Quem já esteve grávida sabe que esse é um estado de sublimação extrema, sobretudo quando ele é fruto de uma escolha da mulher. A centelha de uma revolução que começa imperceptível, e que no espaço de 40 semanas (aproximadamente) toma todo o ventre, transforma um corpo inteiro, para que outro corpo possa nascer. E tamanha transformação é acompanhada pelo enfrentamento de muitos medos. Alguns que nem sabíamos que existiam, outros que estavam escondidos há muito tempo, e que imaginávamos ser apenas lembrança.
A morte é algo que ganha outra dimensão para as grávidas. Não só porque todo parto é um renascimento – e, por isso, é também um tipo de morte –, mas porque sabemos não estar mais sozinhas. Sabemos que a vida, aquela vida guardada no útero, depende de nós.
Mas esse "nós" não é uma condição equânime entre as grávidas. Porque neste "nós" está aquilo que somos: o que comemos, onde moramos, nossa cor de pele, nossa classe social. E o que testemunhamos nas últimas semanas é que até mesmo a gravidez sucumbe ao racismo.
Kathlen Romeu era uma jovem mulher negra e grávida que morreu em decorrência da ação do Estado brasileiro. Não, ela não foi vítima de violência obstétrica ou de negligência médica na hora do parto. Ela não pôde parir porque foi morta em decorrência de uma ação policial que ceifou sua vida e a do filho que carregava no ventre. Um tipo de violência que não tem nome, para a qual não tem dor que dê conta nem indignação que baste.
Segundo levantamento da plataforma de dados Fogo Cruzado, 15 grávidas foram baleadas na Região Metropolitana do Rio de Janeiro desde 2017, quatro delas em meio a ações policiais, e oito morreram. Houve ainda dez bebês baleados quando ainda estavam nos ventres de suas mães, e só um deles sobreviveu.
As ações policiais que atingiram Kathlen Romeu e outras mulheres grávidas obviamente não as tinham como vítimas potenciais. Tampouco se preocuparam em evitar suas mortes. Viraram estatística. Daquelas tristes, que dão um nó na garganta e que podem causar algum tipo de constrangimento dentre os responsáveis pela segurança pública no Brasil – mas muitas vezes, nem isso.
Afinal de contas, eram mulheres, e provavelmente muitas delas eram negras. As mesmas que recebem menos anestesia na hora do parto, ou que têm um pré-natal menos criterioso, pois são tidas como "boas parideiras", "mulheres de ancas largas" que aguentam a dor do parto e todas as demais. Argumentos ao mesmo tempo infundados e amplamente difundidos por uma ideologia falaciosa que acredita na existência de raças humanas e da desigualdade biológica entre elas.
Só que o racismo não mata só uma vez. Ele mata duas, às vezes três vezes a mesma pessoa. Mata quando tira a vida, mata quando esfrega na cara que a vida tirada não importa. E mata quando tenta lucrar com essa morte.
O racismo foi implacável com Kathlen Romeu, uma mulher negra do Rio de Janeiro e que circulava em espaços destinados às classes dominantes. Não bastou matá-la com uma "bala perdida" quando ela ia visitar sua família numa comunidade na zona norte da cidade. Transformou sua morte num código de venda da loja em que ela trabalhava, sob o pretexto de que 3,5% do valor das peças compradas iriam para a família de Kathlen (o mesmo percentual que ela ganhava de comissão). Isso mesmo que você leu: a morte da Kathlen viralizou nas redes sociais, e a marca para a qual ela trabalhava achou que poderia unir o útil ao agradável, fazendo uma "boa ação" ao mesmo tempo que, literalmente, lucrava com a morte de uma mulher grávida.
Para uma historiadora, é impossível não traçar um paralelo entre a ação de marketing dessa empresa e todo o embate político que esteve por trás da Lei do Ventre Livre – que em 2021 ano completa 150 anos. A lei, aprovada em setembro de 1871, representou um verdadeiro divisor de águas na luta abolicionista brasileira. Dentre os ganhos, estava a definição de que, a partir daquela data, os filhos e filhas das mulheres escravizadas estariam livres. Com uma condição: a liberdade do ventre só ocorreria depois que o proprietário da mãe fosse indenizado.
Essa compensação poderia ser feita de duas formas: ou a escravizada pagava 600$000 réis, ou seu filho e/ou filha teria que trabalhar como escravizado até os 21 anos de idade. A liberdade estava garantida, contanto que os proprietários ainda pudessem lucrar. Uma lei emancipacionista, mas que assegurava uma sobrevida de 50 a 60 anos para a escravidão. Bem a cara da nossa elite escravocrata e do Brasil de hoje, que não soube e não quis rever seu passado escravista.
Ynaê Lopes dos Santos, Mestre e Doutora em História Social pela USP, professora de História das Américas na UFF e autora dos livros "Além da Senzala. Arranjos Escravos de Moradia no Rio de Janeiro" (Hucitec 2010), 'História da África e do Brasil Afrodescendente" (Pallas, 2017)
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