segunda-feira, 20 de abril de 2020

Brasil no carro presidencial


Tristes, generosos, apaixonados? Somos ratos de laboratório em um experimento natural

Durante a Segunda Guerra Mundial, o embargo de alimentos imposto pelas tropas nazistas provocou uma fome catastrófica na Holanda. As sequelas desse período marcaram para sempre a saúde dos fetos que estavam sendo gerados nos ventres de grávidas famintas. Essa terrível experiência permitiu que a ciência entendesse mecanismos do desenvolvimento humano e sua genética que, de outra maneira, teria sido impossível: durante décadas, a análise dessas crianças e de seus descendentes forneceu material de estudo muito valioso. É o que se entende como um experimento natural: uma experiência que não podemos controlar, mas afeta decisivamente os sujeitos e nos permite estudar as consequências. Algo parecido, mas ao contrário, ocorreu quando Pequim decidiu reduzir drasticamente a poluição para não prejudicar os Jogos Olímpicos de 2008. Esse experimento natural permitiu observar que os bebês gerados nesse período sem fumaça nasceram muito mais saudáveis que os anteriores.

Hoje, bilhões de pessoas estão vivendo na pele um novo experimento natural em escala gigantesca. E milhares de pesquisadores, de todas as disciplinas, estão aproveitando para estudar seus efeitos.

Talvez isso marque para sempre nossas vidas, certamente serão publicados, durante décadas, estudos analisando este período e suas consequências psicológicas, políticas, econômicas, no consumo, nas relações sociais... Mas também é necessário estudá-lo já para melhorar as políticas que estão sendo adotadas. “Muito mais pessoas do que pensávamos estão cumprindo as medidas de distanciamento”, afirma Margarita Gómez, pesquisadora da Universidade de Oxford, que está analisando uma pesquisa realizada atualmente em um grande número de países, de Rússia e Índia até México e Argentina. “Temos de entender como as pessoas estão se comportando, é algo que nunca aconteceu, por isso gera grande incerteza e demanda por informações”, acrescenta Gómez, diretora do People in Government Lab de Oxford. “Há uma alta aprovação, pelos cidadãos, das políticas públicas mais exigentes quanto ao distanciamento social, vemos isso em todos os países.” Além disso, a saúde mental da população se ressente quando as pessoas consideram que seus governantes estão sendo pouco contundentes. No entanto, os pesquisadores estão analisando as características particulares de cada país: “Não há receitas gerais”, diz Gómez. “No México, com 30 ou 40 milhões de pessoas que vivem em situação precária, não dá para fazer como na Dinamarca.”

Outro aspecto observado é que aqueles que menos seguem essas normas são, em todo o planeta, homens jovens de 30 a 40 anos. “Talvez influa o fato de que são eles que têm de sair para trabalhar e ganhar a vida”, aponta. Esse padrão foi observado em diferentes estudos concentrados em populações mais específicas, como um trabalho preliminar da Universidade Autônoma de Madri, que mostra as mulheres espanholas com “uma atitude mais responsável” em relação à pandemia, ou outro feito com italianos, que indica que os homens jovens e com emprego fixo são os menos favoráveis a ficar em confinamento. Na França, somam-se a esse grupo as pessoas com ideologias mais extremistas. “Como é mais difícil mudar o comportamento de homens jovens, acreditamos que é algo que deve ser levado em conta nas mensagens dirigidas à população”, explica Gómez.

Alfredo Rodríguez e sua equipe da Universidade Complutense de Madri foram uns dos primeiros a apresentar um trabalho sobre a psicologia dos confinados: já na primeira semana foram observados maiores índices de ansiedade, depressão, estresse e problemas de sono. Nas etapas seguintes de seu estudo (o questionário já foi enviado oito vezes), viu-se como a população estava se acostumando à situação até ser prorrogada a quarentena, o que provocou uma intensificação dos sintomas. “Existe uma enorme preocupação com a situação trabalhista, há incerteza quanto ao futuro, e isso gera desconforto e problemas para dormir”, assinala Rodríguez. Um fator socioeconômico ilustra isso: o jardim. “As pessoas com jardim têm significativamente menos níveis de ansiedade e depressão. Este fato certamente está relacionado com a possibilidade de passear ao ar livre e se expor ao sol e à vitamina D”, mas também com aspectos de classe, aponta o especialista, já que é mais provável que uma família com jardim tenha uma situação socioeconômica mais tranquila. Rodríguez destaca: “Também fizemos o estudo para transmitir uma mensagem normalizadora quanto ao mal-estar emocional: é natural que as pessoas se sintam mal, é razoável. Há quem se sinta culpado por se sentir mal”.

Rodríguez está particularmente preocupado com a saúde mental das crianças espanholas. São um experimento natural dentro do experimento natural: quando tudo terminar, será possível comparar sua evolução com a das crianças europeias que tiveram permissão para sair às ruas. Diferentes estudos em vários países observaram um padrão entre adultos responsáveis por menores de idade: mães e pais se sentem mal por não poderem dar o máximo de si no trabalho e no cuidado de seus filhos. Entre irlandeses, ter que dar aula para as crianças é uma das situações mais difíceis emocionalmente, e dois terços dos britânicos acreditam que não estão sendo capazes de cumprir suas obrigações nem como funcionários nem como pais.

“É quase impossível nos concentrarmos em nossos trabalhos anteriores, porque parecem irrelevantes; queremos ajudar a entender esta situação”, afirma Libertad González, da Universidade Pompeu Fabra, que redirecionou seus estudos sobre a economia do trabalho e o gênero para o peso das tarefas familiares e domésticas em tempos de confinamento. “Estudamos se essa carga vai recair sobre as mães, se aumentou ou se foi compensada neste período. Também queremos ver como as políticas familiares prévias, como a licença-paternidade, influem nos pais que já estavam se encarregando mais dos filhos: se agora continuam sendo mais igualitários ou se isso se reverteu.”

Gabriel González de la Torre, da Universidade de Cádiz, está reutilizando os mesmos questionários que aplica em seus estudos sobre a psicologia das viagens espaciais. “É uma situação análoga, uma grande oportunidade, porque você tem as pessoas fechadas em casa, embora em uma situação que vai mudando. Sofremos porque não vemos o final da missão, como se tivéssemos um contratempo na nave e a volta para casa fosse adiada”, explica o psicólogo, crítico da pouca atenção que as autoridades estão dedicando à saúde mental. Juntamente com outras universidades europeias, a de Cádiz está estudando efeitos psíquicos, mas também questões como conflitos e consumo de estimulantes.

Os estudos que estão sendo realizados são inúmeros. A Universidade do Texas observou que há pessoas que passam quase uma jornada de trabalho, mais de sete horas diárias, mergulhadas em assuntos relativos à pandemia. Esse fator, a exposição permanente a informações sobre o vírus, aparece diretamente relacionado com sintomas depressivos e consumo de álcool. Na Universidade de Salamanca está sendo analisada essa influência da exposição às mídias sociais, como o WhatsApp, na percepção de risco e no mal-estar afetivo. Uma equipe da mesma universidade está descrevendo o fenômeno dos músicos de varanda, e no Loyola Behavioral LAB, em Córdoba, está sendo estudada a evolução da generosidade com o medo da pandemia. Nos EUA, observou-se que as pessoas mais acumuladoras são aquelas que mais têm, as que se sentem mais sozinhas e as mais jovens; que no Twitter está sendo vivido o maior período de tristeza; que os casais que se davam bem estão se dando melhor; e, como apontou o Instituto Kinsey, que a situação está sendo aproveitada para ampliar o repertório sexual.

Os aspectos políticos também estão sob a lupa acadêmica. Um grupo da Universidade de Barcelona, por exemplo, observou nos espanhóis uma mudança inicial nas preferências em direção a um Governo tecnocrático e autoritário. O sociólogo Pep Lobera, da Universidade Autônoma de Madri, está estudando a confiança na resposta de instituições e de Governos à crise, com dados de sete países. Os dados mostram, por exemplo, que em todos esses países a resposta de seus respectivos Governos é considerada muito fraca. “É muito complicado analisar algo em que você mesmo está envolvido, mas é difícil se concentrar em outras coisas. Acredito que muitos de nós pesquisamos aspectos da pandemia como uma pulsão defensiva diante do que está acontecendo conosco... É muito mais fácil começar a trabalhar nisto que está afetando tudo”, admite Lobera.

Mas pode haver um problema com muitos destes estudos. Para fornecer informações rapidamente, muitos deles estão circulando como pré-publicações, antes que outros colegas verifiquem que seus resultados são completamente confiáveis e úteis. Para evitar esse problema, no campo da psicologia já se organizaram pequenos exércitos de revisores para garantir que os estudos sejam publicados com rapidez, mas também com qualidade. “Queremos gerar dados o mais rápido possível, mas tomar as decisões mais bem informadas possíveis”, destaca Margarita Gómez. Por exemplo, a psicóloga experimental Helena Matute, da Universidade de Deusto, em Bilbao, pensou durante semanas em realizar um trabalho, mas acabou descartando a ideia. “Podemos fazer um experimento sobre pensamento mágico e ver que os níveis estão muito altos. Tudo bem, ótimo, mas vamos compará-lo com o quê? Ou seja, não poderíamos concluir de maneira nenhuma que isso se deva à pandemia”, explica. Durante décadas serão estudadas as consequências do que está acontecendo nestas semanas, por isso é fundamental que a foto que for tirada deste momento seja da melhor qualidade.

Viver na incerteza

Simone de Beauvoir escreveu no célebre livro “O segundo sexo” que era difícil se sentir uma princesa, em tempos de menstruação, com um incômodo pano entre as pernas.

É difícil se sentir o rei da cocada preta fechado em casa, com um medo de uma invisível partícula proteica que mata as pessoas e devasta a economia planetária. Sobretudo, é difícil sentir-se dono de grandes certezas, num mundo em que a normalidade foi para o espaço.

Edgard Morin merece admiração por isso. É quase centenário, e seu pensamento ao longo dos anos evoluiu para enfatizar a complexidade e a incerteza.


Apesar de ter escrito muitas vezes sobre segurança biológica e ter detectado o impacto desse vírus nos seus primórdios, confesso que, como quase todos os outros, o subestimei.

Ao sair de Fernando de Noronha, em 16 de março, ainda tinha esperanças de seguir viajando pelo Brasil, na presunção de que o vírus não chegaria aos lugares onde vou.

De fato, tenho tido contato permanente com pontos remotos do Brasil e, à exceção de Fernando de Noronha e grandes cidades, o vírus ainda não chegou lá.

Esqueci-me das estradas, dos postos de gasolina, dos restaurantes e hotéis no caminho, dos perigosos aeroportos e aviões. E esqueci que estava bem próximo dos 80 anos.

Interessante nesse mundo de grandes incertezas como as pequenas certezas nos mobilizam. As redes estão cheias de conselhos sobre o que ler, como se exercitar, rezar, o que comer, a que filmes assistir, como organizar toda a rotina.

Essa enxurrada de conselhos às vezes confunde. Por isso, achei engraçado um áudio que caiu na rede. Era de um homem que lamentava com a amiga: todos dizem que tenho de lavar as mãos, lavar as mãos, não se esqueça de lavar as mãos, mas eu queria também tomar um banho, será que pode?

Da mesma forma, achei interessante o desabafo de uma jovem diante de um certo otimismo exagerado, do gênero “o coronavírus veio para melhorar nossos sentimentos, aumentar a solidariedade, mudar o mundo”.

O vírus veio para nos destruir e devastar a economia. Essa é a verdade inicial. Ele não é revolucionário. Tudo vai depender de nossas escolhas daqui para a frente.

Sem dúvida, bons sentimentos afloraram, milhares de profissionais de saúde arriscam suas vidas pelas nossas, mas houve também quem tentasse aplicar golpe nas pessoas que precisam dos R$ 600 emergenciais, gente que hostilizou enfermeiros em transporte público, países que confiscam carregamento de máscaras ou especulam com o preço de equipamentos médicos.

O mundo continua um espaço onde bem e mal coexistem, assim como a grandeza e a miséria dos seres humanos não desapareceram com o vírus.

Certamente, ficaremos materialmente mais pobres, com movimentos mais limitados e sempre sujeitos a um novo recolhimento forçado, enquanto não aparecer uma vacina.

Certamente, sairemos mais humildes e não pronunciaremos o termo civilização com arrogância. Mas o que nos favorece é a grande capacidade humana de se adaptar às novas situações, e encontrar uma centelha de felicidade mesmo nos lugares e momentos mais difíceis.

Às vezes, à noite, depois de uma torrente de notícias pesadas, acordo sobressaltado, qualquer tosse noturna traz sempre a pergunta: será ele, o vírus, será essa a hora?

Tomei todas as precauções. Se ele entrou pelo vão da porta, se veio navegando pelo suave vento que entra pela janela, o que fazer?

Nessas horas, respira-se fundo e se reafirma o compromisso com a vida. No mais é como dizem nos países hispânicos: "que vengan los toros", "let it be", na linguagem dos 60.

Assim como as viagens, segundo o poeta, nos lembram que estamos sós ao nascer, o vírus pelo menos tem a utilidade de nos lembrar que somos mortais. Com ou sem ele, temos de usar bem esse tesouro: o tempo que nos resta.

Não quero adicionar mais uma avalanche de conselhos que nos soterra desde o início da crise.

Mas já parou para sentir como é bom respirar?

Para aprovar novos 'benefícios' aos banqueiros, Guedes criou falsas salvaguardas

Conforme denunciamos aqui na Tribuna da Internet neste sábado, dia 18, o ministro da Economia, Paulo Guedes armou uma jogada de mestre no projeto do “Orçamento de Guerra” e incluiu um dispositivo que permite aos bancos “vender” ao Banco Central seus “créditos podres” (empréstímos a pessoas físicas e jurídicas que não foram pagos a longo dos últimos 15 anos). Esse suposto prejuízo dos bancos chega a quase R$ 1 trilhão, sem contar outros trilhões de correção monetária e juros de mora.

A armação feita por Guedes permite que o Banco Central possa comprar, em mercado de balcão e sem o menor controle, esses papéis antigos existentes nas carteiras de bancos. Essa vergonhosa excrescência, que nada tem a ver com a pandemia, veio a ser aprovada na Câmara.


Esse golpe no erário está previsto no parágrafo 9º do artigo 115, que autoriza o Banco Central a atuar em mercados de balcão e comprar qualquer tipo de papel privado, entre os quais derivativos e outros créditos, que incluem a carteira de empréstimos não pagos por clientes nacionais ou estrangeiros, sem qualquer limite ou controle. Com essa manobra, o governo assumirá os prejuízos e riscos dos bancos, engordando ainda mais seus lucros, às custas do Tesouro Nacional.

A especialista Maria Lúcia Fattorelli, criadora do site Auditoria Cidadã, identificou o golpe de Guedes e o denunciou ao senador Antonio Anastasia (PSDB-MG), relator da PEC 10/2020, que versa sobre o “Orçamento de Guerra”.

O relator da PEC 10/2020 se assustou, porque a proposta já tinha sido aprovada na Câmara. Mas cometeu um erro. Ao invés de derrubar o dispositivo, indagou à equipe econômica como deveria proceder.

Assim, na chamada undécima hora, Anastasia alterou seu parecer para impedir o golpe de Guedes, mas o resultado ainda não é satisfatório, porque a equipe econômica conseguiu deixar estratégicas brechas na lei.

O fato concreto é que Anastasia aceitou as “salvaguardas” de Guedes, mas todas são ilusórias. A primeira diz que o BC só comprará ações privadas desde que limite as operações a mercados secundários nacionais, mas isso não altera o risco e a obscuridade das operações nesse mercado de balcão, pois papéis relacionados a créditos internacionais podem ser negociados no mercado nacional.

A segunda “salvaguarda’, segundo a equipe de Maria Lucia Fattorelli, também é ardilosa. Prevê que os ativos a serem adquiridos pelo Banco Central tenham classificação em categoria de risco de crédito equivalente a “BB-“, ou seja, coloca na Constituição que o BC poderá comprar ativos de “grau especulativo”, que é o significado de “BB-“.

Além disso, s agências classificadoras têm tido sua conduta seriamente questionada, em especial desde a Crise de 2008, por atuarem a favor de seus contratantes, ou seja, os bancos, com evidentes conflitos de interesses. Também têm sido acusadas de fraudes até em processos movidos pelo governo dos Estados Unidos,

Ademais, será altamente questionável a avaliação, por uma agência internacional de risco, de derivativos privados emitidos por empresas não-financeiras, sendo que tais ativos sequer são negociados em bolsas de valores! É evidente a impossibilidade de uma avaliação minimamente séria!

Por fim, Anastasia aceitou dar preferência à aquisição de títulos emitidos por micro, pequenas e médias empresas, o que denota desconhecimento quanto ao tipo de empresa que pode emitir papéis financeiros (debêntures e derivativos que a PEC 10/2020 menciona).

Somente grandes empresas – S/A – podem emitir tais papéis, a não ser no caso de empresas de fachada, fantasmas, ou as novas empresas estatais não dependentes, que têm sido criadas para operar esquemas financeiros fraudulentos da denominada Securitização de Créditos Públicos (estas costumam ser criadas com capital reduzido e emitem debêntures com garantia estatal elevadíssima).

O próprio relator, em seu parecer, afirmou que nenhuma empresa seria beneficiada com recursos dessas aquisições feitas pelo Banco Central, e chegou a usar essa afirmação como argumento para rejeitar emendas de senadores que pediam contrapartidas (manutenção de empregos e não distribuição de lucros aos sócios). Ou seja, os bancos é que serão os maiores beneficiários.

Como se vê, o relator Anastasia foi iludido ou se aliou à equipe econômica, ao aceitar as falsas salvaguardas. Agora a PEC desceu para a Câmara, e espera-se que seja expurgada mais essa generosidade do ministro Guedes para seus amigos banqueiros.

Agora, as perguntas do site Auditoria Cidadã, que a equipe econômica e o presidente da República têm de responder, são instigantes, inquietantes e intrigantes: “Por que autorizar o Banco Central a comprar de carteiras de derivativos e outros papéis privados de empresas e bancos nacionais e estrangeiros em poder dos bancos? Isso não significará ajuda alguma para as empresas ou para a economia do país, mas exclusivamente beneficiará os bancos! E isso não tem absolutamente nada a ver com a pandemia do coronavírus! Qual é a urgência dessa medida?”

Perdemos o caminho de casa

1.

Volte para o quarto da sua infância que não existe mais. Antes disso, tente reconstruí-lo intacto, suspenso no ar.

O cômodo era simples, quadrado, uma cela com as dimensões da que você ocupa hoje, décadas depois. Em frente ao catre, uma mesinha com o tesouro mais valioso: uma caixa robusta de metal, um Gradiente MSX, ligado ao televisor de tubo e ao teclado. Ali você se debruçava para datilografar linhas em BASIC reproduzidas de compilações com encadernação colorida. Eram formas geométricas em arranjos cinéticos, objetos craquelados, enigmas, ilusões, livro-jogos que você reinventava – para depois perdê-los num átimo, a cada tomada elétrica.

Não havia conexão telefônica, discos, nem sequer fitas-cassete num datacorder, seu som estridente transformando-se em código. O aparelho não guardava nada, o jovem monge recopiava.

Na cabeceira, um pequeno refletor iluminava sobre os lençóis pilhas de livros, ele próprio equilibrado sobre outra. Junto à janela, uma amendoeira antiga, e às vezes o vento levava uma grande folha cor de cobre – gentileza da amendoeira. Que tinha outras: rolinhas cinzentas que entravam corredor adentro, seguindo riscos de alpiste até a sala.

E, no verão, como as cigarras zuniam. E, toda noite, como os boêmios urravam – vivíamos sobre um bar. Em certas tardes mudas dos finais de semana, você desenterrava um carretel parrudo e traçava teias, amarrando os móveis uns aos outros até que ninguém pudesse passar por ali, o derradeiro laço envolvendo o nó de porcelana da porta, agora fronteira trancada entre você e o mundo.

2.

Andamos com mania de passado.

Cada dia trancado em casa, um passo montanha acima, de onde tentamos contemplar o caminho que nos trouxe até aqui – sobre um mar de névoa, como naquele óleo de Caspar David Friedrich.

E lembrar, talvez de quartos em que a porta podia ser aberta, o barbante cortado. Onde fomos felizes com amores antigos, que nos vêm de assalto, como um sopro de ar quente no meio de uma dessas tardes tão iguais à ontem. Quartos de onde vimos os fascistas marchando pela janela, enquanto nossa cama convertia-se num porão. Quartos, ainda, onde olimpicamente sozinhos abandonamos toneladas de horas encarando o teto, mas cujas regras e horários de entrada e saída eram definidas pelo nosso desejo – ou equilíbrio dos neurotransmissores, que seja.

Hoje, vivemos em cidades sem cigarras e pássaros, nossos apartamentos da infância já foram demolidos. Trancar-se não é mais uma opção, e as portas apenas sublinham nossa fragilidade. Do alto da montanha, quando as nuvens se dissipam, finalmente enxergamos um labirinto. Como Paul Valéry olhando a lua ao amanhecer, "como se eu não estivesse em meu coração".

Todos perdemos o caminho de casa, todos – e ao mesmo tempo.


3.

Minha amiga em Berlim diz que as pessoas estão experimentando um tipo de depressão forçada. Algo que nós, jedis do claustro, conhecemos bem. Lanna escreve: "Nós compartilhamos esse ciclo desafortunado de notícias, novas mortes, esse e aquele desastre, regras contra o contágio, e a dúvida se isso vai mudar tudo, e se nada for igual de novo, e o que isso significa? Quantas mortes hoje, as pessoas estão exagerando, quais são as regras, como lavo as mãos, e se eu não estiver lavando minhas mãos o suficiente? E daí nós tentamos nos distrair com filmes, ou pornografia, ou lendo, e ficamos cada vez mais tempo com a tela, sozinhos. Parece demais e não o suficiente ao mesmo tempo."

Meu amigo em Paris está visitando hospitais para escrever sobre a pandemia. Mario escreve: "Hoje fui a uma unidade dos pacientes mais críticos. Grande maioria de homens. Muitos usando um pulmão artificial. Não é um respirador. É uma máquina que drena teu sangue, oxigena e injeta de novo no teu corpo. Perguntei pro médico qual era a porcentagem de pacientes curados. Ele me disse que 30%. Até agora não sei se entendi direito, embora faça todo o sentido pelo que se vê. Vários ali já parecem mortos. Todos na faixa dos 35 aos 55 anos, sem patologias prévias."

"Tudo bem?" – minha amiga de São Paulo pede desculpas antes de desabafar: "Você quer mesmo saber? É que hoje 'tudo bem' deixou de ser uma pergunta retórica."

4.

Uma pandemia vivida 24/7 online: talvez não exista outro evento histórico a unir tantos seres humanos sob a mesma circunstância. Mesmo as Guerras Mundiais do século passado desenrolaram-se com lógica mais fragmentada, espalhadas pela cronologia e pelo espaço. Mas hoje parecemos estar sob a mesma ameaça, com os mesmos temores, ao mesmo tempo.

Nunca antes tão juntos – e tão sozinhos em nossos quartos.
J.P. Cuenca