Os movimentos feitos nesse sentido chamaram pouca atenção no Brasil, mas foram acompanhados com muita preocupação pelo teólogo Ronilso Pacheco, professor assistente do Departamento de Filosofia na Universidade de Oklahoma, nos Estados Unidos.
"Enquanto a gente brincava com o Eduardo Bolsonaro falando inglês e fritando hambúrguer nos EUA, almejando ser embaixador em Washington, ele já tinha construído relações com o submundo da extrema direita internacional", comenta Pacheco, que é pastor licenciado de uma comunidade batista em São Gonçalo (RJ).
O pesquisador chegou aos EUA interessado em estudar a Teologia Negra. Ao se debruçar sobre o funcionamento da supremacia branca no país, chegou ao tema do nacionalismo cristão, que se fortaleceu em diferentes países nos últimos anos. Trata-se de um movimento internacional que atua politicamente para defender que as sociedades sejam orientadas pelos valores cristãos.
"Essa ideia de que o Cristianismo deve orientar a vida social está completamente presente no Brasil, assimilada com um projeto de poder, um projeto político no qual Bolsonaro se tornou um rosto importante", afirma Pacheco.
A eleição de Donald Trump nos EUA, em 2016, foi decisiva para o fortalecimento de uma rede internacional do conservadorismo cristão. Com o governo de Viktor Orbán na Hungria, o movimento ganhou tentáculos na Europa. E, nos últimos anos, passou a ter o Brasil como protagonista.
Em entrevista à DW Brasil, Pacheco acredita que, caso o projeto de Bolsonaro seja derrotado nas urnas, as cenas vistas em Washington após a derrota de Trump não deverão se repetir, em um primeiro momento. No entanto, o pesquisador alerta para a escalada de pressões antidemocráticas nos próximos anos.
"Se o Bolsonaro perde, nossos olhos se voltam para o Parlamento. A base bolsonarista continua muito forte. Ele teve mais de 50 milhões de votos, e vamos ter que lidar com esse fato durante muito tempo. Para 50 milhões de brasileiros, esse projeto de país está bom e deve continuar como está", constata.
Como o fenômeno evangélico brasileiro se insere na teia global do nacionalismo cristão?
Ronilso Pacheco: No histórico da igreja evangélica no Brasil, essa conexão internacional, mais especificamente com os EUA, sempre existiu. Ela está um pouco no DNA da formação evangélica brasileira e mais especificamente no DNA da formação conservadora, desde que a igreja chegou no Brasil. Há uma ligação muito forte com o conservadorismo evangélico americano, a direita religiosa, que surge no final dos anos 1970, nos EUA, e tem uma influência muito forte no Brasil.
A extrema direita evangélica no Brasil não mantém conexões só com os EUA. Ela está ligada a esse conservadorismo também em alguns países da América Latina e, em especial, da Europa. Esse bloco do nacionalismo cristão tem uma nova fase a partir da eleição de Donald Trump, em 2016. As conexões das articulações dessa extrema direita configuraram muito mais do que uma perspectiva teológica de interpretação bíblica. Tornou-se, de fato, uma ideologia política.
Como esse movimento político e religioso internacional se manifesta no Brasil?
Em uma definição geral, o nacionalismo cristão é definido, sobretudo aqui nos EUA, como um conjunto de símbolos, mitos, tradições, culturas, um conjunto de sistemas de valores que, no final, exerce um advocacy de que a sociedade deve ser orientada pelos valores cristãos, ou que deve haver uma fusão entre a vida social e os valores cristãos. Essa ideia de que o Cristianismo deve orientar a vida social está completamente presente no Brasil, assimilada com um projeto de poder, um projeto político no qual Bolsonaro se tornou um rosto importante.
Como ele assumiu esse papel, sendo católico de origem?
Ele é o primeiro candidato, o primeiro homem público que assume abertamente um compromisso com uma maioria do país, cristã. A despeito do Estado laico, ele é um cristão conservador, que vai governar sob essa perspectiva, e que defende uma supremacia cristã em todos os aspectos. O ex-chanceler Ernesto Araújo dizia em alto e bom tom, no Brasil e fora, que uma das suas missões era recuperar os valores do Cristianismo ocidental, tanto no Brasil quanto nas suas relações internacionais.
É essa perspectiva religiosa, cristã, conservadora, de domínio, que traça diversas gramáticas e narrativas para fazer o enfrentamento político no Brasil, como a ideia de uma ameaça de uma guerra cultural, que envolveria a usurpação e a eliminação dos valores cristãos da sociedade. Nisso está o nacionalismo cristão: é uma compreensão de país e de sociedade que só se entende razoável se ela se submete ao reconhecimento da orientação social dos valores cristãos conservadores.
Como se deu a construção internacional dessa rede de países alinhados ao nacionalismo cristão?
Uma vez que Trump chega na Casa Branca, torna-se o grande fiador desse movimento, nos EUA e internacionalmente. Como presidente dos EUA, ele traz esse movimento da direita religiosa junto com ele, inclusive recuperando movimentos de supremacia branca que estavam significativamente mais silenciados ao longo de alguns governos republicanos e durante o governo Obama.
Em outro polo, o Viktor Orbán conseguiu dar um rosto simpático para a extrema direita na Hungria. Sobretudo com a Katalin Novak, que dá uma nova narrativa para a extrema direita. Ela tira o foco dos embates diretos com pautas principais, como a questão da comunidade LGBTQIA+, ou da imigração, e foca na pauta da família. Tudo gira em torno da preservação da família, tida como fundamental para preservar o país e manter sua identidade. Essa nova forma abordagem da extrema direita, que a Novak conduz muito bem com a gestão do Orbán, vai gradativamente se tornando um farol para muitos governos e projetos de extrema direita.
É um trabalho muito bem-sucedido. Eles montaram, a partir da Hungria, a Rede Política por Valores, que era presidida por Novak. Ela saiu do cargo para se tornar presidente da Hungria. O atual presidente dessa rede é o ex-candidato derrotado na eleição presidencial do Chile, José Antonio Kast. É uma rede muito forte, articulada em um discurso de defesa da democracia, dos valores da família e dos direitos humanos – sem aparência autoritária. É uma nova gramática dessa extrema direita.
Como o Brasil e sua diplomacia se inseriram nessa rede?
O Brasil é reconhecido como um país que se tornou protagonista. Nós fizemos tantas caricaturas de Bolsonaro e sua família, assim como da ex-ministra Damares, que a gente não levou a sério como eles conseguiram construir essa rede. Enquanto brincávamos com o Eduardo Bolsonaro falando inglês e fritando hambúrguer nos EUA, almejando ser embaixador em Washington, ele já tinha construído relações com o submundo da extrema direita internacional – politicamente, de forma oficial, e em um mundo subterrâneo, virtual, que a gente não fazia ideia.
Ele estava vindo quase todos os meses aos EUA para fazer conexões com ideólogos políticos da ultradireita virtual, que hoje tem um papel importante de suporte a Bolsonaro dentro e fora do Brasil. Isso passou sempre despercebido. Em 2019, a Damares participou da Cúpula de Demografia em Budapeste, e isso não foi citado em lugar nenhum. O Brasil entrou na Aliança Internacional pela Liberdade Religiosa, o que não gerou nenhum debate significativo sobre as implicações disso.
Essa articulação foi sendo construída gradativamente, desde que Bolsonaro chegou. Em seu governo, a política externa foi caótica, sem nenhum avanço significativo. Mas, todos os esforços para inserir o Brasil dentro de uma aliança global de extrema direita, sob uma perspectiva cristã ultraconservadora, foram tranquilamente feitos.
Como essa articulação pode ser impactada pela eleição deste domingo?
Se o Bolsonaro perde, nossos olhos se voltam para o Parlamento. A base bolsonarista continua muito forte. Ele teve mais de 50 milhões de votos, e vamos ter que lidar com esse fato durante muito tempo. Para 50 milhões de brasileiros, esse projeto de país está bom e deve continuar como está. Eu não acredito em uma reação do nível do Capitólio, até porque as instituições estão levando isso cada vez mais a sério. Acredito em um ou outro movimento de negação, de questionamento em relação a resultados, mas não acredito que aconteça algo dessa dimensão. O que não significa que nós vamos ter menos trabalho com relação a ataques sistemáticos à democracia e às instituições democráticas. Eles podem ser até piores no caso brasileiro.
Em uma eventual vitória, eu acho que só Deus sabe, honestamente. Há uma tendência global: um governo autocrático nesse nível, quando reeleito, está muito mais legitimado a ser muito mais autocrático do que no primeiro mandato. Ele teria um Parlamento muito mais forte, vai buscar colocar em prática tudo que dissimulou quando foi tensionado – seja suas relações com as instituições, como o STF, mas também a imposição de políticas e programas orientados por esse Cristianismo ultraconservador.
É possível reverter a influência que esses grupos conquistaram na política brasileira?
De 2018 para cá, foi construído um nível de narrativa, de mentalidade, difícil de desconstruir agora. Nós estamos vivenciando o efeito de algo que foi sutilmente construído desde o governo Lula, que vem se arrastando, que tem uma contribuição muito forte da classe média e da mídia. Eles mesmos estão tentando reverter em um ano o nível de espaço que eles deram a esses grupos em mais de uma década. É muito difícil.
Eu falei que não adianta conversar com os evangélicos no início do segundo turno para criticar uma estratégia falha dos movimentos de esquerda e progressistas de dialogar com os evangélicos sempre com a corda no pescoço: na última hora das eleições, em uma necessidade de virada de jogo. Não adianta imaginar que esse convencimento de última hora vai acontecer e nós vamos salvar a democracia brasileira.
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