domingo, 30 de outubro de 2022

Brasil em decisão

 


Estupidez é arma, e mata

A estupidez seria má conselheira, segundo ditado português. Há quatro anos neste mesmo período, a estupidez espumava com dentes arreganhados, para quem não seguia seu pensamento infame. Fosse quem fosse, votasse até mesmo em azarão ou optasse pelo voto nulo ou a abstenção, merecia a mesma infâmia de não ser patriota. 

A demolição sistemática do país, das instituições e mesmo de órgãos de reconhecimento internacional, incrementou a estupidez nacional, agora infiltrada em outros rincões nunca antes atingidos. 

Enterrados as centenas de milhares de mortos pela Covid, não há um resquício de respeito àqueles que sofreram e morreram em nome da estupidez. Continuam milhões a espumarem o ódio sem olhar a quem. É a hora do assédio constante no melhor estilo do autoritarismo a impor-se sobre tudo e todos.

O país está atolado na mediocridade, que os "arrependidos" tanto impulsionaram, os calados deixaram pra lá e a cambada dos canalhas ainda ovaciona. 

Independente do que aconteça neste domingo, e nos dias subsequentes, há uma certeza que serve de lição: a estupidez mata e destrói uma nação sem ficar pedra sobre pedra. 

Os quatro anos de estupidez, se não houver recaída, fizeram uma estrago que não está contabilizado em moeda. Seria o de menos, estes últimos anos abalaram a estrutura social e emocional das pessoas a partir do momento que a bandeira de todos foi sequestrada pela estupidez. 

A Alemanha sabe muito bem o quanto custou para domar a estupidez nazista. O Brasil ainda precisa aprender mais sobre sobre essa face do autoritarismo que divide em torcida para 
melhor dominar.

Luiz Gadelha

Duro opositor do PT, médico torturado por Ustra declara voto em Lula

O médico Gilberto Natalini, de 70 anos, foi preso 18 vezes durante a ditadura militar. Sua primeira prisão, em 1972, foi a que mais a marcou. Foram 42 dias detido no temido Doi-Codi de São Paulo, comandado pelo oficial Carlos Alberto Brilhante Ustra, quem o recebeu naquelas instalações.

Natalini relata que foi torturado diretamente por Ustra, quem via todos esses dias. Então com 18 anos, o médico era naquele ano estudante de medicina. Levou choques elétricos nos ouvidos, que comprometeram sua audição até hoje. Gostaria de ter sido cardiologista, mas a dificuldade em ouvir as captações do estetoscópio o impediu.

Os dois – Ustra e Natalini – se reencontraram 41 anos depois, quando prestaram depoimento na Comissão Nacional da Verdade, em Brasília, em 10 de maio de 2013. O militar disse que impediu a instalação do comunismo no Brasil, que lutou contra o terrorismo e que nunca matou ou torturou alguém.

“Cumpri todas as ordens. Ordens legais. Nunca, como se diz, ocultei cadáver, cometi assassinato. Vou em frente nem que morra assim. Lutei, lutei e lutei. E tenho dito” – declarou Ustra naquele dia.

Presente no auditório, Natalini deu um testemunho antes e confirmou ter sido vítima de Ustra. A certa altura, o então presidente da comissão, Cláudio Fonteles, perguntou a Ustra uma acareção com Natalini. Ele recusou.

“Não faço acareação com terrorista”.

E se iniciou um bate-boca entre eles.

“O senhor que é bandido”.

Passados todos esses anos, Natalini, que foi do PCdoB, ajudou a fundar o PSDB. Depois, se filiou ao PV. Nunca morreu de amores, de quem é crítico ferrenho. Foi vereador por cinco mandatos e sempre de oposição a gestões petistas. Mas, agora, anunciou voto em Lula. Será a segunda vez que vota num petista. A primeira vez foi também em Lula, em 1989.

“Vou relevar tudo que fizeram para evitar o mal maior”.


O senhor anunciou agora que irá votar no Lula, partido que sempre se opôs, apesar de tudo. Qual a razão?

Sou muito crítico ao PT. Vi o PT nascer, eu era PCdoB. Tivemos uma guerra com o PT no início, que veio tomando o lugar dos comunistas. Disputou muito com a gente, do partidão. Disputa quase até física. Até João Amazonas (fundador do partido) criticou o PT. E depois aderiu. O PCdoB aderiu ao PT. Depois, saí. Fiz muita oposição na Câmara ao PT. Nunca votei no PT. Exceção em 1989, contra o Collor. Sou um crítico contundente do PT. Em 2018 anulei meu voto no segundo turno. Fiz oposição ao Haddad na Prefeitura.

O que o sr. critica no PT?

O PT não tinha o direito de fazer o que fizeram. Vieram empurrando todo mundo. Fui secretário de saúde de Diadema (SP), logo após uma gestão do PT. Para ter ideia, apagaram todos os dados dos computadores da secretaria. Simplesmente isso.

Não seria natural um ex-perseguido e torturado pela ditadura votar em Lula?

É um engano isso. Nem todos perseguidos votam no Lula. A turma da esquerda velha de guerra morreu toda de fome. O João Amazonas, tiveram que fazer vaquinha para comprar o seu caixão. Prestes, Brizola. A turma tinham muito princípio e moralidade imensa. Aquela esquerda não era demagógica. Por isso eu critico do PT. Tomou a bandeira da esquerda, só que os princípios não preservaram. Tem coisas graves do PT no trato da coisa pública.

Mas agora irá votar em Lula.

Em 1989, votei contra o Collor. Agora, vou relevar minhas críticas ao PT, que não vou esquecer jamais. Sei o que vocês fizeram no verão passado, como se diz. Estamos diante de uma ameaça brutal a democracia, que é o Bolsonaro. Eu vou me compor com essa frente democrática. Tenho pedido voto para o Lula nas redes. Só não participo de reuniões. Não sou baba ovo. Meu apoio a Lula é pela democracia, pela defesa do meio ambiente, uma causa cara para mim. Meu voto foi muito sofrido para ele conquistar.

Mas em 2018, não votou em Haddad? Bolsonaro tinha elogiado Ustra.

Em 2018, não conseguia votar em Bolsonaro por causa do Ustra. Fui torturado diretamente por ele. Choque elétrico. Me torturou em 1972, no Doi-Codi, na Oban, em São Paulo. Jamais votaria nessa direita incivilizada e cruel. No Haddad, não conseguia porque fui oposição a ele na Câmara. Mas dessa vez, não dá. Bolsonaro é truculento, armamentista. Não posso me omitir quem tem Ustra como ídolo. Está em jogo a sorte do meu país. Vou fazer um esforço enorme, passar por cima do que tenho contra o petismo e vou votar no Lula. E estou recomendando na minha família.

Pode comentar um pouco de sua perseguição e prisão na ditadura?

Fui 18 vezes preso. Na primeira vez, foram 45 dias lá no Doi-Codi. Interrogado e torturado pelo Ustra. O via todo dia. Me deu choque, ficou horas com o pedaço de pau à minha frente. Eu tinha 18 anos, era estudante de medicina. Eu nunca dei um tiro em ninguém. Nunca dei uma facada. Sou da disputa política, não da luta armada. Mas, mesmo que eu tivesse pego em armas, depois que você prende uma pessoa, a desarma e submete um ser humano adversário na cadeia não pode, pelas leis de guerra, torturar. É muito ignóbil. Ele era um expert em tortura. Depois, fui preso pelo Dops. Minha última prisão foi no governo Sarney, em 1985, após uma manifestação. Fiz o enterro do Sarney. Fiquei horas preso, mas era uma prisão mais para constrangimento. Já estava começando a abertura. Tenho 70 aos e sigo estribuchando na luta. Só vou parar quando parar de respirar.

Como foi reencontrá-lo 40 anos depois?

Não foi fácil. O enfrentei e ele se negou a fazer uma acareação. Disse que não faria acareação com terrorista. O chamei de mentiroso na sua frente e de bandido e torturador. O pessoal da Comissão da Verdade, depois do embate, me ofereceu ir num carro da Polícia Federal até o aeroporto e que um delegado me acompanhasse até entrar no avião. Dispensei. Enfrentei o Ustra quando comandante do Doi-Codi.

A tortura deixou o sr. com sequelas.

Sim. Fiquei com uma lesão auditiva, perda nos dois ouvidos. Foi choque elétrico. Ustra rodava a manivela da máquina. Um fio era chamado de pimentão, choques de 250 volts. O outro, era o pimentinha, de 100 volts. Tive cada um deles nos meus ouvidos. Uma dor indescritível. Queria ser cardiologista, mas, pelas lesões, não conseguia ouvir os sopros cardíacos com o estetoscópio. Quem tem Ustra como ídolo se afastou da raça humana.

Os evangélicos contra-atacam com ‘Messias’

Na época da ditadura militar, um censor, furibundo com alguns diálogos de uma peça teatral, convocou o autor a dar explicações. Por razões conhecidas, Shakespeare não pôde comparecer. Nestes tempos michelenescos, o afável arcebispo de São Paulo, dom Odilo Scherer, se viu obrigado a explicar por que usa vestes vermelhas. O inquisidor ouviu algo mais ou menos assim:

“É a cor dos cardeais, meu filho”, e no Twitter, dom Odilo cravou: “Conheço bastante a História. Às vezes, parece-me reviver os tempos da ascensão ao poder dos regimes totalitários, especialmente o fascismo. É preciso ter muita calma e discernimento nesta hora!”

Dom Leonardo Steiner, arcebispo de Manaus, buscou inspiração em trecho de “Irmãos Karamazov”, de Dostoiévski, para cravar sua incredulidade diante da terra arrasada pelo Bolsolão: “Quem mente a si mesmo e escuta as próprias mentiras chega ao ponto de já não poder distinguir a verdade dentro de si mesmo”.


É possível que algum eleitor de Damares ou um pastor que prega nos cultos contra os homossexuais venha a chamar os Karamazov de comunistas, mas, vá lá, é da vida: o chefe deles já disse que -5% + 4% são 9% positivos. Perdoai-o, mas com Oscar Wilde na cabeça:

“Os loucos às vezes se curam; os imbecis, nunca”.

Desde a redemocratização, pela primeira vez a Igreja Católica, trazida à vida terrena, se vê às voltas com laivos autoritários. Na ditadura militar não ocorreu; mas no regime nazista aconteceu algo semelhante às cenas de 12 de outubro. No dia de Nossa Senhora Aparecida, a milícia bolsonarista perseguiu padres em Aparecida , vaiou a homilia da missa principal, gritou palavrões e ainda fez brindes com latas de cerveja dentro da igreja.

A turba ensandecida saiu das redes sociais, incensada pelos pastores bolsonaristas, e, inspirada pelo desamor exalado por seu capitão, agora se comporta como milícia armada —e mira o contingente de fiéis católicos.

Ali pelo século IV e V, os protocristãos, perseguidos pela ignorância e pelo ódio, eram jogados aos leões, em espécie de sádico prazer.

O sadismo se manifesta diante do infortúnio alheio — por exemplo, imitar alguém sufocado pela Covid-19. Ou na descrição libidinosa, detalhada e colorida, com brilho nos olhos, de crianças com dentes arrancados para fazer sexo oral. O prazer doentio se revela nas interjeições.

A milícia atual vigia, e ameaça e caça, conceitos vagos ditados por uma sombra escura de inclemência e ressentimento. Reagem, à semelhança dos ratos de Pavlov, quando explodem em seus ouvidos palavras como miséria, fraternidade ou empatia. Por desconhecerem o Evangelho, atacam os padres durante os sermões. E destroem imagens de santos. E correm atrás de quem veste batina.

As palavras de Cristo, em ensinamentos gravados na Bíblia, são ouvidas agora como acintes da esquerda. A turba esquece que Jesus Cristo acabou crucificado por seu tom solidário e generoso, verdadeiro incômodo ao poder da época: “Não roubarás; não matarás”; e, sentiram as meninas venezuelanas, “não desejarás a mulher do próximo”.

O problema de quem vaiou a catequese no Santuário de Aparecida é ter lido apenas a orelha dos Evangelhos e/ou acreditar na má-fé dos pastores bolsonaristas, religiosamente incultos e ideologicamente comprometidos. O cristianismo (como filosofia) nasceu em meio ao descalabro da escravidão, da pobreza brutal e da miséria civilizacional —pedofilia, satanismo, matanças entre os clãs, abuso de poder.

Demorou para a Igreja Católica ser enredada e reagir, de maneira ainda capenga, à instrumentalização da fé religiosa como base partidária. Os cães bolsonaristas há tempos vociferam a postura intolerante de jogar os adversários aos leões. É a mesma toada da turba romana.

Os ataques às homilias e aos padres em diversas igrejas Brasil afora ocorrem quando ecoam os ensinamentos contra a violência, a intolerância e a mentira. De novo, Dom Leonardo Steiner: “Usar a religião como ameaça a fim de angariar voto tem cheiro de imoralidade”.

O manejo descarado e argentário da religião, se no momento atiçou parte da cúpula católica brasileira, obrigada a reagir ao retrocesso civilizacional (“quero todo mundo armado”), agora gera mobilização entre as denominações não embolsadas.

Desde dias atrás, o projeto de poder messiânico de Michelle e Damares é desafiado dentro de seu quintal, encarnado pelo hit gospel “Messias”, cantado por Leonardo Gonçalves, entre os maiores sucessos no YouTube. Vale muito ouvir. A letra deve azedar as manhãs delas: E tudo isso por causa de política/Por causa de um falso pânico moral/Promovido pelos donos de igreja/Que tiveram o perdão de uma dívida /De 1,4 bilhões de reais/Decretado pelo presidente da República (…)/A gente tem fome e sede de justiça.

Para os religiosos independentes, tem nome e endereço o satanás.

O sétimo círculo do inferno

Nada é mais perigoso do que uma ideia quando não se tem outras. Isso soa clichê, mas resume à perfeição o programa de governo atual: a ideia fixa da violência armada. Para essa questão social, potencializada pela triplicação da posse de armas no país, é fraquíssima a oposição do discurso progressista. Talvez porque seja fraca a percepção democrática da diferença entre força e violência. Vale uma mirada etimológica: a origem da palavra ("vis") traduz as duas noções.

Não há sociedade que prescinda da força, nem história social de que esteja ausente a violência, seja como condição ou como ato. É disruptiva tanto coletivamente, em caso de guerra, quanto individualmente, como anomia. Na Divina Comédia, Dante reserva aos violentos o vale do Flegetonte, o sétimo círculo do inferno. A modernidade tenta proteger-se com o monopólio estatal do fenômeno.


Mas os cidadãos temem primeiro os atos e não o pouco visível estado de violência, por mais que uma sociedade estruturalmente desigual esteja sempre afeta a atos de anomia. De fato, a iniquidade econômica e política dá sempre margem a ciclos expansivos da violência.

Entre nós, uma política preventiva deveria começar desmistificando a imagem romantizada do país. O escravismo e o patriarcalismo adestraram as elites na negação das diferenças pelo extermínio puro e simples. Atávicos nas formas coletivas de consciência, esses fenômenos fossilizados respondem até hoje pela naturalização de práticas violentas contra a gente mais pobre.

Individualmente, violência ou desmedida da força é o ovo da serpente entocada no mesmo terreno do diálogo. É o espaço também marcado por vetores sociais anacrônicos, como a suposta ascendência física do homem sobre a mulher. Um mito desmentido pela própria tecnologia dos corpos: força muscular jamais foi a fonte real de poder. Sem diálogo, ao ver contrariada a perspectiva mítica de seu domínio, a contraparte masculina, movida por fúria patriarcal-narcísica, resvala para a violência. Em ricos e pobres, violência é linguagem sem palavras, expressão envenenada da miséria humana.

Violência organizada, porém, é estratégia coletiva de poder, aliás, o único ponto inequívoco do desgoverno federal. A farra das armas, que inflama o estado de violência com surtos agressivos, é a cara sem máscara do terror. Colecionador, praticamente um miliciano incubado, é uma intimidação latente. Mafializou-se a vida social desde o Norte até o Sudeste, que perde território para milícia e tráfico. O elevado potencial de guerra urbana é a mais vexatória ameaça à sociedade civil. Com o Estado caindo de quatro frente ao crime, a política de violência armada é a própria autonegação do Brasil republicano.

'Nacionalismo cristão se tornou uma ideologia política'

Durante o governo do presidente Jair Bolsonaro (PL), a diplomacia brasileira se empenhou para inserir o Brasil em uma aliança global de extrema direita, com um viés cristão ultraconservador.

Os movimentos feitos nesse sentido chamaram pouca atenção no Brasil, mas foram acompanhados com muita preocupação pelo teólogo Ronilso Pacheco, professor assistente do Departamento de Filosofia na Universidade de Oklahoma, nos Estados Unidos.

"Enquanto a gente brincava com o Eduardo Bolsonaro falando inglês e fritando hambúrguer nos EUA, almejando ser embaixador em Washington, ele já tinha construído relações com o submundo da extrema direita internacional", comenta Pacheco, que é pastor licenciado de uma comunidade batista em São Gonçalo (RJ).

O pesquisador chegou aos EUA interessado em estudar a Teologia Negra. Ao se debruçar sobre o funcionamento da supremacia branca no país, chegou ao tema do nacionalismo cristão, que se fortaleceu em diferentes países nos últimos anos. Trata-se de um movimento internacional que atua politicamente para defender que as sociedades sejam orientadas pelos valores cristãos.

"Essa ideia de que o Cristianismo deve orientar a vida social está completamente presente no Brasil, assimilada com um projeto de poder, um projeto político no qual Bolsonaro se tornou um rosto importante", afirma Pacheco.


A eleição de Donald Trump nos EUA, em 2016, foi decisiva para o fortalecimento de uma rede internacional do conservadorismo cristão. Com o governo de Viktor Orbán na Hungria, o movimento ganhou tentáculos na Europa. E, nos últimos anos, passou a ter o Brasil como protagonista.

Em entrevista à DW Brasil, Pacheco acredita que, caso o projeto de Bolsonaro seja derrotado nas urnas, as cenas vistas em Washington após a derrota de Trump não deverão se repetir, em um primeiro momento. No entanto, o pesquisador alerta para a escalada de pressões antidemocráticas nos próximos anos.

"Se o Bolsonaro perde, nossos olhos se voltam para o Parlamento. A base bolsonarista continua muito forte. Ele teve mais de 50 milhões de votos, e vamos ter que lidar com esse fato durante muito tempo. Para 50 milhões de brasileiros, esse projeto de país está bom e deve continuar como está", constata.

Como o fenômeno evangélico brasileiro se insere na teia global do nacionalismo cristão?

Ronilso Pacheco: No histórico da igreja evangélica no Brasil, essa conexão internacional, mais especificamente com os EUA, sempre existiu. Ela está um pouco no DNA da formação evangélica brasileira e mais especificamente no DNA da formação conservadora, desde que a igreja chegou no Brasil. Há uma ligação muito forte com o conservadorismo evangélico americano, a direita religiosa, que surge no final dos anos 1970, nos EUA, e tem uma influência muito forte no Brasil.

A extrema direita evangélica no Brasil não mantém conexões só com os EUA. Ela está ligada a esse conservadorismo também em alguns países da América Latina e, em especial, da Europa. Esse bloco do nacionalismo cristão tem uma nova fase a partir da eleição de Donald Trump, em 2016. As conexões das articulações dessa extrema direita configuraram muito mais do que uma perspectiva teológica de interpretação bíblica. Tornou-se, de fato, uma ideologia política.

Como esse movimento político e religioso internacional se manifesta no Brasil?

Em uma definição geral, o nacionalismo cristão é definido, sobretudo aqui nos EUA, como um conjunto de símbolos, mitos, tradições, culturas, um conjunto de sistemas de valores que, no final, exerce um advocacy de que a sociedade deve ser orientada pelos valores cristãos, ou que deve haver uma fusão entre a vida social e os valores cristãos. Essa ideia de que o Cristianismo deve orientar a vida social está completamente presente no Brasil, assimilada com um projeto de poder, um projeto político no qual Bolsonaro se tornou um rosto importante.

Como ele assumiu esse papel, sendo católico de origem?

Ele é o primeiro candidato, o primeiro homem público que assume abertamente um compromisso com uma maioria do país, cristã. A despeito do Estado laico, ele é um cristão conservador, que vai governar sob essa perspectiva, e que defende uma supremacia cristã em todos os aspectos. O ex-chanceler Ernesto Araújo dizia em alto e bom tom, no Brasil e fora, que uma das suas missões era recuperar os valores do Cristianismo ocidental, tanto no Brasil quanto nas suas relações internacionais.

É essa perspectiva religiosa, cristã, conservadora, de domínio, que traça diversas gramáticas e narrativas para fazer o enfrentamento político no Brasil, como a ideia de uma ameaça de uma guerra cultural, que envolveria a usurpação e a eliminação dos valores cristãos da sociedade. Nisso está o nacionalismo cristão: é uma compreensão de país e de sociedade que só se entende razoável se ela se submete ao reconhecimento da orientação social dos valores cristãos conservadores.

Como se deu a construção internacional dessa rede de países alinhados ao nacionalismo cristão?

Uma vez que Trump chega na Casa Branca, torna-se o grande fiador desse movimento, nos EUA e internacionalmente. Como presidente dos EUA, ele traz esse movimento da direita religiosa junto com ele, inclusive recuperando movimentos de supremacia branca que estavam significativamente mais silenciados ao longo de alguns governos republicanos e durante o governo Obama.

Em outro polo, o Viktor Orbán conseguiu dar um rosto simpático para a extrema direita na Hungria. Sobretudo com a Katalin Novak, que dá uma nova narrativa para a extrema direita. Ela tira o foco dos embates diretos com pautas principais, como a questão da comunidade LGBTQIA+, ou da imigração, e foca na pauta da família. Tudo gira em torno da preservação da família, tida como fundamental para preservar o país e manter sua identidade. Essa nova forma abordagem da extrema direita, que a Novak conduz muito bem com a gestão do Orbán, vai gradativamente se tornando um farol para muitos governos e projetos de extrema direita.

É um trabalho muito bem-sucedido. Eles montaram, a partir da Hungria, a Rede Política por Valores, que era presidida por Novak. Ela saiu do cargo para se tornar presidente da Hungria. O atual presidente dessa rede é o ex-candidato derrotado na eleição presidencial do Chile, José Antonio Kast. É uma rede muito forte, articulada em um discurso de defesa da democracia, dos valores da família e dos direitos humanos – sem aparência autoritária. É uma nova gramática dessa extrema direita.

Como o Brasil e sua diplomacia se inseriram nessa rede?

O Brasil é reconhecido como um país que se tornou protagonista. Nós fizemos tantas caricaturas de Bolsonaro e sua família, assim como da ex-ministra Damares, que a gente não levou a sério como eles conseguiram construir essa rede. Enquanto brincávamos com o Eduardo Bolsonaro falando inglês e fritando hambúrguer nos EUA, almejando ser embaixador em Washington, ele já tinha construído relações com o submundo da extrema direita internacional – politicamente, de forma oficial, e em um mundo subterrâneo, virtual, que a gente não fazia ideia.

Ele estava vindo quase todos os meses aos EUA para fazer conexões com ideólogos políticos da ultradireita virtual, que hoje tem um papel importante de suporte a Bolsonaro dentro e fora do Brasil. Isso passou sempre despercebido. Em 2019, a Damares participou da Cúpula de Demografia em Budapeste, e isso não foi citado em lugar nenhum. O Brasil entrou na Aliança Internacional pela Liberdade Religiosa, o que não gerou nenhum debate significativo sobre as implicações disso.

Essa articulação foi sendo construída gradativamente, desde que Bolsonaro chegou. Em seu governo, a política externa foi caótica, sem nenhum avanço significativo. Mas, todos os esforços para inserir o Brasil dentro de uma aliança global de extrema direita, sob uma perspectiva cristã ultraconservadora, foram tranquilamente feitos.

Como essa articulação pode ser impactada pela eleição deste domingo?

Se o Bolsonaro perde, nossos olhos se voltam para o Parlamento. A base bolsonarista continua muito forte. Ele teve mais de 50 milhões de votos, e vamos ter que lidar com esse fato durante muito tempo. Para 50 milhões de brasileiros, esse projeto de país está bom e deve continuar como está. Eu não acredito em uma reação do nível do Capitólio, até porque as instituições estão levando isso cada vez mais a sério. Acredito em um ou outro movimento de negação, de questionamento em relação a resultados, mas não acredito que aconteça algo dessa dimensão. O que não significa que nós vamos ter menos trabalho com relação a ataques sistemáticos à democracia e às instituições democráticas. Eles podem ser até piores no caso brasileiro.

Em uma eventual vitória, eu acho que só Deus sabe, honestamente. Há uma tendência global: um governo autocrático nesse nível, quando reeleito, está muito mais legitimado a ser muito mais autocrático do que no primeiro mandato. Ele teria um Parlamento muito mais forte, vai buscar colocar em prática tudo que dissimulou quando foi tensionado – seja suas relações com as instituições, como o STF, mas também a imposição de políticas e programas orientados por esse Cristianismo ultraconservador.

É possível reverter a influência que esses grupos conquistaram na política brasileira?

De 2018 para cá, foi construído um nível de narrativa, de mentalidade, difícil de desconstruir agora. Nós estamos vivenciando o efeito de algo que foi sutilmente construído desde o governo Lula, que vem se arrastando, que tem uma contribuição muito forte da classe média e da mídia. Eles mesmos estão tentando reverter em um ano o nível de espaço que eles deram a esses grupos em mais de uma década. É muito difícil.

Eu falei que não adianta conversar com os evangélicos no início do segundo turno para criticar uma estratégia falha dos movimentos de esquerda e progressistas de dialogar com os evangélicos sempre com a corda no pescoço: na última hora das eleições, em uma necessidade de virada de jogo. Não adianta imaginar que esse convencimento de última hora vai acontecer e nós vamos salvar a democracia brasileira.