domingo, 30 de outubro de 2022

Duro opositor do PT, médico torturado por Ustra declara voto em Lula

O médico Gilberto Natalini, de 70 anos, foi preso 18 vezes durante a ditadura militar. Sua primeira prisão, em 1972, foi a que mais a marcou. Foram 42 dias detido no temido Doi-Codi de São Paulo, comandado pelo oficial Carlos Alberto Brilhante Ustra, quem o recebeu naquelas instalações.

Natalini relata que foi torturado diretamente por Ustra, quem via todos esses dias. Então com 18 anos, o médico era naquele ano estudante de medicina. Levou choques elétricos nos ouvidos, que comprometeram sua audição até hoje. Gostaria de ter sido cardiologista, mas a dificuldade em ouvir as captações do estetoscópio o impediu.

Os dois – Ustra e Natalini – se reencontraram 41 anos depois, quando prestaram depoimento na Comissão Nacional da Verdade, em Brasília, em 10 de maio de 2013. O militar disse que impediu a instalação do comunismo no Brasil, que lutou contra o terrorismo e que nunca matou ou torturou alguém.

“Cumpri todas as ordens. Ordens legais. Nunca, como se diz, ocultei cadáver, cometi assassinato. Vou em frente nem que morra assim. Lutei, lutei e lutei. E tenho dito” – declarou Ustra naquele dia.

Presente no auditório, Natalini deu um testemunho antes e confirmou ter sido vítima de Ustra. A certa altura, o então presidente da comissão, Cláudio Fonteles, perguntou a Ustra uma acareção com Natalini. Ele recusou.

“Não faço acareação com terrorista”.

E se iniciou um bate-boca entre eles.

“O senhor que é bandido”.

Passados todos esses anos, Natalini, que foi do PCdoB, ajudou a fundar o PSDB. Depois, se filiou ao PV. Nunca morreu de amores, de quem é crítico ferrenho. Foi vereador por cinco mandatos e sempre de oposição a gestões petistas. Mas, agora, anunciou voto em Lula. Será a segunda vez que vota num petista. A primeira vez foi também em Lula, em 1989.

“Vou relevar tudo que fizeram para evitar o mal maior”.


O senhor anunciou agora que irá votar no Lula, partido que sempre se opôs, apesar de tudo. Qual a razão?

Sou muito crítico ao PT. Vi o PT nascer, eu era PCdoB. Tivemos uma guerra com o PT no início, que veio tomando o lugar dos comunistas. Disputou muito com a gente, do partidão. Disputa quase até física. Até João Amazonas (fundador do partido) criticou o PT. E depois aderiu. O PCdoB aderiu ao PT. Depois, saí. Fiz muita oposição na Câmara ao PT. Nunca votei no PT. Exceção em 1989, contra o Collor. Sou um crítico contundente do PT. Em 2018 anulei meu voto no segundo turno. Fiz oposição ao Haddad na Prefeitura.

O que o sr. critica no PT?

O PT não tinha o direito de fazer o que fizeram. Vieram empurrando todo mundo. Fui secretário de saúde de Diadema (SP), logo após uma gestão do PT. Para ter ideia, apagaram todos os dados dos computadores da secretaria. Simplesmente isso.

Não seria natural um ex-perseguido e torturado pela ditadura votar em Lula?

É um engano isso. Nem todos perseguidos votam no Lula. A turma da esquerda velha de guerra morreu toda de fome. O João Amazonas, tiveram que fazer vaquinha para comprar o seu caixão. Prestes, Brizola. A turma tinham muito princípio e moralidade imensa. Aquela esquerda não era demagógica. Por isso eu critico do PT. Tomou a bandeira da esquerda, só que os princípios não preservaram. Tem coisas graves do PT no trato da coisa pública.

Mas agora irá votar em Lula.

Em 1989, votei contra o Collor. Agora, vou relevar minhas críticas ao PT, que não vou esquecer jamais. Sei o que vocês fizeram no verão passado, como se diz. Estamos diante de uma ameaça brutal a democracia, que é o Bolsonaro. Eu vou me compor com essa frente democrática. Tenho pedido voto para o Lula nas redes. Só não participo de reuniões. Não sou baba ovo. Meu apoio a Lula é pela democracia, pela defesa do meio ambiente, uma causa cara para mim. Meu voto foi muito sofrido para ele conquistar.

Mas em 2018, não votou em Haddad? Bolsonaro tinha elogiado Ustra.

Em 2018, não conseguia votar em Bolsonaro por causa do Ustra. Fui torturado diretamente por ele. Choque elétrico. Me torturou em 1972, no Doi-Codi, na Oban, em São Paulo. Jamais votaria nessa direita incivilizada e cruel. No Haddad, não conseguia porque fui oposição a ele na Câmara. Mas dessa vez, não dá. Bolsonaro é truculento, armamentista. Não posso me omitir quem tem Ustra como ídolo. Está em jogo a sorte do meu país. Vou fazer um esforço enorme, passar por cima do que tenho contra o petismo e vou votar no Lula. E estou recomendando na minha família.

Pode comentar um pouco de sua perseguição e prisão na ditadura?

Fui 18 vezes preso. Na primeira vez, foram 45 dias lá no Doi-Codi. Interrogado e torturado pelo Ustra. O via todo dia. Me deu choque, ficou horas com o pedaço de pau à minha frente. Eu tinha 18 anos, era estudante de medicina. Eu nunca dei um tiro em ninguém. Nunca dei uma facada. Sou da disputa política, não da luta armada. Mas, mesmo que eu tivesse pego em armas, depois que você prende uma pessoa, a desarma e submete um ser humano adversário na cadeia não pode, pelas leis de guerra, torturar. É muito ignóbil. Ele era um expert em tortura. Depois, fui preso pelo Dops. Minha última prisão foi no governo Sarney, em 1985, após uma manifestação. Fiz o enterro do Sarney. Fiquei horas preso, mas era uma prisão mais para constrangimento. Já estava começando a abertura. Tenho 70 aos e sigo estribuchando na luta. Só vou parar quando parar de respirar.

Como foi reencontrá-lo 40 anos depois?

Não foi fácil. O enfrentei e ele se negou a fazer uma acareação. Disse que não faria acareação com terrorista. O chamei de mentiroso na sua frente e de bandido e torturador. O pessoal da Comissão da Verdade, depois do embate, me ofereceu ir num carro da Polícia Federal até o aeroporto e que um delegado me acompanhasse até entrar no avião. Dispensei. Enfrentei o Ustra quando comandante do Doi-Codi.

A tortura deixou o sr. com sequelas.

Sim. Fiquei com uma lesão auditiva, perda nos dois ouvidos. Foi choque elétrico. Ustra rodava a manivela da máquina. Um fio era chamado de pimentão, choques de 250 volts. O outro, era o pimentinha, de 100 volts. Tive cada um deles nos meus ouvidos. Uma dor indescritível. Queria ser cardiologista, mas, pelas lesões, não conseguia ouvir os sopros cardíacos com o estetoscópio. Quem tem Ustra como ídolo se afastou da raça humana.

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