau Brás, em 1915, o mineiro Delfim Moreira, reconhecidamente amalucado, que cogitou até criar galinhas no Palácio do Catete, no Rio de Janeiro.

Há quem diga que, em Guaratinguetá, Bolsonaro teve uma explosão nervosa retardada. Efeito do editorial do Jornal Nacional, lido com força máxima por William Bonner e a colega de bancada, Renata Vasconcelos, na edição para não esquecer, do sábado em que o Brasil atingiu a vergonhosa e sinistra marca de 500 mil mortos pela pandemia Covid-19. Mas logo ficou patente que havia mais incêndios sob as chamas e chispas de fogo que o mandatário do Planalto soprava pelas narinas e boca às vésperas dos festejos a São João.

Além de distribuir xingamentos e ofensas a jornalistas em geral, e em especial à repórteres e fotógrafos que não se pautam por seu destrambelhado e autoritário “manual de redação”, no cercado da sua claque de adeptos no Alvorada, passou a maldizer também à CNN pela cobertura das manifestações, por “vacinas no braço, comida no prato e fora Bolsonaro”, no país, em especial na Avenida Paulista, do estado governado pelo tucano João Dória JR, inimigo visceral desde sua posse no cargo. As presenças de Boulos (Psol), Haddad (PT) e Orlando Silva (PC do B) puxando o ato que tomou 9 quarteirões da monumental avenida da megalópole brasileira, e os protestos do Rio de Janeiro – com a destacada presença de Chico Buarque de Holanda usando máscara no meio da multidão – também contribuíram para deixar em frangalhos o sistema emocional do capitão presidente.

Sem falar no embrulho chamado Ricardo Salles, o pior e mais suspeito ministro do Meio Ambiente da história do Brasil, que precisou ser expurgado, na quarta-feira junina, de triturar os nervos do mandatário, em queda expressiva nas pesquisas de opinião, que tinha em Salles, amigo do peito e arauto dos desmandos no governo. Há, ainda, os efeitos da Comissão Parlamentar de Inquérito Covid-19 e a “bomba” da superfaturada compra da vacina indiana Covaxim, que causam pesadelos e novos surtos como manifestados em Guaratinguetá. E nem apareceu ainda o nome da terceira via para 2022. Haja cordas!

A teia bolsonarista nos porões da internet

A pandemia do novo coronavírus já havia fechado fronteiras de diferentes países e ganhava corpo no Brasil em maio do ano passado. O país contabilizava, à época, 100.000 casos e 7.000 mortes pela covid-19, e seguia numa progressão que já se mostrava descontrolada, sobretudo pelo descompasso das ações do Governo ao que até hoje é preconizado pela Organização Mundial da Saúde (OMS).

Na manhã do dia 3 daquele mês, um domingo ensolarado, o presidente Jair Bolsonaro devotou-se a apoiar manifestantes em frente ao Palácio do Planalto. Não usava máscara, tampouco seguia a orientação de autoridades médicas e científicas para evitar ―ou ajudar a formar― aglomeração. Diante de fiéis seguidores, disse que havia chegado ao seu limite, e que pedia a Deus para não ter problemas.

Cercado de seguranças, gravou um vídeo para a equipe responsável pelas suas redes sociais. Nele, minimizava os primeiros efeitos da pandemia, a qual, mais de um ano depois, colocaria o Brasil na lista dos países com um dos mais altos índices de mortalidade em decorrência da covid-19: “Sabemos o efeito do vírus, infelizmente muitos serão infectados e perderão suas vidas, mas é uma realidade.” O indisfarçável desdém em relação à doença, no entanto, tinha um outro propósito naquele dia.

O colérico convescote à porta da sede do Governo reunia uma trupe de homens e mulheres de camisas e faixas verde e amarela, alguns enrolados em bandeira do Brasil, não para exigir medidas sanitárias que pudessem conter o avanço da doença, mas aguerridos em campanha pela reedição do Ato Institucional 5 (AI-5) e por intervenção militar, processo inconstitucional dada a apologia contra a democracia.


Os principais alvos eram o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Congresso Nacional, após medidas contrárias ao pensamento bolsonarista. “Queremos a independência verdadeira dos três Poderes, não apenas uma letra da Constituição. Não vamos mais admitir interferência”, disse Bolsonaro, em tom peremptório se comparado à preocupação com as vítimas do coronavírus desde àquela ocasião.

Dias antes, um dos ministros do STF, Alexandre de Moraes, havia barrado o nome de Alexandre Ramagem para a diretoria-geral da Polícia Federal, sob o argumento de que a nomeação representava um desvio de finalidade do Governo para interferir politicamente na PF. Ramagem é amigo dos filhos do presidente, e a tentativa de acomodá-lo no cargo levou à crise do Planalto com o ex-juiz Sergio Moro, que abandonou o barco quando percebeu que não tinha carta branca para, como ministro da Justiça, indicar sequer alguém para o maior posto da PF.

Considerados antidemocráticos, os atos realizados pelo país àquela altura eram apenas a face visível de um trabalho estrategicamente elaborado desde a campanha presidencial nos porões da internet, com ajuda de apoiadores da chamada linha de pensamento conservador que ganhou brado com a chegada de Bolsonaro ao poder. Para investigar as denúncias de mau uso das redes por parte do Governo a fim de insuflar uma faixa do eleitorado contra os Poderes constituídos, a polícia então instaurou em abril do ano passado um inquérito com a finalidade de investigar quem são os responsáveis pela atuação nas redes, quem financia e qual a relação de cada um deles com o comando do Governo federal. Revelou-se, a partir daí, uma ação coordenada entre os mais diferentes agentes, de parlamentares a empresários, passando por influenciadores digitais e donos de sites colocados sob suspeita pela PF.

Com a popularidade por vezes em xeque, o Governo era apontado como um incentivador de perfis dominados por robôs, que, com nomes e apelidos diferentes, repetiam à exaustão uma mesma crítica (muitas vezes com igual erro de português) ao STF ou a algum parlamentar na mira dos bolsonaristas. Com 1.023 páginas, o inquérito montado em oito meses de investigação revela a estreita relação de agentes públicos e apoiadores também com os filhos do presidente. Segundo o relatório, aliados ao clã Bolsonaro formavam o que foi batizado de gabinete do ódio, o que já se sabia há tempos, mas agora desvelado nas investigações com detalhes até então resguardados pela privacidade das redes sociais. Trecho do documento diz que o grupo incitava “parcela da população à subversão da ordem política ou social e à animosidade das Forças Armadas contra o Supremo Tribunal Federal e o Congresso Nacional”. Eduardo e Carlos Bolsonaro foram intimados na condição de testemunha para falar sobre os atos antidemocráticos. Assíduos nas redes sociais, eles fazem críticas costumeiras às medidas adotadas pelo STF e pelo Congresso contra o Governo do pai.

Nunca antes um inquérito da PF havia vasculhado tamanho volume de indícios que colocam o governante do país em situação tão desconfortável quando o assunto é a destituição do Judiciário ou do Legislativo.

As investigações se concentraram por um tempo numa figura de zerada expressão pública, mas com trânsito aparentemente livre entre Bolsonaro e seus familiares. Tido como um dos participantes do gabinete do ódio, Tercio Arnaud Tomaz é lotado como assessor no gabinete de vereador de Carlos Bolsonaro, no Rio, mas dava expediente no Palácio do Planalto numa sala contígua a do gabinete presidencial, no terceiro andar. Ao lado de outros assessores, Arnauld opera ou administra, segundo a polícia, perfis disseminadores de falsas informações. Há cerca de dois anos, ele foi chamado para “impulsionar” as redes bolsonaristas.

O foco das investigações em torno de Arnauld ganhou tinta quando a polícia descobriu ―e o STF decidiu divulgar ao liberar o sigilo do inquérito― que a atuação dele não se restringia aos corredores palacianos. Ex-recepcionista de hotel alçado à condição de mentor intelectual do grupo que produziria fake news, além de memes e piadas para atacar moralmente os adversários do presidente, Arnaud teve suas redes devassadas. Foram encontradas 31 pessoas vinculadas a contas operadas ou administradas por ele.

Mas foi ao quebrar o sigilo dos perfis que a polícia descobriu um elo ainda mais forte da atuação dos Bolsonaros no ambiente profundo do mundo virtual. Arnauld já havia acessado as contas Bolsonaronews e Tercio Arnaud Tomaz através da rede da primeira-dama Michelle Bolsonaro. E não foi em Brasília. “Trata-se, ao que tudo indica, do endereço residencial do presidente Jair Bolsonaro, no Rio de Janeiro”, segundo um dos analistas da PF que relatou no inquérito.

Todos os integrantes da família Bolsonaro negam irregularidades no uso de suas redes sociais. A polícia descobriu ainda que tais perfis administrados por Arnaud foram acessados 1.045 vezes também de computadores do Senado Federal, da Câmara, da Presidência da República e até do Comando da Brigada de Artilharia Antiaérea. “Ao que tudo indica, as contas objeto desta análise, removidas pelo Facebook de suas redes sociais, se enquadram na tipologia ‘Operações executadas por um governo para atingir seus próprios cidadãos. Isso pode ser particularmente preocupante quando combinam técnicas enganosas com o poder de um Estado’”, diz o relatório da PF.

Assessores ligados aos filhos de Bolsonaro atuam, de acordo com a investigação, em contas sem autenticação usadas para atacar opositores do Governo. Para tentar entender melhor como funciona a dinâmica dos ataques na internet, a PF foi abastecida com informações da Atlantic Council, empresa especializada em analisar comportamentos inautênticos nas redes sociais. Verificou-se, a partir daí, que três grupos ―chamados Rio, Brasília e São Bernardo do Campo― tinham atuação relevante entre os bolsonaristas.

Uma das informações obtidas através da Atlantic é que Fernando Nascimento Pessoa operava seis contas ocultas em redes sociais. Pessoa é assessor de Flávio Bolsonaro desde 2014 e investigado no caso da rachadinha à época em que trabalhava para Flávio na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj).

O relatório destaca nomes como a ativista Sara Giromini (conhecida como Sara Winter) e o jornalista Oswaldo Eustáquio. Mais que apoiadores, ambos tinham cargo no Governo e atuavam a favor do presidente Bolsonaro enquanto recebiam salários no ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, comandado pela religiosa Damares Alves. Sara e Eustáquio chegaram a ser presos durante a investigação, e desde então diminuíram, ao menos publicamente, suas presenças nas redes.

Foram oito meses de investigação, até dezembro, quando a Polícia Federal encaminhou o inquérito para o STF. Alexandre de Moraes, então, enviou o documento para a Procuradoria Geral da República, que, cinco meses depois, em maio deste ano, pediu o arquivamento do processo. O ministro do STF solicitou mais informações à Procuradoria, antes de decidir se daria ou não por encerrado o processo que investiga aliados do Governo. Antes, porém, Moraes liberou o sigilo de toda a investigação, resguardando apenas os documentos obtidos ao longo da apuração.

Na última quinta, a PGR reiterou ao STF pedido de arquivamento dos processos contra deputados com trânsito livre na Presidência. O vice-procurador Humberto Jacques de Medeiros afirmou: “Não se pode prolongar investigação sabidamente infrutífera”. O procurador-geral, Augusto Aras, aliado de Bolsonaro, tenta uma indicação para o STF.

A julgar pela transcrição das mensagens, fotos e cópias de documentos anexados ao inquérito, as investigações devem dar fruto. O que já era percebido nas redes sociais foi revelado com detalhes pelas investigações. Os dois primeiros anos do Governo Bolsonaro foram marcados por forte atuação de agentes da Secretaria Epecial de Comunicação (Secom) junto às chamadas redes aliadas para propagar o que era de interesse do Governo, consequentemente, contra as ações do Congresso e principalmente do STF. Foram ataques direcionados a Moraes que levaram o deputado bolsonarista Daniel Silveira à prisão, de onde saiu obrigado a usar tornozeleira eletrônica.

O inquérito mostra que o ex-secretário de Comunicação da Presidência, Fabio Wajngarten, abraçou a causa bolsonarista e estabeleceu, em sua gestão, uma forte relação com os influenciadores digitais da direita. Segundo relatório da PF, em abril de 2019 Wajngarten assumiu o comando da Secom e tratou de se aproximar do blogueiro Allan dos Santos, dono do site Terça Livre e amigo dos filhos do presidente.

Na ocasião, mostra o documento, Wajngarten se apresentou para Allan dizendo que poderia aproximá-lo de veículos tradicionais de imprensa e que, naquela semana, já havia promovido encontros de parlamentares com a cúpula do SBT, da Band e se encontraria com “bispos da Record”. Wajngarten nega que tenha havido interesse político na aproximação. “Minha gestão sempre foi técnica e profissional. Cabe à Secom atender a todos os veículos de maneira equânime”, afirmou.

O foco da operação policial nas ações que vinham sendo tomadas por pessoas próximos ao presidente terminou por um revés no comando das investigações. A delegada Denisse Ribeiro, responsável pelo caso, foi afastada do posto duas semanas depois de pedir ao STF autorização para realizar busca e apreensão nos gabinetes da Secom e da Presidência.

O conteúdo conservador dos blogs e páginas em rede social não rendem apenas seguidores com o mesmo viés ideológico. Desde a campanha de Bolsonaro à Presidência, pelo menos 12 perfis já receberam 4 milhões de reais via monetização de suas redes de apoio ao Governo. As páginas ganham reforço financeiro também de doadores espontâneos. O relatório da PF identificou que apenas o site Terça Livre, de propriedade de Allan dos Santos, receberia 100.000 reais por mês via plataformas de crowdfunding. “Durante busca e apreensão executava na residência de Allan dos Santos foi encontrada uma planilha de doadores do canal com mais de 1.700 linhas”, diz o documento da PF.

Nesse material consta, por exemplo, a doação de 70.000 reais por parte de uma servidora do BNDES, além de outros 40.000 reais por parte de um funcionário da secretaria da Fazenda, no Rio. O engajamento de pessoas simpáticas ao ambiente conservador tem suscitado desconfiança entre os investigadores. Allan dos Santos nega irregularidades ou responsabilidade na divulgação de notícias falsas. “Resta saber se essas doações são por pura simpatia à causa ou se tem gente tendo que rachar salário para abastecer um ambiente perverso à democracia”, diz um delegado da PF de São Paulo que ajudou nas investigações ao longo do ano passado.

Diz o documento: “Segundo os dados discutidos por pessoas ligadas à gestão financeira do Terça Livre, entre 13 de abril e 2020 e 13 de maio de 2020, foram realizadas 1.581 transações, das quais 659 sem reconhecimento de identificação de CPF.” À letra da lei, transações financeiras que ocultam a identificação dos negociadores revelam, no mínimo, uma dinâmica inapropriada. No rol de aliados também ouvido pela Polícia Federal, o empresário Otavio Fakhoury aparecia até então não só como um entusiasta do Governo bolsonarista, mas um dos grandes críticos ao STF e ao Congresso, fórmula capaz de transformar em aliado qualquer amigo de primeira hora da família Bolsonaro.

Uma análise feita no celular de Fakhoury mostra sua disposição em atacar o STF quando o assunto desagrada o Governo, como aconteceu quando o ministro Luís Roberto Barroso o criticou o uso de hidroxicloroquina como medicamento para prevenir a covid-19, num tratamento precoce sem qualquer comprovação científica, mas até hoje usado como uma bandeira bolsonarista.

Numa conversa em maio de 2020, semanas depois daquele domingo ensolarado em que Bolsonaro apoiou o ato contra o STF, Fakhoury endossou as críticas da deputada Bia Kicis (PS) contra o ministro Barroso. Defensora fervorosa da atual Administração, o que lhe rendeu a presidência da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) na Câmara, Kicis reclamou com o empresário que Barroso estava tentando barrar o uso do remédio como tratamento precoce a covid-19. “Canalhas. Olha, vai ser muito difícil terminar esse governo sem entrar de cabeça numa guerra institucional contra eles, porque eles é que invadem o Executivo”, respondeu Fakhoury.

Dois meses antes, o empresário havia procurado Eduardo Bolsonaro para que o deputado tentasse lhe ajudar a conseguir um dial de FM para migrar a rádio que ele administra na internet. Numa das mensagens interceptadas pela polícia, o empresário dispara: “Precisamos da FM, nossa arma para a guerra política.” O empresário declarou que a expressão “guerra política” não ultrapassa o limite do debate de ideias.

Eduardo Bolsonaro, deputado federal mais votado nas eleições para a Câmara em 2018, decidiu atender prontamente ao pedido do empresário e buscou apoio do bispo RR Soares. Dia depois do encontro com o religioso, disse ao empresário que pelo menos três rádios estariam à venda, e que ele (Fakhoury) deveria tratar com os negociadores. Procurada, a assessoria de imprensa do deputado não respondeu sobre as conversas com o empresário.

Sem precedentes no Brasil, a investigação pela Polícia Federal de atos antidemocráticos revelou uma relação dissoluta do Governo com sua base fisiológica, dentro e fora do poder. Ao que tudo indica, a dinâmica adotada pelo clã Bolsonaro para blindar o Planalto já não é uma dúvida para as autoridades federais, resta saber se, quando, quanto e quem pode ter recebido recursos para jogar nas trincheiras pró-bolsonaristas.

Nesse sentido, o Ministério Público junto ao Tribunal de Contas da União decidiu pedir, na última quinta-feira, ao STF que compartilhe dados não só a respeito da organização, mas do financiamento desses atos, virtuais ou não. A ideia é entender se houve dinheiro público nesse custeio. “Chegar ao financiador nos permitirá descobrir quem está por trás da tentativa de perpetuar um governo que faz questão de acabar com instituições democráticas”, diz um senador integrante da CPI da Pandemia, que, assim como o inquérito dos atos antidemocráticos, também investiga toda a sorte de informações falsas responsáveis por prejudicar a luta contra a covid-19 no país.