segunda-feira, 10 de agosto de 2020

A reeleição e a arte de tocar a vida sobre a morte

“Vamos tocar a vida e buscar uma maneira de se safar desse problema”, disse o presidente Jair Bolsonaro, depois de mencionar as quase 100 mil mortes confirmadas até a noite de quinta-feira. Além de agredir o idioma com aquele pronome “se”, ele voltou a exibir uma caixinha de cloroquina e culpou governadores e prefeitos pelo aumento do desemprego. Não especulou sobre quantas pessoas mais teriam morrido se tivesse havido menor empenho no distanciamento social. Disse lamentar as mortes e talvez alguém tenha acreditado nisso. “Tocar a vida”, no caso de Bolsonaro, significa retomar a atividade sem levar em conta o risco sanitário. Durante mais de um ano ele havia ignorado o mau estado da economia, deixando o assunto para seu “posto Ipiranga”. Terá havido uma súbita iluminação, talvez causada por algum vírus ainda desconhecido?

Cuidar da vida significa também cuidar da reeleição. Mortos são excluídos do colégio eleitoral, pelo menos quando a lei prevalece. “Não sou coveiro”, respondeu o presidente ao ser confrontado, numa entrevista, com a mortandade causada pela pandemia. “Empatia”, palavra muito repetida nos últimos meses, parece continuar fora do vocabulário presidencial. Não faltou atenção, no entanto, a negócios e votos.

Políticas emergenciais foram implantadas em dezenas de países, nos últimos meses, para atenuar os efeitos da pandemia. Centenas de bilhões de dólares foram rapidamente canalizados no mundo rico para ações de saúde, apoio às empresas, defesa do emprego e socorro aos pobres. Planos mais modestos foram adotados nas economias emergentes e em desenvolvimento.

Nem os países mais pobres ficaram sem proteção. O Fundo Monetário Internacional (FMI) mobilizou cerca de 1 trilhão de dólares para ajuda. Em pouco tempo foram aprovados desembolsos para cerca de uma centena de países. Parte desses empréstimos provavelmente nunca será quitada, mas isso é parte do jogo. Em todos os casos a ajuda foi vinculada a ações de saúde e de sustentação econômica.


As medidas aplicadas no Brasil são parecidas, em pontos essenciais, com aquelas encontradas em muitos outros países. De modo geral, houve estímulos ao crédito e aumento do gasto público. Esse aumento foi combinado, em alguns casos, com alívio temporário de impostos. Um levantamento dessas políticas foi divulgado há semanas pela OCDE, a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico.

A maioria das pessoas, no Brasil e provavelmente em muitos outros países, desconhece esses fatos. Ignora, da mesma forma, o sentido econômico do auxílio emergencial. Essa ajuda é vital para as famílias, obviamente, mas é também muito importante para as empresas, pequenas, médias e grandes, produtoras e distribuidoras de bens essenciais.

A estratégia econômica torna-se interpretável por milhões de pessoas como ato de bondade. Isso facilita faturar politicamente, como se fosse um gesto humanitário, um ato explicável pela mais prosaica racionalidade econômica. Repetido por alguns meses, um auxílio de R$ 600 pode converter-se em fonte de gratidão e de votos. Erros cometidos no combate à doença – e até agravados pelo desprezo à vida de milhares – tornam-se irrelevantes ou invisíveis. Lucra, portanto, quem se ocupa prioritariamente da reeleição em 2022.

Muitos talvez nem tenham percebido os erros e as falhas de liderança, embora possam ter ocasionado a morte de pessoas próximas. Nos Estados Unidos e na Europa Ocidental, onde os programas de ajuda emergencial foram muito amplos, erros no combate à pandemia saíram menos baratos para os chefes de governo. Serão menos dotados de gratidão os europeus e americanos?

Especialmente notável, no caso brasileiro, é o repentino interesse do presidente pela economia e pela sorte dos trabalhadores. Esse interesse, nunca manifestado nos primeiros 14 ou 15 meses de mandato, só apareceu depois de reconhecida a presença do novo coronavírus.

Em 2019 a economia cresceu 1,1%, menos que em qualquer dos dois anos anteriores, mas o assunto jamais pareceu preocupar o presidente da República. No trimestre móvel encerrado em fevereiro os desempregados eram 11,6% da força de trabalho, mais que o dobro da média da OCDE, e a aparente indiferença permaneceu. Ainda em fevereiro, a produção industrial, embora 0,5% maior que a do mês anterior, continuou 0,4% inferior à de um ano antes e 16,6% abaixo do recorde de maio de 2011, no primeiro mandato da presidente Dilma Rousseff.

A crise industrial vem de longe e se agravou nos últimos oito anos, mas permanece invisível na agenda presidencial e na da equipe econômica. Não se resolverá esta crise com a mera redução de encargos sobre a folha de salários e com a eliminação de direitos trabalhistas, bandeiras do ministro da Economia. Sem cuidar de temas essenciais para a prosperidade do País, o presidente, centrado em objetivos pessoais, pressiona pela retomada imediata dos negócios, mesmo com o risco de mais mortes. Na sua contabilidade, esse deve ser um preço razoável pela reeleição. O lema é tocar a vida sobre os mortos.

Fúnebre marcha dos 100 mil

Desde o início da quarentena escrevo um diário. Nele, apesar da pressa, incorreções e algumas bobagens, analiso os fatos desses meses de coronavírus.

Não sinto tanta necessidade de escrever sobre isto, mais do que faço diariamente. Mas, no momento em que alcançamos a marca de 100 mil mortos, é importante dizer algo fora dos limites. O número redondo lembra-me dos anos 60, quando marchávamos orgulhosamente contra o governo militar.

Os 100 mil de hoje representam também um protesto, só que desta vez contra o descaso e retumbante fracasso de nossa política nacional contra a Covid-19.

O ideal seria sairmos às ruas, os sobreviventes, para protestar por eles. A natureza da pandemia nos obrigou a uma quarentena. Escrevi no diário algumas vezes como isso não apenas entorpeceu nossos músculos, mas mudou a maneira como nos vemos.

O país se transformou num imenso centro espírita, e nós baixamos nos computadores para sessões de conversa que chamamos de lives, mas poderiam também ser chamadas de deads.



Parece que muitos de nós vivem numa parte mal iluminada da eternidade, aparecemos para a conversa, desligamos o aparelho e evaporamos. Não se acaba mais em pizza como antigamente, quer dizer, num descontraído jantar após a reunião, o debate ou conferência.

Leio no livro de Churchill que os piores momentos de nossa vida são aqueles que não aconteceram, aqueles que nos mantiveram preocupados, levaram nosso sono e nunca se apresentaram de fato em nossas vidas.

Isso corresponde ao que diz um personagem de Borges diante da morte: é menos duro enfrentar um perigo do que imaginá-lo e aguardá-lo durante muito tempo.

A Covid-19, nesse sentido, é a pior doença que nunca tive. Certamente há outras mais graves e devastadoras, mas nunca perdi um minuto preocupado com elas.

Os índios no Amapá a consideram uma espécie de doença espiritual, por causa da invisibilidade do vírus. Mas nem por isso deixam de temê-la.

Desde o princípio, luta-se contra a negação do governo. Era apenas uma gripezinha e afirmávamos que, ao contrário, era uma perigosa pandemia. Surgiram os mortos, e o governo achou que seu número estava superdimensionado, diante de todas as evidências de que havia subnotificacão.

Um dos luminares do governo calculou que morreram apenas 800 pessoas e continuou duvidando dos fatos, mesmo quando os mortos já eram 80 mil.

Duvidaram dos caixões, que para eles estavam vazios ou cheios de pedras. Duvidaram do número de covas, vetaram uma dezena de artigos na lei de proteção aos povos indígenas.

Seguimos fazendo lives como ectoplasmas que reaparecem no território virtual para puxar a perna dos vivos que, sem máscara, montados a cavalo, celebravam seu escandaloso idílio com a morte. E daí?

Os tribunais de dentro e de fora do Brasil terão material por muito tempo. A suposição de que essas coisas acontecem e são esquecidas é falsa. Uma política de negação que produziu milhares de mortos, índios, grávidas, é algo que ficará na história e acabará desabando sobre seus autores, por mais velhos e combalidos que estejam no momento em que forem alcançados.

Vivemos num país de curandeiros. Bolsonaro passa seus dias mostrando a cloroquina para todos os seres humanos e animais que encontra pela frente. O ministro da Ciência e Tecnologia gasta 8 milhões para pesquisar um vermífugo chamado Annita, e até audiências foram anunciadas para discutir o poder do alho cru.

E se você perde a paciência, elegância, e pergunta: e naquele lugar, não vai nada? Eles responderão com tranquilidade:

— Algumas doses de ozônio e um cateter bem fino.

Aos poucos vamos saindo da toca, meio ressabiados, contentes em ver quem sobreviveu. Mas a maneira como tratamos a pandemia, as condições de desigualdade em que a vivemos, uns com água e esgoto, outros não, uns com casa confortável, outros espremidos nos barracos, tudo isso coloca em questão o próprio sentido da sobrevivência.

Apesar da solidariedade, do desprendimento dos trabalhadores em saúde, a resposta brasileira à pandemia nos convida a repensar o país.

E responder em conjunto a essa fúnebre marcha dos 100 mil.

Vegetarianos não praticantes

Jonathan Safran Foer escreveu dois dos romances mais inteligentes, surpreendentes e divertidos que li nos últimos anos: “Tudo se ilumina” (Rocco, 2002) e “Extremamente alto e incrivelmente perto” (Rocco, 2005). Depois disso, publicou um livro de não ficção, “Comer animais” (Rocco, 2009), sobre a crueldade da indústria alimentar e as virtudes do vegetarianismo. Recentemente, surgiu no Brasil mais um título de Jonathan: “Nós somos o clima — Salvar o planeta começa no café da manhã” (Rocco, 2020), no qual o escritor americano regressa à sua obsessão preferida: a comida. A tese de Jonathan é de que o mundo tal como o conhecemos está à beira do colapso devido ao aquecimento global, e de que esta tragédia tem sobretudo a ver com a agroindústria.

Sem surpresa, há diversas referências ao Brasil e a Jair Bolsonaro. Jonathan lembra que Bolsonaro fez campanha por um plano para explorar extensões anteriormente protegidas da Amazônia, acrescentando que tal política libertará 13,2 gigatoneladas de carbono, mais do que o dobro das emissões totais dos Estados Unidos. O agronegócio é responsável, segundo Jonathan, por 91% da destruição da Amazônia.


Para o romancista americano, bastaria deixarmos de comer carne e produtos lácteos ao almoço e café da manhã para impedir uma catástrofe maior. Jonathan, portanto, não está a exigir à Humanidade que se converta ao vegetarianismo puro e duro. Pede apenas uma redução no consumo de carne. Não me parece um sacrifício insuportável — é apenas uma questão de bom senso.

Estudei agronomia e silvicultura no Instituto Superior de Agronomia, em Lisboa, há mais de 30 anos. Lembro-me de um professor que já nessa época defendia teses semelhantes às de Jonathan, demonstrando, através de cálculos muito simples, o absurdo energético que representa a criação de gado bovino. Também ele achava que a pecuária industrial iria destruir o planeta. Desde essa época que simpatizo com os ideais vegetarianos, embora, como Jonathan, não esteja disposto a abandonar por completo o consumo de carne. Sou, digamos assim, um vegetariano não praticante. 

O livro de Jonathan, além de discutir questões urgentes, tem o mérito adicional de ser escrito por um excepcional romancista. As pequenas histórias que servem a Jonathan para reforçar as suas ideias, são preciosas peças literárias que, só por si, já justificariam a compra do livro.

A causa vegetariana tem no romancista sul-africano J. M. Coetzee, Prêmio Nobel de Literatura em 2003, outro apaixonado defensor. Coetzee chegou a criar uma personagem, a escritora australiana Elizabeth Costello, que aparece pela primeira vez no romance “A Vida dos animais” (1999), e depois em “Elizabeth Costello” (2002), a qual percorre o mundo palestrando contra a crueldade dos homens para com os outros animais. Costello é uma vegetariana radical, mas com mais sentido de humor do que Coetzee, e isso salva-a. Não sendo os títulos mais interessantes do escritor sul-africano são, ainda assim, bastante bons e, de certa forma, completam os dois ensaios de Jonathan.

O livro de Jonathan, além de discutir questões urgentes, tem o mérito adicional de ser escrito por um excepcional romancista. As pequenas histórias que servem a Jonathan para reforçar as suas ideias, são preciosas peças literárias que, só por si, já justificariam a compra do livro.

A causa vegetariana tem no romancista sul-africano J. M. Coetzee, Prêmio Nobel de Literatura em 2003, outro apaixonado defensor. Coetzee chegou a criar uma personagem, a escritora australiana Elizabeth Costello, que aparece pela primeira vez no romance “A Vida dos animais” (1999), e depois em “Elizabeth Costello” (2002), a qual percorre o mundo palestrando contra a crueldade dos homens para com os outros animais. Costello é uma vegetariana radical, mas com mais sentido de humor do que Coetzee, e isso salva-a. Não sendo os títulos mais interessantes do escritor sul-africano são, ainda assim, bastante bons e, de certa forma, completam os dois ensaios de Jonathan.

Gosto de escritores com causas. Um escritor sem causas não produz literatura, mas entretenimento. Nada contra o entretenimento. Mas nos dias que correm precisamos mesmo é de literatura. 
José Eduardo Agualusa"

Pra frente, Brasil...

 

A nova direita

Nasce e começa a ganhar volume no Brasil a nova direita, uma das estacas do bolsonarismo. O que vem a ser essa tendência, quem a integra e qual a possibilidade de se transformar em força decisiva no arco partidário? Para começar, este país não é seu principal habitat. É o nome de um partido criado em 1918 em Israel, expande-se pela Europa e finca raízes nos Estados Unidos e na América Latina, incorporando fenômenos como autoritarismo, nacionalismo, conservadorismo, populismo e xenofobia, principais eixos de sua identidade.

Por aqui, é diferente da direita clássica que amparou o golpe de 64, apesar de agregar remanescentes, porém sem se comprometer com golpes ou ditadura militar. Há quem pense nisso, mas a nova direita se espelha no conservadorismo, com traços de populismo e autoritarismo. Poderia ser adotada tanto por um ex-integrante das Forças Armadas – Jair Bolsonaro – como por um civil. O importante é o que, não o quem.



Nos Estados Unidos e na Europa, agrupa a defesa nacionalista de produtores rurais e outros segmentos que se sentem prejudicados pela invasão de “alienígenas”, outros centros mundiais de produção barata, como a China, imigrantes que desformam culturas locais com sua forma de pensar e de viver. Nos EUA, o conservador Donald Trump assumiu o ideário. Na Europa, alguns países se retraem ante o fracasso de governantes de esquerda e os efeitos deletérios da globalização.

Na Hungria, Victor Orban ameaça com uma cerca de arame farpado para evitá-los. A islamofobia ganha corpo a partir dos conflitos do Oriente Médio. Na Alemanha, três partidos nazifascistas se formaram. A crise econômica mundial aponta para essa direita, como se fosse o caminho adequado. Ao mesmo tempo, desenvolve-se o ideário da alternância de poder, oxigênio para vitaminar regimes.

No Brasil observamos uma insatisfação desde o topo da pirâmide social até as margens, que ainda elegem governantes segundo o custo/benefício. No meio, estão contingentes que exigem mudança, saturados da carga de impostos, dos serviços precários, da corrupção deslavada, do dinheiro para alguns e escassez para os demais. A nova direita conta ainda com a adesão de micros e pequenos produtores, comerciantes e prestadores de serviço oprimidos por tributos e burocracia.

Representantes da velha direita, saudosos do autoritarismo, encontram no capitão uma janela. Grande parcela prefere a defesa da ordem, da disciplina, do direito de propriedade, contra a baderna e a devastação.

Por aí se estende a nova direita e o posicionamento contra o “status quo”. Seu sucesso dependerá de circunstâncias como alavancagem da economia, melhoria dos serviços públicos – saúde e educação –, atenuação da violência. Fato é que a índole brasileira tende a se afastar dos extremos e a optar pela conciliação, harmonia e paz social. Logo, uma jornada em direção ao meio se apresenta como a melhor solução. Não somos um país beligerante. In médium virtus, a virtude está no meio.

O amanhã poderá nascer com um sol brilhante ou nuvens plúmbeas. Na escuridão, veremos a polarização dos extremos. Na claridade, nossa democracia será revigorada. E mais, a angústia trazida pela pandemia precisa ser sair de nossas mentes. Esse peso terá efeito na balança de 15 de novembro.

Consciência do inconsciente

Existe um inconsciente coletivo, ou melhor, um consciente coletivo, de que a ditadura no Brasil foi boa. Isso foi construído por uma narrativa baseada em fontes militares

Eduardo Reina, autor do livro "Cativeiro sem fim: as histórias dos bebês, crianças e adolescentes sequestrados pela ditadura militar no Brasil"

Vergonha amazônica

Defender-se acusando os críticos por danos idênticos ou piores dos que os seus é arma costumeira de quem não tem explicação para erros deliberados e escandalosos. Na política, o “todo mundo faz” é usual para amenizar delitos como caixa 2 ou a tal da “rachadinha”, apelido que ameniza a apropriação indébita de dinheiro público. Age-se como se o passado abonasse o crime presente e futuro.

Coube ao ministro Paulo Guedes internacionalizar esse perverso conceito. Na tentativa de se livrar das cobranças sobre a desastrosa política ambiental do governo Jair Bolsonaro no fórum promovido pelo Aspen Institute, disse entender a preocupação dos norte-americanos porque “eles desmataram suas florestas” e “mataram seus índios”. E implorou: “sejam mais amáveis como somos amáveis”.

Entre irritação e cinismo, Guedes expôs a desfaçatez do governo que integra. Pela sua perversa teoria, o mundo desenvolvido que cobra do Brasil a preservação da Amazônia e atenção aos povos indígenas não poderia fazê-lo porque, no passado, teria aniquilado florestas e nativos. Uma lógica que impediria, por exemplo, que o Brasil e outros países condenassem a escravidão por ter usado e abusado dela.

O que se quer com esse discurso? Licença para desmatar? Para dizimar índios?


No ano passado, Bolsonaro já havia desafiado europeus, com direito à gafe de trocar a Noruega pela Dinamarca ao divulgar nas suas redes sociais foto de caça de baleias. Tentativa vergonhosa de associar práticas ilegais ao país nórdico que, em retaliação ao desgoverno ambiental brasileiro, anunciara o corte do auxílio milionário ao Fundo Amazônico. Quanto ao desmate, a Europa é hoje o continente com os melhores índices de recuperação de suas matas, com 42% de cobertura florestal, boa parte resultado de mais de 50 anos de recomposição contínua.

Ao expor o país a mais um vexame internacional, Guedes o fez com requintes de crueldade para a já combalida imagem do Brasil lá fora. Um misto de reinvenção da história e mentira deslavada.

Os Estados Unidos desmataram florestas e mataram seus índios. Tentam replantar matas – hoje já refizeram cerca de 30% delas. Mas nunca conseguirão apagar da sua história o extermínio de 18 milhões de nativos.

A conta no Brasil é numericamente muito inferior, mas não menos grave: mais de 2,5 milhões de índios escravizados e mortos nos primeiros 100 anos após o desembarque de dos portugueses e outros quase 1 milhão entre 1900 e 1950. Como o Brasil prefere esconder essa catástrofe, Guedes se sentiu protegido para omiti-la.

Dados do IBGE apontam que a população indígena brasileira hoje gira em torno de 800 mil, quase metade deles aculturados. Com baixa imunidade, mais de 12 mil foram infectados e outros 240 morreram na pandemia.


Nem a tragédia da mortandade de índios nem a do desmatamento acelerado encontrarão guarita na história de governos anteriores e, muito menos, de outros países. Ou seja, além de absurdo, imoral e irresponsável, o discurso do ministro é inócuo, vazio. Só serve para aprofundar a vergonha nacional.

Não há qualquer hipótese de o governo Bolsonaro se safar da responsabilidade pelo desmatamento recorde, pela grilagem amazônica, pelas invasões de terras e apoio descarado e escancarado ao garimpo ilícito.

É patética a tentativa de defender o garimpo em terras demarcadas como direito e até reivindicação dos índios. A lavra a céu aberto, com maquinário pesado, poluindo rios e devastando a floresta, é proibida. Simples assim.

O governo quer mudar esses parâmetros. Como dificilmente conseguirá aprovar uma lei autorizando mineração em terras indígenas, estimula o liberou geral. Não à toa, os alertas de desmate amazônico atingiram números de calamidade, crescendo 34,5% nos últimos 12 meses. O resultado é Bolsonaro na veia – uma droga que faz o país retroceder décadas.

Diferentemente das canalhices políticas, como os vícios do “todo mundo faz” que acabam protegendo safadezas, a regressão na política ambiental pode não ter conserto.

Se confirmada, a rachadinha em favor do então deputado estadual e hoje senador Flávio, filho do presidente, pode ser punida, com ressarcimento aos cofres públicos e pena para os infratores. A floresta nativa abatida e incendiada para dar lugar a pasto e os veios de água poluídos pelos dejetos da mineração exigiriam esforços gigantescos para ser recompostos. Não raro, dão lugar a terrenos desérticos, imprestáveis. Mais: assim como os Estados Unidos não conseguirão jamais se purgar dos mortos do genocídio cometido contra os nativos, o Brasil não ressuscitará seus índios.

O STF parou parcialmente a política anti-indigenista de Bolsonaro. A pressão dos investidores internos e externos também tem funcionado. Mas é preciso marcação cerrada. Do contrário, não haverá desculpa capaz de impedir que os gravíssimos danos de hoje detonem o futuro.

Mary Zaidan

Militares, mensalão, Michelle e milícias

Um agregado das milícias, se não ele mesmo miliciano, pagava contas dos Bolsonaros e punha ainda mais dinheiro na conta de Michelle Bolsonaro, como mostrou a revista Crusoé nesta sexta-feira.

O senador Flávio, o filho 01, enrola-se a cada vez que fala do seu caso com Fabrício Queiroz, motorista, segurança e contato da família com pistoleiros e milicianos, elogiados em público e condecorados pelos Bolsonaros.

Parece tudo tão velho e sabido desde pelo menos 2018. Portanto, é cada vez mais impressionante que o país se acomode a uma família presidencial relacionada com o crime organizado e acusada de fazer seu pé de meia com o furto de dinheiro público à boca pequena, pois sempre foi marginal na política, sem acesso à roubança em grande escala.

Acomodar-se é a palavra a que se deve prestar atenção.

A ameaça hoje mais direta à sobrevivência política de Jair Bolsonaro vem do Supremo Tribunal Federal. Mas no conjunto do Judiciário há um jogo de morde e assopra, de sufoco e alívio. Manipula-se um cabresto para manter o presidente na raia que fica entre o golpe e o impeachment.

 


Os generais, por sua vez, não têm pudor algum de apoiar uma família presidencial associada a agregados da milícia, no mínimo, além de se juntarem às ameaças golpistas do presidente e lançarem manifestos subversivos oficiais.

Negociam eles mesmos o arreglo de Bolsonaro pai com presidiários do centrão, de que faziam troça ainda na campanha de 2018.

Agora mais abertamente do que qualquer casta da alta burocracia, buscam salários maiores, prebendas, aposentadorias gordas, boquinhas para amigos e parentes ou verbas para suas armas. Buscam também reconhecimento, iniciativa que morre mesmo antes mesmo de sair da lama das trincheiras, dados o desastre administrativo, vide o caso do almoxarifado da Saúde, e a apologia de ignorância ou de barbaridades como a tortura.

Parece agora claro que não se pode ter ilusão alguma a respeito do governo militar, do sentido do que fazem os generais do Exército e seus comandados.

Seja pela popularidade restante de Bolsonaro, seja pela possibilidade de cavar rendas, verbas e cargos, “business as usual”, o Congresso acomoda-se ao governo. A cabeça dos lava-jatistas é servida como acompanhamento desse acordão.

Causa cada vez menos escândalo a intervenção de Bolsonaro nos órgãos de controle, que começou no falecido Coaf, passou pela Polícia Federal, estabeleceu-se na Procuradoria-Geral da República e agora pode ser minada de dentro, com a renovação dos órgãos de espionagem.

Rasgou-se a fantasia grotesca de moralidade. Fizeram picadinho do lacerdismo tardio da Lava Jato, o morismo. Tão ao gosto dos Bolsonaros e Queiroz, agora faz-se um rolo a fim de dar um jeito no teto de gastos, teto que era a justificativa limpinha restante daquelas que o establishment e tantos de seus economistas deram para se associar a Bolsonaro.

O presidente precisa de um Bolsa Família para chamar de seu; parte de seus ministros e do centrão quer dinheiro para investimento em obras. Nada disso é possível sem que ao menos se abra um buraco no teto de gastos ou, muitíssimo improvável, se dê um talho imenso no salário dos servidores (“não passará!”).

É a isso que as elites brasileiras se prendem? Uma promessa fiscal precária vale uma sociedade com golpistas, milícia, rachadonas, razia no ambiente e na educação, inércia criminosa na saúde, disseminação da ignorância, de ódio, mentiras sórdidas e vexame diplomático?

Uma palavra agradecida ao governo Bolsonaro

Só quem parece satisfeita com mais de cem mil mortos, a corrupção viva por todos os cantos, é a palavra “descalabro”. Ninguém mais a amava, ninguém mais a escrevia. Ela estava entregue à sanha das traças dos dicionários, abandonada à própria infelicidade por sua decadência e som de bolero. “Descalabro” voltou.

A palavra foi reincorporada aos jornais, na tentativa de exprimir com ênfase polissílaba o estupor nacional. “Vergonha”, “pouca vergonha”, “bando de sem vergonha”, todas essas veemências da língua fracassaram. 


A pobre coitada estava no limbo vernacular, amaldiçoada pelo excesso cafona de seu alvoroço denunciatório. Pior. Carregava a necessidade constrangedora de se fazer acompanhar a cada citação por um outro escorraçado da boa escrita moderna - o infeliz do ponto de exclamação.

Breguerérrima, a dupla “descalabro!” era uma espécie de porta bandeira e mestre sala das escolas de texto ruins. Zero, nota zero. Mas, com a floresta amazônica em chamas e os terraplanistas no poder, ficou claro que para nomear o horror não havia no mercado uma palavra razoável – “negacionistas”, “milicianos” e “assassinos” soavam fracas. “Descalabro” agradeceu a lembrança. Pôs-se às ordens.

Ela parecia para sempre excomungada, junto com o ioiô da Coca-Cola e as perucas Lady, nos almanaques da nostalgia furreca. Está vivinha da silva. Humilde, diz entrar em campo para somar. Ao lado de “não é possível”, “onde vamos parar”, “genocídio” e outras expressões cúmplices do mesmo assombro, quer contar a verdadeira história do país em 2020.

A palavra era a queridinha dos editoriais udenistas da Tribuna da Imprensa (brandida num esquema saia-e-blusa, “descalabro moral”). Nunca desapareceu das páginas. De vez em quando, à sorrelfa, burlava o esquema de segurança do copydesk e dava os ares de sua antiguidade. Surgia em alguma carta de leitor que denunciava o prefeito da cidade e precedia o fecho invariável de “até quando?!”.

“Descalabro” – com o “a” tônico parecendo gritar “pega ladrão” - embute o som de safadeza larga a ser investigada. É a língua afetiva que falava vovó. Ilustra também a crença nacional de que quanto mais sílaba tiver uma palavra, melhor e inconstitucionalissimamente mais culta ela soará. O deputado barroco baiano não saía de casa sem a sua.

Pois aqui, diante dos gastos com quatro milhões de comprimidos de cloroquina, está a “descalabro” de novo. Sempre despenteada, ela põe a cabeça para fora da janela, nem aí para o que vão dizer de sua histeria. Faz a doida, na esperança de que alguém ouça a gritaria que vem do editorial e chame a autoridade competente.

Ao lado de “crime contra a humanidade”, “ignorância” e “quadrilha organizada”, ela reage como pode quando os fatos já não bastam, os cheques na conta da Michele não são suficientes, e é preciso aos observadores do país se boquiabrir com um espanto tão tradicional.

Pode ser muita semântica numa hora dessas, mas “descalabro” tem sido termômetro seguro para medir crises. Quando os mais finos redatores se lembram dela é sinal que a coisa está quedando peluda e urge deixar de lado o bom gosto exigido pelo manual de redação. Sempre foi um “J’accuse” do português ruim, uma pedrada nos vitrais do palácio. Por enquanto, infelizmente, tem a mesma eficácia curativa da cloroquina, esse imenso descalabro.