quarta-feira, 13 de junho de 2018

A falência das elites

A desilusão com o processo de escolha do novo presidente da República é evidente. A maioria dos eleitores não encontra um candidato que esteja sintonizado com o sentimento das ruas. Alguém que possa entusiasmar o país. Que pense o novo. Que elabore propostas originais. Que consiga expô-las e mostrar sua viabilidade. Que rompa com o senso comum, com o mesmismo, com a obviedade que acabou virando sinônimo de político brasileiro.

Vivemos a hora da xepa, a escolha é do menos estragado, do menos pior. E eleição não foi feita para isso. Deveríamos escolher os melhores, os mais preparados.

Este processo de desilusão está relacionado com o sistema político-jurídico que nasceu com a Constituição de 1988. Vivemos a turbulência mais longa e mais profunda da história da República. Há uma crise estrutural e não apenas conjuntural. As possibilidades de mudanças reais estão vedadas. A petrificação da estrutura é evidente. Não há sequer brechas, mesmo que mínimas. A eficácia para a preservação do mesmo desmoralizou a democracia. A desilusão do eleitor é a resposta a tudo isso. É o máximo que, por hora, pode fazer.

Nada indica que o Congresso eleito a 7 de outubro será melhor que o atual. A renovação habitual — em torno de 40% — deve se manter. Mas é enganosa. Há somente uma mudança nos nomes. As mesmas famílias, os mesmos interesses, continuarão a ser dominantes na vida parlamentar. O espetáculo da democracia — como se denominava antigamente a eleição — será, mais uma vez, uma ópera-bufa.

A seleção dos piores acabou, evidentemente, levando à falência das elites dirigentes. O empobrecimento moral associou-se à mediocridade intelectual. Que cena infame e vil. Meu Deus! Meu Deus! Que horror, como diria Castro Alves (que para os poderosos não passa de uma praça — ponto de partida dos trios elétricos no carnaval baiano). São Paulo é um bom exemplo. Em 1922, a célebre Semana de Arte Moderna teve como patrocinador a família Prado. E diversas ações culturais foram apoiadas pelos potentados locais. Cem anos depois, o quadro é muito diferente. O top é convidar para alegrar as suas festas Anitta, Pablo Vittar ou Jojo Todynho. E, se em 1954, quando do IV Centenário da fundação de São Paulo, William Faulkner, prêmio Nobel de literatura, visitou a cidade como convidado especial; hoje preferem os livros de algum padre de fancaria, um Santo Agostinho da decadência — e haja decadência.

O descaso com os rumos do país é muito claro quando nos aproximamos da elite financeira. Ela está no Brasil mas não vive aqui, apenas habita — há exceções, claro, mas são raríssimas. Seu mundo é, principalmente, os Estados Unidos e, secundariamente, a Europa. Lembra aqueles degredados do século XVI. O sonho é voltar à civilização — viver longe do Brasil. Quando tivemos de enfrentar e vencer o projeto criminoso de poder petista, que queria transformar o país numa Venezuela, o que fez o sistema financeiro? Silenciou, o que já seria um crime de lesa-pátria? Não, fez pior. Manifestou apoio ao PT até o final. Não custa recordar que Dilma Rousseff insistiu muito para que o presidente de um grande banco brasileiro fosse o seu ministro da Fazenda, quando do segundo governo. Só não obteve seu intento porque o banco não tinha um substituto para o cargo. Outro dirigente de banco, três meses antes do impeachment, deu uma longa entrevista a um periódico paulista defendendo de forma envergonhada a gestão petista, isto, volto a lembrar, quando o país já tinha conhecimento pleno do petrolão e as ruas eram ocupadas por milhões de brasileiros exigindo que a nossa bandeira não fosse vermelha. Ah se não fosse a classe média...

A falência das elites e a petrificação das estruturas de poder são as principais responsáveis pela crise estrutural. O processo eleitoral é apenas sua face mais visível. Aguardamos atônitos o que poderá acontecer a 28 de outubro, quando do segundo turno. O chamado centro lançou meia dúzia de candidatos e nenhum conseguiu entusiasmar. A direita tem um candidato que sequer poderia ser qualificado neste campo ideológico se estivesse na Europa — e que mal consegue expor uma ideia com um mínimo de coerência. Na esquerda, seu candidato mais forte está preso e condenado a 12 anos de prisão. Tivemos também pretensos candidatos que logo abandonaram a raia. Um é conhecido por animar auditórios aos sábados; outro por treinar times de voleibol e o último porque presidiu o STF por algumas semanas. O primeiro dissertava platitudes — o máximo que poderia abstrair; o segundo é considerado um motivador de equipes (o que é isso?) e o último ficou conhecido por alguns tuítes — isso mesmo, no Brasil atual pensamento se resume a 280 caracteres com espaço. E basta — para ele, claro.

Os candidatos e as lideranças partidárias estão desconectados do Brasil real. Vivem em outro plano. Não entendem que as ruas querem uma profunda transformação.

Permanecem no passado. Supõem que as maquinações nos gabinetes em Brasília vão surtir algum efeito, como se o eleitor fosse uma simples marionete. E o presidente da República nisso tudo? Tem como objetivo máximo manter-se no cargo até a posse do seu sucessor. Se conseguir, vai se considerar um vitorioso. E depois terá de acertar contas com a Justiça — e não são poucas. Entrará para a história das eleições presidenciais como o único mandatário que nenhum candidato quis receber seu apoio.

Em síntese: estes candidatos são frutos de uma república apodrecida. O Brasil merece coisa muito melhor.

Marco Antonio Villa

País sequestrado por um condenado preso

Os resultados da última pesquisa Datafolha, publicada domingo pela Folha de S.Paulo, não podem ser considerados definitivos para prenunciar a apuração da eleição de daqui a quatro meses porque representam um retrato atual, como sempre, nunca uma profecia exata. E também porque revelam agora uma decisão que muitos cidadãos ainda estão por tomar. Configuram, contudo, e ao que parece de forma cristalizada, tendências que dificilmente mudarão, pois refletem uma situação antiga, crônica, lógica e irrefutável.

Os 30% de preferência pelo soit-disant presidenciável do Partido dos Trabalhadores (PT), Luiz Inácio Lula da Silva, impressionam por dois motivos. Antes de tudo, porque ele foi condenado em segunda instância pelo Tribunal Regional Federal da 4.ª Região, em Porto Alegre, a 12 anos e 1 mês por corrupção e lavagem de dinheiro. E é inelegível. Em segundo lugar, por cumprir pena em Curitiba e, portanto, não ser disponível para participar de comícios, carreatas e até, conforme presume quem tem bom senso, gravar pronunciamentos para a propaganda nada gratuita no rádio e na televisão. O comportamento inusitado da Justiça, permitindo-lhe um dia a dia não vivido por outro preso comum – e ele é apenas mais um –, pode pôr em questão a segunda afirmativa. Mas, por enquanto, prever a continuação dessa anomalia, vencidos os prazos legais para o registro de candidaturas, não é realista.


A fidelidade de quase um terço do eleitorado brasileiro ao carisma do mais popular líder político e mais famoso presidiário do País, a esta altura do campeonato, confirma uma evidência e nega uma lenda urbana. O primeiro lugar no ranking atesta que a emoção é decisiva no ato de digitar o número do pretendente na máquina de votar. E o petista é, disparado, o único dos que se apresentaram à liça a despertar a paixão do cidadão, seja por afeto, seja por repulsa. Mas também, por paradoxal que pareça, o voto em quaisquer nível social e escolaridade é decidido pelo estômago e pelo bolso.

“Ora (direis) ouvir estrelas! Certo, perdeste o senso”, resmungará o leitor aflito, citando o repetido verso de Olavo Bilac. Afinal, além de condenado, Lula responde na Justiça a mais seis processos criminais, que, juntos, o desmascaram na chefia de uma organização criminosa que levou a Petrobrás à falência, quebrou as contas públicas, esfolou a economia a ponto de gerar 24 milhões de desempregados e desiludidos, conforme o confiável IBGE, e indicou os dois presidentes mais desastrados e, por isso mesmo, mais impopulares da História: a companheira petista Dilma Rousseff e o cúmplice Michel Temer, do PMDB. Sem Temer, Dilma não teria sido eleita. Sem os votos do PT, Temer não seria presidente.

É aí que entra neste raciocínio a negação de que o brasileiro não tem memória, uma lenda antiga e frágil. Os apressadinhos, que, conforme ensinava vovó, comem cru ou sapecado, arguirão que, ao desprezarem os dados da realidade que fazem de Lula um réprobo, e não os quindins de iaiá, os brasileiros que vegetam abaixo da linha da pobreza não têm memória mesmo e ponto final. Alto lá! História é uma coisa, memória é outra. A História é objetiva, relata fatos indesmentíveis, questiona mitos aparentemente indestrutíveis. A memória é subjetiva. Cada um tem a sua. A lembrança dos fatos ao redor é sempre imprecisa e traiçoeira. A recordação dos benefícios pessoais é permanente. Os que asseguram que votarão em Lula têm a memória gostosa dos tempos de ouro do crédito fácil e do acesso à proteína barata sobre a mesa da família.

A História revela que a inflação acabou, o poder de compra da moeda permitiu o acesso das famílias pobres ao consumo inatingível, por obra e graça do Plano Real, do câmbio flutuante e da Lei de Responsabilidade Fiscal, sob a égide do tucano Fernando Henrique. Mas a memória ressuscita o crédito farto e fácil e é isso que segura Lula no topo das pesquisas.

Detratores de institutos de opinião poderão até constatar que os índices recentes não se confirmarão. Mas dificilmente as tendências serão desmentidas. A principal delas é a novidade que ameaça surgir do panorama visto da pinguela sobre a fossa: a disseminação generalizada de que político nenhum presta mesmo e, então, o melhor é escolher um entre tantos condenados que no passado mais recente lhes “encheram o bucho”, como se diz em meu Nordeste de origem, região tida como baluarte lulista. Sabe o “rouba, mas faz”? Pois…

Em 2013, a população foi à rua protestar contra tudo e no ano seguinte reelegeu Dilma e Temer, dois precipícios para a tragédia. Em 2016 o eleitor surrou o PT porque a Lava Jato levou o partido aos tribunais e às prisões. Presos em Curitiba estão todos os chefões petistas: o próprio Lula, Zé Dirceu e Palocci. E, pior de tudo, três ex-tesoureiros – Delúbio, Vaccari e Paulo Ferreira – tiveram o mesmo destino. Há quem lembre diante desse fato que a organização criminosa, vulgo quadrilha, se afigura na forma da lei com a reunião de mais de quatro membros. Ou seja…

Em 2014 o PSDB fez de Aécio Neves a esperança anti-PT para pelo menos metade da sociedade, que não cai na lábia do profeta de Vila Euclides. O neto de Tancredo Neves, ilusão da Nova República abatida pela septicemia, contudo, protagonizou a maior frustração política da nossa História. Denunciado por um suspeito de ter enriquecido pelo compadrio de Lula e asseclas, gravado anunciando a morte do primo, caso este o delatasse, o mineiro poderia ter passado em branco pela inutilidade que protagonizou em seu mandato de senador pelo Estado mais habilidoso do Brasil. Mas fez muito pior, ao mostrar que seu adversário-mor comprou até a oposição fajuta em que ele mandava.

Lula nem precisará candidatar-se para encarnar o paradoxo deste país surreal, que mantém sob sequestro em sua cela de preso comum: beneficia-se por ter escolhido sucessores que quebraram o Brasil e pagou à oposição para anulá-la.

José Nêumanne

Pensamento do Dia


Gestão Temer não se limita a derreter, apodrece

O inquérito que investiga a venda de registros de sindicatos no Ministério do Trabalho demonstra que a corrupção é mais ou menos como o futebol. Ninguém marca gol sozinho. Há toda uma estrutura por trás: o clube, o médico, o técnico e o time em campo, preparando a jogada. A corrupção é igual. Há o presidente do clube (Temer), o partido aliado (PTB de Roberto Jefferson), e o time de servidores levantando a bola para que agentes políticos —como a deputada Cristiane Brasil– marquem gols contra o erário.

Indicada por Temer para o cargo de ministra do Trabalho, a filha de Roberto Jefferson só não sentou na cadeira porque a Justiça impediu. Agora, além de ordenar batidas policiais de busca e apreensão no gabinete e nas residências de Cristiane Brasil, em Brasília e no Rio, o ministro Edson Fachin, do Supremo, proibiu a ex-quase-futura-ministra de entrar no Ministério.

A safadeza tornou-se um moto-contínuo nos ministérios. Na pasta do Trabalho a delinquência é mais ofensiva, porque desrespeita os 13 milhões de desempregados que deveriam merecer a atenção de um ministério qualificado. No governo Temer, ministros e servidores que têm alguma qualidade precisam disfarçar ou se esconder. A atual administração não foi feita para competentes. Muitos acreditam que o governo Temer, com apenas 3% de aprovação, está derretendo. É mais grave do que isso. O governo está apodrecendo. Convém retirar as crianças da sala na hora do noticiário.

Por que tanta gente torce contra a seleção

É normal, sobretudo em época de Copa do Mundo, ouvir de alguns amigos e familiares que eles não estão nem aí para a seleção. Que preferem torcer pelo time do coração, que estão mais preocupados com eleição. Também não é novidade o discurso de inferiorização e pessimismo em torno dos 23 selecionados, que, de certa maneira, reflete a descrença nos rumos do país, traduzido por Nelson Rodrigues como “o complexo de vira-lata”. Isso sem contar os brasileiros que, por diferentes razões, escolhem apoiar outra seleção. Mas, às vésperas do Mundial na Rússia, é impossível ignorar que o índice de rejeição e impopularidade da seleção brasileira atingiu patamares raramente observados. Muito além das reações de quem detesta futebol, esnoba o talento de Neymar ou só empunha a bandeira em nome do seu clube, há gente de sobra disposta a secar, amaldiçoar e torcer contra o time que um dia foi o símbolo de orgulho da nação.

Para quem gosta de bola e de Copa, chega a ser irritante escutar sermões do tipo “o país nessa situação e o povo preocupado com futebol”, “só querem saber de pão e circo”, “enquanto você grita gol, estão roubando nosso dinheiro em Brasília”, “que o Brasil caia na primeira fase”, “que venha outro 7 a 1” e por aí vai… Porém, o descrédito popular que tem colocado em xeque o poder da seleção de mobilizar massas e unificar a identidade nacional a cada quatro anos não é fruto exclusivamente do mau humor dos que não enxergam a poesia que emana dos gramados. As causas transcendem o campo de jogo.


A última pesquisa de torcidas do Datafolha, divulgada em abril, mostra que o número de pessoas que não se interessam por futebol no país aumentou de 31% para 41% em relação a 2010, quando a seleção ainda era comandada por Dunga. Praticamente o mesmo percentual de brasileiros que desprezam a Copa do Mundo. Chama a atenção que, no “país do futebol”, de acordo com pesquisa da MindMiners, 54% dos torcedores consultados dizem acreditar que uma eventual conquista do Mundial pela seleção não vai melhorar a autoestima do brasileiro. E o mais sintomático: 58% entendem que os episódios que levaram ao indiciamento dos três últimos presidentes da Confederação Brasileira de Futebol (CBF) afeta, de alguma forma, a vontade de torcer pela seleção.

Tempos atrás, as suspeitas de ilícitos envolvendo cartolas eram tratadas como folclore no Brasil. Até que uma investigação do FBI desatou o Fifagate e implicou figuras como Ricardo Teixeira, José Maria Marin e Marco Polo Del Nero, menos de um ano depois do 7 a 1. Em compasso com os escândalos de corrupção na política, a entidade que controla nosso futebol sucumbiu na mão de dirigentes que, durante a Copa de 2014, exigiam patriotismo dos jornalistas e torcedores que criticavam as atuações do time de Felipão. E segue sem ter a exata dimensão de como a imagem associada a mandachuvas corruptos contribuiu para abalar a confiança dos brasileiros na seleção.

Seleção que, inevitavelmente, acabou castigada por seguidas administrações primitivas e nebulosas na CBF. Há décadas o esporte nacional é gerido à base da troca de favores, politicagem barata e interesses comerciais sustentados pela lógica da propina. Por mais vitoriosa que seja sua história em campo, não há instituição que passe incólume a tantas mazelas fora das quatro linhas. O que ajuda a explicar a perda de apelo não só da seleção, mas do futebol brasileiro como um todo.

Desconsiderando os comerciais de TV que apelam ao ufanismo, é cada vez mais raro presenciar demonstrações de amor à seleção. O que também dá uma medida do ódio. Por trás dele, irrompem jatos de frustração e raiva represadas pelo legado às avessas que a realização da Copa deixou para o país. Dos estádios superfaturados ao vexame contra a Alemanha, tanto o cético em relação a futebol quanto o torcedor mais apaixonado amargaram alguma dose de ressentimento. Havia caminho para uma reconciliação ao menos afetiva após Tite assumir a seleção e resgatá-la do fundo do poço. Mas, ao longo dos últimos quatro anos, dirigentes da CBF estavam mais preocupados em se livrar dos escândalos de corrupção do que em reaproximar o “brasileiro comum” do futebol.

A elitização tomou conta dos estádios, torcedores mais pobres foram afastados das arquibancadas, e a seleção virou produto cobiçado por empresas e patrocinadores que não veem problema em atrelar sua marca a uma entidade devassada pelas denúncias de corrupção. No meio desse processo de distanciamento, a camisa amarela da seleção ainda sofreu com a apropriação por grupos de manifestantes que a utilizaram como instrumento político. Neste cenário de Fla x Flu ideológico, uma parte da população agora sente ojeriza pelo uniforme com o escudo da CBF. Rejeição que, para muitos, se estende à seleção. Pela primeira vez no período democrático, o Brasil acompanhará uma Copa diante de tamanha polarização das correntes políticas, já que, em 2013, nos protestos que antecederam a Copa das Confederações, e em 2014, nas manifestações contra o megaevento, a pauta de reivindicações era bem mais difusa e menos identificada com determinada ala de militância.

Entre o apreço e o desdém por símbolos nacionais, a crise de credibilidade da seleção brasileira também respinga nos jogadores. A maioria deles joga no exterior, tem poucos vínculos com torcedores locais – algo acentuado pela falta de empenho da CBF em promover jogos com preços acessíveis no país – e falha ao não se esforçar para romper o estigma de cidadãos alienados, que, sob o status de personalidades globais, quase sempre resumem engajamento social a ações de caridade. Naturalmente, uma hora ou outra, torcedores como os que engrossaram o sarcástico protesto “um professor vale mais que o Neymar” se revoltam ao ver os ídolos reduzidos à figura de meros popstars.

Há quem interprete o desleixo pela seleção como um sinal de maturidade do brasileiro, que, supostamente, não se deixa mais enganar por “pão e circo” – como se fosse impensável conciliar a paixão pelo futebol com senso crítico. Todavia, é bem provável que, com o início dos jogos na Rússia, ainda mais se o Brasil mantiver o bom nível de atuação, o clima de Copa se espalhe tal qual em 2014, quando o grito de “não vai ter Copa” deu lugar a euforia nas ruas. Mas não resta dúvida de que os acontecimentos desde o Mundial passado, principalmente os escândalos de corrupção na CBF, arranharam a imagem do nosso futebol e, por tabela, a da seleção. Aquele que torce contra a pátria de chuteiras não é menos brasileiro que aquele que comemora fervorosamente cada gol anotado pelos comandados de Tite. Pois nada tem a ver com antipatriotismo. O “torcer contra” é, acima de tudo, uma resposta dos que não se sentem representados pelas instituições que se apropriaram da seleção. Um direito tão legítimo quanto o de quem prefere torcer a favor, apesar das contraindicações.

Os jornais

Meu amigo lança fora, alegremente, o jornal que está lendo e diz:

— Chega! Houve um desastre de trem na França, um acidente de mina na Inglaterra, um surto de peste na índia. Você acredita nisso que os jornais dizem? Será o mundo assim, uma bola confusa, onde acontecem unicamente desastres e desgraças? Não! Os jornais é que falsificam a imagem do mundo. Veja por exemplo aqui: em um subúrbio, um sapateiro matou a mulher que o traía. Eu não afirmo que isso seja mentira. Mas acontece que o jornal escolhe os fatos que noticia. O jornal quer fatos que sejam notícias, que tenham conteúdo jornalístico. Vejamos a história desse crime. “Durante os três primeiros anos o casal viveu imensamente feliz…” Você sabia disso? O jornal nunca publica uma nota assim:

“Anteontem, cerca de 21 horas, na rua Arlinda, no Méier, o sapateiro Augusto Ramos, de 28 anos, casado com a senhora Deolinda Brito Ramos, de 23 anos de idade, aproveitou-se de um momento em que sua consorte erguia os braços para segurar uma lâmpada para abraçá-la alegremente, dando-lhe beijos na garganta e na face, culminando em um beijo na orelha esquerda. Em vista disso, a senhora em questão voltou-se para o seu marido, beijando-o longamente na boca e murmurando as seguintes palavras: “Meu amor”, ao que ele retorquiu: “Deolinda”. Na manhã seguinte, Augusto Ramos foi visto saindo de sua residência às 7:45 da manhã, isto é, dez minutos mais tarde do que o habitual, pois se demorou, a pedido de sua esposa, para consertar a gaiola de um canário-da-terra de propriedade do casal.”

A impressão que a gente tem, lendo os jornais — continuou meu amigo — é que “lar” é um local destinado principalmente à prática de “uxoricídio”. E dos bares, nem se fala. Imagine isto:

“Ontem, cerca de 10 horas da noite, o indivíduo Ananias Fonseca, de 28 anos, pedreiro, residente à rua Chiquinha, sem número, no Encantado, entrou no bar “Flor Mineira”, à rua Cruzeiro, 524, em companhia de seu colega Pedro Amâncio de Araújo, residente no mesmo endereço. Ambos entregaram-se a fartas libações alcoólicas e já se dispunham a deixar o botequim quando apareceu Joca de tal, de residência ignorada, antigo conhecido dos dois pedreiros, e que também estava visivelmente alcoolizado. Dirigindo-se aos dois amigos, Joca manifestou desejo de sentar-se à sua mesa, no que foi atendido. Passou então a pedir rodadas de conhaque, sendo servido pelo empregado do botequim, Joaquim Nunes. Depois de várias rodadas, Joca declarou que pagaria toda a despesa. Ananias e Pedro protestaram, alegando que eles já estavam na mesa antes. Joca, entretanto, insistiu, seguindo-se uma disputa entre os três homens, que terminou com a intervenção do referido empregado, que aceitou a nota que Joca lhe estendia. No momento em que trouxe o troco, o garçom recebeu uma boa gorjeta, pelo que ficou contentíssimo, o mesmo acontecendo aos três amigos que se retiraram do bar alegremente, cantarolando sambas. Reina a maior paz no subúrbio do Encantado, e a noite foi bastante fresca, tendo dona Maria, sogra do comerciário Adalberto Ferreira, residente à rua Benedito, 14, senhora que sempre foi muito friorenta, chegado a puxar o cobertor, tendo depois sonhado que seu netinho lhe oferecia um pedaço de goiabada.”

E meu amigo:

— Se um repórter redigir essas duas notas e levá-las a um secretário de redação, será chamado de louco. Porque os jornais noticiam tudo, tudo, menos uma coisa tão banal de que ninguém se lembra: a vida…

Rubem Braga,"200 crônicas escolhidas"