A classe média sente-se mal. Envenena-se pelo ressentimento. Há uma crise econômica. Uniformizada, ela toma as ruas. Um arranjo parlamentar põe no poder um governo de direita. A classe média não ganha nada, mas o grande capital é logo recompensado. Trabalhadores perdem direitos e salários. Politicas de proteção a idosos são revogadas. Cortes orçamentários afetam a saúde. Serviços públicos privatizados. Organizações criminosas agem livremente com apoio ou omissão das autoridades e mantém um vínculo com o Executivo.
Não, esse texto não é sobre o Brasil após 2013. Mas pode ser. O que ele diz se reproduz em tempos e lugares distintos. É uma apertadíssima síntese do Relatório apresentado por Clara Zetkin em 1923 ao Pleno Ampliado do Comitê Executivo do Komintern e versa sobre a Itália no período 1919 – 1923, um ano depois da Marcha sobre Roma que conduziu Mussolini ao poder. Em 1926, as instituições liberais foram definitivamente liquidadas e teve-se o primeiro regime fascista da História. Antes de 1926, o fascismo conviveu com elas.
As categorias fundamentais são as mesmas porque decorrem da estrutura da sociedade burguesa: o grande capital, as camadas intermediárias (classe média ou pequena burguesia) e os trabalhadores. O momento em que há uma crise de acumulação ou de dominação. O irracional da classe média que, apesar de em grande parte prejudicada pelo grande capital, põe-se no plano ideológico ao lado das classes dominantes, na qual se projeta. Quer mudanças sem mudar o sistema e, por isso, visceralmente anticomunista. Quando sai às ruas seu alvo são os trabalhadores, suas organizações políticas e movimentos. O seu mal-estar ou ressentimento transforma-se em ódio de classe contra os trabalhadores. Pulsões primitivas, pré-civilizatórias, passam a movê-las.
A permissividade faz-se anomia moral e tudo é possível. Na Itália em 1920 – 1921, no chamado biennio nero, reação ao biennio rosso de 1919-1920 de intensa agitação operária e clima insurrecional, havia “cerca de 15 milhões de pessoas à mercê de bandos armados que estupravam, espancavam, aterrorizavam e matavam”, escreve Luciano Belochi em La rivoluzione mancata – Italia 1919-1921. Nos primeiros sete meses de 1921, Gramsci computou 1.500 assassinatos, 40 mil aleijados, espancados e feridos, dois mil exilados, vinte jornais destruídos, reporta Belochi, tudo com a omissão ou conivência do Estado.
Em outras fontes, um balanço da violência fascista no primeiro semestre de 1921 aponta 726 destruições, ataques a 217 jornais e tipografias, a 259 casas do povo, a 119 conselhos de fábrica, a 107 cooperativas, a 483 ligas de camponeses, a 48 sociedades de mútuo socorro, a 141 sedes do Partido Socialista Italiano, a 100 círculos de cultura, a 610 bibliotecas, a 28 sindicatos operários e a 653 círculos operários recreativos. Os protagonistas eram facilmente identificáveis: classe média e desclassificados de toda sorte, lúmpens recrutados dentre os trabalhadores, tudo com apoio e financiamento do grande capital e do latifúndio agrário.
Naquele momento de gênese do fascismo, Gramsci e Clara Zetkin criticavam concepções que o viam como um fenômeno passageiro, contingência política controlável ou fadada a desaparecer. Entenderam que suas raízes eram próprias da estrutura da sociedade burguesa, do conflito de classes, o que depois Horkheimer dirá de outro modo: quem não quer falar de capitalismo deve calar-se sobre o fascismo.
Vidas destroçadas, dor, sofrimento e mutilação de uma parte da sociedade. Foi o terror feito norma social, a ausência de limites morais que pouco a pouco se instalou na consciência de uma parte da sociedade e fez com que outra parte se perguntasse depois como aquilo foi possível, sem se dar conta de que foi possível pela sua própria complacência, irracionalidade e cegueira.
Estamos hoje no Brasil exatamente no ponto em que estavam Itália nos anos 1920 e Alemanha nos anos 1930: o momento de deter o fascismo, com o agravante de que conhecemos a História e o horror absoluto se mostra precocemente. Confirmaremos mais uma vez a frase de Gramsci – a História ensina, mas não tem discípulos?
Bolsonaro já fez do país um imenso gueto de Varsóvia, matando ao governar a favor da doença, matando pela fome e pela miséria. A responsabilidade por uma morte que se tem, por dever de ofício ou de Estado, a obrigação de evitar, é homicídio. Aos milhares, torna-se crime contra a humanidade. E continua a fazê-lo dia após dia sob o olhar complacente, omisso ou ingênuo das instituições – que podem estar prestes a ser destroçadas – e de forças políticas que pensam que 2022 fará com que tudo se resolva sem maiores problemas. Como na fórmula clássica do fascismo, Bolsonaro tem o apoio do grande capital. Seus porta-vozes, a grande imprensa, não deixam dúvidas: a primeira grande manifestação popular, o 29M, foi solenemente ignorada por ela. Esse é sempre o sentido do fascismo: serve ao grande capital, que relega ao abandono seus antigos representantes.
Todos os movimentos para fazer de 2022 uma convulsão política e uma tragédia social estão sendo anunciados. Não são bravatas. São um roteiro. São planos. Anunciá-los faz parte da mecânica do fascismo, que precisa de uma base de massa mobilizada. O fascismo não age sub-repticiamente, não dissimula, porque precisa capturar o irracional da massa.
A invasão do Capitólio quis ser a Marcha sobre Roma e quis ser o incêndio do Reichstag. A invasão do Capitólio está sendo preparada aqui com a denúncia do voto eletrônico, o mote para que a massa fascista dê nas ruas suporte para o golpe. Há um projeto no Congresso retirando dos governadores o controle das Polícias Militares. A Polícia Militar de Pernambuco atuou no sábado, 29 de maio, sob o comando de Bolsonaro, assim como a Polícia do Rio de Janeiro, no massacre de Jacarezinho. As milícias são fetos em gestação da SS alemã e das squadre d’azione italianas.
Não se enfrenta a barbárie do fascismo com uma inerte e ingênua fé no bom senso e nos princípios civilizatórios. Precisaremos de muitos 29 de maios para sermos verdadeiros discípulos da História. É nas ruas que se derrota o fascismo.
Inabilidade política, falta de capacidade para planejar, falta de modos, vaidade como combustível são alguns dos deméritos que nos ofendem diante dos desafios sociais, econômicos e principalmente sanitários trazidos pelo surgimento do Sars-Cov-2 da Covid-19.
É angustiante sermos conduzidos indefesos rumo ao abismo da hipocrisia, da intolerância, da insensatez e da tirania da presunção, essa mais perigosa para o país ante a possibilidade de transformar-se em tirania política
Enquanto se discute quantos motoqueiros prestigiaram a passeata motorizada promovida por Jair Bolsonaro em São Paulo, ao melhor estilo italiano dos anos 30, o mundo continua a se movimentar – de outras maneiras. Dois eventos ocorridos neste mês de junho mostram como se definem as linhas básicas de um novo cenário internacional pós-pandemia.
O primeiro deles foi em Moscou. No dia 5, o presidente chinês Xi Jinping chegou à capital russa para uma visita oficial de três dias. Logo no primeiro dia, teve dois gestos simbólicos: emprestou dois ursos panda ao zoológico de Moscou e chamou o colega Vladimir Putin de “melhor amigo”.
O segundo foi na Baía de Carbis, na Cornuália, onde o presidente americano Joe Biden chegou no dia 11 para um encontro com os demais líderes do G-7, conhecido como o grupo dos países mais ricos do Ocidente. Ali, naquela vila de 3500 pessoas cercada por florestas e praias tranquilas, ele tinha como principal missão reaproximar-se dos antigos aliados europeus.
Os dois encontros, separados por seis dias e 3300 quilômetros, refletem, de um lado, a disposição de Biden de lançar pontes em direção a aliados depois de quatro anos de turbulências durante a administração de Donald Trump. E de construir, conjuntamente com esses aliados, uma resposta à expansão da China.
De outro lado, o fortalecimento da aliança entre Pequim e Moscou. As duas capitais têm seus motivos para promover uma resposta conjunta ao Ocidente. A primeira, por perceber os movimentos iniciais de Biden para limitar sua influência. A segunda, por sofrer as consequências de represálias econômicas desde a invasão da Crimeia, há sete anos.
As “melhores amigas”, Rússia e China, se aproximam cada vez mais politicamente. Mas não só. A proximidade de suas lideranças tem permitido um grande salto nas relações econômicas entre as duas potências – que, não custa lembrar, participam juntamente com o Brasil do Brics, juntamente com Índia e África do Sul.
Poucos dias antes da visita a Moscou, Xi e Putin participaram, de forma virtual, de cerimônia de lançamento de uma parceria que vai permitir a construção, na China, de quatro usinas nucleares com tecnologia russa. Uma forma de ampliar a autonomia energética do país, enquanto fortalece a cooperação tecnológica com um país considerado aliado.
Outro passo recente em direção a essa cooperação tecnológica foi a assinatura de uma carta de intenções para colaboração em pesquisa espacial, que pode envolver a construção de uma base conjunta na Lua até o final de década.
Durante a visita do colega chinês, Putin anunciou ainda a intenção de dobrar, até 2024, o comércio bilateral, atualmente na casa dos US$ 100 bilhões anuais. Ao mesmo tempo, grupos russos e chineses de telecomunicações, internet e comércio eletrônico – como Alibaba, Mail.Ru, MTS e Huawei – firmaram acordos de atuação conjunta.
Também tem forte conotação política a viagem de Biden à Europa – inicialmente para o encontro do G-7, mas igualmente para reuniões com dirigentes da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) e da União Europeia. Reflete a intenção do novo presidente americano de reduzir as tensões impostas por Trump às relações com os europeus.
Porém, assim como no caso da aproximação entre Xi e Putin, também há aqui um importante ingrediente econômico. Pouco antes de sua viagem à Europa, Biden obteve do Senado a aprovação de um pacote de US$ 250 bilhões destinados a investimentos em tecnologia e na capacidade industrial do país para ampliar a competitividade diante da China.
O pacote faz parte de uma iniciativa mais ampla, chamada Building Back Better (B3), ou Reconstruindo Melhor, em tradução livre. Ela envolve investimentos em rodovias, ferrovias, redes elétricas e internet de banda larga. E está em discussão no Congresso americano.
Agora, em seu encontro com os demais líderes do G-7, Biden apresentou uma versão ampliada de sua iniciativa, a B3 Mundo (B3W, na sigla em inglês).
Trata-se, segundo o governo norte-americano, de um plano conjunto das sete economias para ajudar a suprir as carências de infraestrutura do mundo em desenvolvimento, calculadas em aproximadamente US$ 40 trilhões.
Por meio do B3W, segundo comunicado divulgado pela Casa Branca, os países do G-7 e outros parceiros com propostas semelhantes vão coordenar esforços para mobilizar capital privado para atuar em quatro áreas: clima, saúde, tecnologia digital e equidade de gênero. Tudo com investimentos “catalíticos” das agências financeiras de desenvolvimento desses países.
“O B3W terá escopo global, da América Latina e do Caribe à África e ao Indo-Pacífico”, descreve comunicado da Casa Branca. “Diferentes parceiros do G-7 terão diferentes orientações geográficas, mas a soma da iniciativa vai cobrir países de renda baixa e média ao redor do mundo”.
A iniciativa logo foi interpretada como uma resposta ocidental a um dos maiores programas chineses de cooperação econômica internacional – a Nova Rota da Seda. Lançada em 2013 por Xi Jinping, a iniciativa é considerada um dos maiores programas de infraestrutura da história mundial. E de expansão da influência chinesa, claro.
Os investimentos destinam-se, principalmente, a construir caminhos seguros – terrestres e marítimos – entre a Ásia e a Europa, dentro do que se pode chamar de Eurásia. Mas já alcançaram ou pretendem alcançar 138 países nessas duas regiões, mas também na África e na América Latina.
O programa desenvolvido por Pequim se chama Belt and Road Initiative, ou Iniciativa do Cinturão e da Rota. Pois a proposta apresentada na reunião da Cornuália recebeu de assessores do anfitrião do encontro, o primeiro-ministro britânico Boris Johnson, o apelido de Green Belt and Road Initiative. Um “verde” que faria toda a diferença, aos olhos de seus idealizadores.
Segundo relato do jornal londrino Financial Times, Johnson pretende enfatizar o apoio a iniciativas ambientalmente sustentáveis e demonstra preocupação com a intenção norte-americana de apresentar o plano como um esforço anti-China. Integrantes do governo britânico citados pelo jornal querem que o G-7 mostre “aquilo que está a favor, não o que está contra”.
Dessa forma, o B3W deve garantir acesso mais fácil a financiamento de projetos de baixo carbono, como ferrovias e usinas eólicas.
Poucos países estariam mais bem posicionados para se qualificar a financiamentos com prioridades ambientais como o Brasil. Existe enorme espaço por aqui não só para a construção de ferrovias como para a construção de usinas solares e eólicas. O país estaria também em boa situação para buscar financiamentos da Iniciativa do Cinturão e da Rota junto à China, seu maior parceiro comercial.
Ou seja, o Brasil não é obrigado a escolher um lado nessa grande disputa política e econômica que se desenha para a era pós-pandemia. Ao contrário, pode se apresentar como parceiro igualmente a países ocidentais e à China.
Para isso, inicialmente, precisa aparar arestas. Desde a posse de Bolsonaro, o país já teve conflitos com a União Europeia, por causa da questão ambiental, e com a China, a partir de declarações pouco amistosas de Bolsonaro sobre a origem da Covid 19. O presidente também criou problemas com Biden, por manter até o fim seu compromisso com o aliado Trump.
Em seguida, o Brasil precisa definir muito bem projetos para os quais poderia vir a buscar apoio internacional, em um momento de reconstrução da economia mundial. O atual governo parece ter como único objetivo a reeleição. A oposição, por sua vez, deve apresentar logo ao país uma nova agenda de desenvolvimento. O mundo não vai esperar por nós.
Dizem que os deuses punem os mortais atendendo a seus desejos. Não muito tempo atrás, nos anos 90, cientistas políticos, jornalistas e a opinião ilustrada em geral se queixavam da pouca diferenciação ideológica entre partidos políticos no Ocidente e pediam um pouco mais de polarização.
Àquela época, dizia-se, em tom de “demi-chiste”, que tanto fazia ter um democrata ou um republicano na Casa Branca, desde que Alan Greenspan seguisse no comando do Fed, o banco central dos EUA.
O castigo veio a cavalo. A partir da segunda década do século 21, vem-se tornando cada vez mais comum o diagnóstico de que a polarização é o verdadeiro “mal-du-siècle”, sendo responsável pela radicalização política e pelo retrocesso democrático experimentado em vários países. Não são poucos os que ligam o aumento da polarização ao advento das redes sociais e às bolhas de informação que elas criam.
Não discordo dessa análise, mas as coisas são sempre um pouco mais complicadas do que parecem. Há trabalhos que mostram que, em vários casos, as populações mais radicalizadas são justamente as que têm menos acesso à internet, o que torna necessário encontrar explicações mais sofisticadas para os mecanismos pelos quais a radicalização ocorre.
Um ponto que gostaria de destacar é o personalismo. Também na contramão dos anos 90, o avanço do autoritarismo hoje é indissociável de figuras carismáticas, que são idolatradas por parcelas variáveis da população. Se antes ainda havia as ditaduras mantidas por juntas ou partidos hoje a regra é a erosão das instituições democráticas promovida por líderes populistas, do que dão testemunha figuras como Trump, Putin, Orbán, Netanyahu, Bolsonaro.
O lado positivo é que não é preciso recorrer às armas ou a revoluções populares para derrubá-los. Como mostram os casos americano e israelense, eles também podem ser removidos pelo voto ou por arranjos políticos.
Fatos são fatos.
Hoje lavamos mais as mãos
Do que no tempo de Pilatos.
Muito antes da pandemia, o sistema brasileiro usava máscara. No fundo, a recusa de usar máscara pelo nosso exemplar presidente da República (este “mito” revelador de como a “polícia”, no seu sentido mais barato e vil, legitima os piores e afasta os melhores) é uma ironia. Porque, com Bolsonaro presidente, ela expõe a irracional recusa contra a ciência (que universaliza pelos princípios da biologia), mas agressivamente revela um oculto particularismo: o fato de que quem manda faz o que quer.
É mais do que dono do poder. É senhor do contrassenso ativado contra a moralidade e, por fim, mas jamais por último, da lei. Essa lei tão falada e louvada, mas feita para os inferiores. Os que não fazem parte dos vários sistemas de mando quase sempre incongruentes, vigentes no Brasil. Contradições desenhadas para inocentar legalmente os desonestos. Lei na qual a forma vale mais do que a substância, como prova a anulação de penalidade por meio de erro geográfico.
Voltemos, porém, às máscaras para dizer que – num sentido preciso – todas as sociedades humanas usam máscaras pois, diversamente dos animais, elas romperam com a natureza e nela se projetam com suas máscaras ideológicas. A mais básica e a menos percebida é justamente a linguagem articulada na qual o elo entre o som e seu significado é arbitrário. O que é chamado de “mesa” em português vira “table” em inglês. Conforme aprendemos com Saussure, Boas e com Whorf e Sapir, as línguas vão além da comunicação: elas definem a realidade. Como dizia Roland Barthes, elas têm o seu fascismo na medida em que nos obrigam a dizer certas coisas a seu modo. São máscaras gigantescas a encobrir construções paralelas do mundo.
Quando Marx distinguiu objetos como tendo “valor de uso” e “valor de troca” (alguém aí se lembra disso?), o valor de troca era a máscara que desmascarava o capitalismo na sua desumanidade. Porque no capitalismo a riqueza não pertence mais à virtude, à honra ou ao terror, como em 1748, escreveu Montesquieu ao caracterizar respectivamente as repúblicas, as aristocracias e as tiranias, mas apenas ao Capital com letra maiúscula mesmo, conforme escreve com brilho habitual o crítico da USP Roberto Schwarz.
No Brasil, relacionamos, confundimos ou mascaramos tudo, porque o velho e malandro Portugal é a Suíça dos engenhos e pontes entre culturas, etnias e regimes. Foi o único reinado no qual a Corte e o Rei abandonaram a terra que os legitimava.
Se fomos aristocratas-católicos-mercadores de escravos e podíamos virar nobres por bravura, e sobretudo por decreto, simpatia e dinheiro, por que não poderíamos desenvolver um sistema político no qual os culpados jamais seriamos nós?
O valor do capital se exprime nos cargos públicos que legitimam o seu ganho por meio da expropriação sistemática da sociedade vista como o seu escravo perene. Tal desencontro é difícil de se enxergar, porque os donos do estado são, como dizia com precisão Raymundo Faoro, os donos do poder. São sócios e parentes legais e “políticos” de uma ordem pública cujos administradores exploram a sociedade. Neste sentido, o Estado brasileiro jamais deixou de ser aristocrático e seus mandões escravocratas – com uma ou duas exceções – recriaram fidalguias (ou “panelinhas” – hoje gabinetes) em seus governos.
Com nossos ‘hermanos’ latino-americanos constituímos um exemplo histórico excepcional de construções sociais, nas quais o maior explorador do trabalho produzido pela sociedade não é apenas o capital, mas o Estado Nacional, com seus infindáveis velhos e novíssimos ministérios, conselhos, comissões, delegados, diretores, fiscais e representantes que – com a protocolar da devida vênia – representam muito mais os seus interesses particulares do que as demandas universais do País.
No Brasil, a luta de classes é uma luta de quem vai assumir cargos públicos legitimamente (renunciando sua autonomia burocrática ou não) em confronto tenaz com seus hiperprivilégios.
O antropólogo americano Anthony Leeds, pioneiro no estudo das favelas cariocas, deu uma contribuição importante e incomoda quando escreveu um ensaio mencionando que os membros da elite brasileira eram todos “cabides de emprego” – algo que até hoje ocorre com os “doutores” que, entre nós, precisam de múltiplos empregos para manter o nível de vida que aspiram. Daí, sem dúvida o projeto de ser funcionário público, pois o concurso abole o contrato e o emprego não é sinônimo de trabalho. Muito pelo contrário, ele é, na maioria dos casos, a sua negação.
As olvidadas malas de dinheiro determinantes para eleger Jair Bolsonaro serve como um “mito” da nossa incapacidade de nos enxergarmos com um mínimo de sinceridade.
Adicione-se a isso os 4 milhões de cidadãos que não tomaram a segunda dose da vacina, evidentemente empenhados na campanha antivacina do presidente motociclista. Nisso não há, como revela a práxis errática do presidente, nenhuma máscara. Há apenas o flerte com a morte – esta inegável índole do bolsonarismo.
Quem já esteve grávida sabe que esse é um estado de sublimação extrema, sobretudo quando ele é fruto de uma escolha da mulher. A centelha de uma revolução que começa imperceptível, e que no espaço de 40 semanas (aproximadamente) toma todo o ventre, transforma um corpo inteiro, para que outro corpo possa nascer. E tamanha transformação é acompanhada pelo enfrentamento de muitos medos. Alguns que nem sabíamos que existiam, outros que estavam escondidos há muito tempo, e que imaginávamos ser apenas lembrança.
A morte é algo que ganha outra dimensão para as grávidas. Não só porque todo parto é um renascimento – e, por isso, é também um tipo de morte –, mas porque sabemos não estar mais sozinhas. Sabemos que a vida, aquela vida guardada no útero, depende de nós.
Mas esse "nós" não é uma condição equânime entre as grávidas. Porque neste "nós" está aquilo que somos: o que comemos, onde moramos, nossa cor de pele, nossa classe social. E o que testemunhamos nas últimas semanas é que até mesmo a gravidez sucumbe ao racismo.
Kathlen Romeu era uma jovem mulher negra e grávida que morreu em decorrência da ação do Estado brasileiro. Não, ela não foi vítima de violência obstétrica ou de negligência médica na hora do parto. Ela não pôde parir porque foi morta em decorrência de uma ação policial que ceifou sua vida e a do filho que carregava no ventre. Um tipo de violência que não tem nome, para a qual não tem dor que dê conta nem indignação que baste.
Segundo levantamento da plataforma de dados Fogo Cruzado, 15 grávidas foram baleadas na Região Metropolitana do Rio de Janeiro desde 2017, quatro delas em meio a ações policiais, e oito morreram. Houve ainda dez bebês baleados quando ainda estavam nos ventres de suas mães, e só um deles sobreviveu.
As ações policiais que atingiram Kathlen Romeu e outras mulheres grávidas obviamente não as tinham como vítimas potenciais. Tampouco se preocuparam em evitar suas mortes. Viraram estatística. Daquelas tristes, que dão um nó na garganta e que podem causar algum tipo de constrangimento dentre os responsáveis pela segurança pública no Brasil – mas muitas vezes, nem isso.
Afinal de contas, eram mulheres, e provavelmente muitas delas eram negras. As mesmas que recebem menos anestesia na hora do parto, ou que têm um pré-natal menos criterioso, pois são tidas como "boas parideiras", "mulheres de ancas largas" que aguentam a dor do parto e todas as demais. Argumentos ao mesmo tempo infundados e amplamente difundidos por uma ideologia falaciosa que acredita na existência de raças humanas e da desigualdade biológica entre elas.
Só que o racismo não mata só uma vez. Ele mata duas, às vezes três vezes a mesma pessoa. Mata quando tira a vida, mata quando esfrega na cara que a vida tirada não importa. E mata quando tenta lucrar com essa morte.
O racismo foi implacável com Kathlen Romeu, uma mulher negra do Rio de Janeiro e que circulava em espaços destinados às classes dominantes. Não bastou matá-la com uma "bala perdida" quando ela ia visitar sua família numa comunidade na zona norte da cidade. Transformou sua morte num código de venda da loja em que ela trabalhava, sob o pretexto de que 3,5% do valor das peças compradas iriam para a família de Kathlen (o mesmo percentual que ela ganhava de comissão). Isso mesmo que você leu: a morte da Kathlen viralizou nas redes sociais, e a marca para a qual ela trabalhava achou que poderia unir o útil ao agradável, fazendo uma "boa ação" ao mesmo tempo que, literalmente, lucrava com a morte de uma mulher grávida.
Para uma historiadora, é impossível não traçar um paralelo entre a ação de marketing dessa empresa e todo o embate político que esteve por trás da Lei do Ventre Livre – que em 2021 ano completa 150 anos. A lei, aprovada em setembro de 1871, representou um verdadeiro divisor de águas na luta abolicionista brasileira. Dentre os ganhos, estava a definição de que, a partir daquela data, os filhos e filhas das mulheres escravizadas estariam livres. Com uma condição: a liberdade do ventre só ocorreria depois que o proprietário da mãe fosse indenizado.
Essa compensação poderia ser feita de duas formas: ou a escravizada pagava 600$000 réis, ou seu filho e/ou filha teria que trabalhar como escravizado até os 21 anos de idade. A liberdade estava garantida, contanto que os proprietários ainda pudessem lucrar. Uma lei emancipacionista, mas que assegurava uma sobrevida de 50 a 60 anos para a escravidão. Bem a cara da nossa elite escravocrata e do Brasil de hoje, que não soube e não quis rever seu passado escravista.
Ynaê Lopes dos Santos, Mestre e Doutora em História Social pela USP, professora de História das Américas na UFF e autora dos livros "Além da Senzala. Arranjos Escravos de Moradia no Rio de Janeiro" (Hucitec 2010), 'História da África e do Brasil Afrodescendente" (Pallas, 2017)
“Felizes os que constroem a paz, pois serão chamados filhos de Deus” (Mateus 5,9), bradou Jesus Cristo no Discurso da Montanha, na Palestina, colônia com povo escravizado e explorado pelo Imperialismo Romano. Vivemos em uma Casa Comum, onde tudo está interconectado com tudo. Sendo assim, não há espaço para neutralidade e omissão, pois toda “postura neutra e de omissão” se torna, na prática, cumplicidade. Todo analfabeto político, que elege os piores políticos, não é apenas omisso diante das injustiças que os podres políticos causam ao não governar para o bem comum, mas para privilegiar aliados da classe dominante. Vejamos alguns exemplos!
Na Zona da Mata Mineira, na cidade de Tombos, MG, que tem oito mil habitantes, em tempos de pandemia da covid-19, já com 21 pessoas mortas, o prefeito Tiago Pedrosa Lazarone Dalpério (PP – Partido Progressista), assinou o Decreto Municipal N° 125/2021, de 20 de maio de 2021, desapropriando um terreno de propriedade da Associação dos Pequenos Agricultores e Trabalhadores Rurais de Tombos (APAT), terreno vendido para oito famílias que adquiriram lotes, onde algumas estão construindo, outras já estão residindo, além de ter ali uma plantação com diversas hortaliças, mandioca e abóbora que ajudam nas finanças de uma família que faz uso da terra desenvolvendo atividade de Agricultura Familiar. Agora todos foram pegos de surpresa pelo Decreto de desapropriação dos terrenos das oito famílias. O motivo aparente apresentado pelo prefeito, ao desapropriar, é que precisa do terreno de 4.600 metros quadrados (quase ½ hectare, ½ campo de futebol) para fazer um canil, “um centro de zoonose para cães”. Entretanto, é de conhecimento de todos/as que a Prefeitura de Tombos dispõe de vários terrenos, alguns em situação de abandono, onde pode ser construído um canil sem nenhum custo com indenização, para cuidar dos animais que não têm culpa por essa atitude injusta e perseguidora contra os trabalhadores e trabalhadoras rurais. O terreno e as construções das oito famílias valem mais de um milhão de reais. No entanto, no decreto do prefeito foi avaliado em apenas 80 mil reais, ou seja, menos de 7% do valor real. Além do valor econômico das oito pequenas propriedades, há valor de memórias de anos de luta, dignidade e respeito ao povo Tombense, tudo isso sendo violado e pisado nesta decisão absurda do prefeito.
Em Sete Lagoas, MG, com 242 mil habitantes, já com mais de 540 mortos pelo genocídio coordenado pelo desgoverno federal, há um déficit habitacional acima de 15 mil moradias, uma tremenda desigualdade social na cidade. Em 17 maio de 2020, há mais de um ano, cerca de 200 famílias ocuparam um terreno da prefeitura de Sete Lagoas, terreno que estava abandonado há décadas, sem cumprir sua função social. O atual prefeito de Sete Lagoas, Duílio de Castro (do Partido Patriota), durante a campanha eleitoral, visitou a Ocupação Cidade de Deus e prometeu para as famílias que não iria requerer reintegração de posse, que iria regularizar fundiariamente a permanência das famílias na área ocupada. Fez isso para ganhar votos. Entretanto, na prática, o prefeito requereu judicialmente a reintegração de posse, alegando que “é área verde”, o que não é verdade. A juíza da Vara da Fazenda Pública e Autarquias da Comarca de Sete Lagoas, Wstânia Barbosa Gonçalves, determinou liminar de reintegração de posse, mandando a prefeitura arrumar abrigo provisório para as famílias. As famílias têm direito à moradia permanente e adequada e não apenas a “abrigo provisório”. A prefeitura de Sete Lagoas está fazendo vistas grossas com a invasão de áreas ambientais por famílias ricas. Para beneficiar famílias ricas, a prefeitura desafetou um terreno que era Área Ambiental para colocar como preferencialmente para habitação, ao lado do shopping, próximo da Serra Santa Helena. Esta gravíssima injustiça social acontece em Sete Lagoas, enquanto o prefeito já colocou à venda mais de 100 terrenos da prefeitura e já anunciou que pretende vender para uma construtora o terreno onde estão as 100 famílias da Ocupação Cidade de Deus. Poderíamos citar muitos outros exemplos de injustiças que estão sendo praticadas por prefeitos, governadores, antipresidente etc.
A CPI[2] da covid-19 no Senado Federal já concluiu que a política genocida do antipresidente e do desgoverno federal, com a cumplicidade de 70% dos deputados/as e senadores/as, parte do Supremo Tribunal Federal e parte da mídia, é responsável por mais de 400 mil mortes que poderiam ter sido evitadas, caso o (des)governo Federal tivesse comprado vacina para os 213 milhões de brasileiros/as, no final de 2020, e não tivesse implementado politica negacionista com falsos remédios e sempre desdenhando da ciência e das orientações da Organização Mundial da Saúde (OMS). Trata-se de uma política para matar os mais enfraquecidos, uma eugenia não declarada. Pesquisas comprovam que o número de mortos pela covid-19 foi muito maior nos estados e municípios (des)governados por bolsonaristas (políticos do centrão, da direita e extrema direita). A todos esses dedicamos a profecia do profeta Isaías, que, com ira santa, exorta: “Ai daqueles que fazem decretos iníquos e daqueles que escrevem apressadamente sentenças de opressão, para negar a justiça ao fraco e fraudar o direito dos pobres do meu povo, para fazer das viúvas a sua presa e despojar os órfãos” (Isaías 10, 1-2).
Todos os/as eleitores/as têm responsabilidade sobre as ações políticas dos seus políticos eleitos. Óbvio que as lideranças, sejam elas religiosas ou não, a mídia e todos que influenciam o povo durante a campanha eleitoral são os primeiros e maiores (ir)responsáveis. Errar é humano, mas permanecer no erro é mais do que burrice, é se tornar cúmplice dos políticos opressores. E não basta arrepender por ter votado errado e chegar na próxima eleição votar em nomes diferentes, mas opressores como os anteriores. A história das eleições demonstra que os políticos do centrão, da direita e da extrema direita (PSL, NOVO, Democratas, Progressistas, PTB, PSD, PMDB, PL, PSDB, PSC, Podemos, PRTB, PMB etc) governam contra o povo, contra o meio ambiente e a favor dos grandes empresários e capitalistas. Os partidos e políticos de esquerda ou de centro-esquerda (UP, PCO, PSTU, PCB, PSOL, PT, PCdoB, PSB, REDE, PDT etc) não são perfeitos, mas implementam políticas sociais que são vitais para assegurar algum nível de respeito à dignidade humana e aos direitos sociais garantidos pela Constituição Federal. O fato é que voto não tem preço, tem consequências! “Somos seres políticos”, já dizia o filósofo Aristóteles. Ingenuidade dizer: “Sou apolítico. Não gosto de política. Sou neutro.” Errado dizer “todo político é corrupto”. Há, sim, uma minoria de políticos que são éticos e tentam governar para o bem comum. Todos nós fazemos Política o tempo todo. Política é como respiração. Sem respiração, morremos. Política refere-se ao exercício de alguma forma de poder, como nos ensina Bertold Brecht em “O Analfabeto Político”. A política, como vocação, é a mais nobre das atividades; como profissão, a mais vil.
A história da humanidade mostra muitos povos que foram seduzidos por “espinheiros” que, com mil artimanhas, acabaram sendo eleitos e exerceram o poder oprimindo, violentando e explorando o povo. Por exemplo, o imperador Nero se deleitava em jogos no Coliseu enquanto incendiava Roma, a capital do império; Benito Mussolini, eleito pelo povo, se tornou o criador do fascismo e um ditador; Adolf Hitler, também aclamado pelo povo diante do seu populismo, se tornou nazista contumaz e mandou matar em campos de concentração milhões de judeus, comunistas, ciganos, homossexuais etc. A história mostra também que todos os ‘espinheiros’ eleitos usam e abusam do nome de Deus e dizem defender os “valores da família”, mas na prática colocam “a morte acima de tudo” e arrasam com as famílias e todo o povo de mil formas.
Atribuído a Bertolt Brecht, o texto “O Analfabeto Político” mostra as consequências que o analfabeto político causa: “O pior analfabeto é o analfabeto político. Ele não ouve, não fala, nem participa dos acontecimentos políticos. Ele não sabe que o custo de vida, o preço do feijão, do peixe, da farinha, do aluguel, do sapato e do remédio dependem das decisões políticas. O analfabeto político é tão burro que se orgulha e estufa o peito dizendo que odeia a política. Não sabe o imbecil que, da sua ignorância política, nasce a prostituta, o menor abandonado e o pior de todos os bandidos, que é o político vigarista, pilantra, corrupto e lacaio dos exploradores do povo.” Nascem também os políticos fascistas e genocidas. Por isso, os analfabetos políticos são cúmplices das políticas genocidas em curso no Brasil. Convertam-se antes que seja tarde demais!
Notas:
[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente da CPT, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH e de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG. E-
[2] Comissão Parlamentar de Inquérito.