1.
Volte para o quarto da sua infância que não existe mais. Antes disso, tente reconstruí-lo intacto, suspenso no ar.
O cômodo era simples, quadrado, uma cela com as dimensões da que você ocupa hoje, décadas depois. Em frente ao catre, uma mesinha com o tesouro mais valioso: uma caixa robusta de metal, um Gradiente MSX, ligado ao televisor de tubo e ao teclado. Ali você se debruçava para datilografar linhas em BASIC reproduzidas de compilações com encadernação colorida. Eram formas geométricas em arranjos cinéticos, objetos craquelados, enigmas, ilusões, livro-jogos que você reinventava – para depois perdê-los num átimo, a cada tomada elétrica.
Não havia conexão telefônica, discos, nem sequer fitas-cassete num datacorder, seu som estridente transformando-se em código. O aparelho não guardava nada, o jovem monge recopiava.
Na cabeceira, um pequeno refletor iluminava sobre os lençóis pilhas de livros, ele próprio equilibrado sobre outra. Junto à janela, uma amendoeira antiga, e às vezes o vento levava uma grande folha cor de cobre – gentileza da amendoeira. Que tinha outras: rolinhas cinzentas que entravam corredor adentro, seguindo riscos de alpiste até a sala.
E, no verão, como as cigarras zuniam. E, toda noite, como os boêmios urravam – vivíamos sobre um bar. Em certas tardes mudas dos finais de semana, você desenterrava um carretel parrudo e traçava teias, amarrando os móveis uns aos outros até que ninguém pudesse passar por ali, o derradeiro laço envolvendo o nó de porcelana da porta, agora fronteira trancada entre você e o mundo.
2.
Andamos com mania de passado.
Cada dia trancado em casa, um passo montanha acima, de onde tentamos contemplar o caminho que nos trouxe até aqui – sobre um mar de névoa, como naquele óleo de Caspar David Friedrich.
E lembrar, talvez de quartos em que a porta podia ser aberta, o barbante cortado. Onde fomos felizes com amores antigos, que nos vêm de assalto, como um sopro de ar quente no meio de uma dessas tardes tão iguais à ontem. Quartos de onde vimos os fascistas marchando pela janela, enquanto nossa cama convertia-se num porão. Quartos, ainda, onde olimpicamente sozinhos abandonamos toneladas de horas encarando o teto, mas cujas regras e horários de entrada e saída eram definidas pelo nosso desejo – ou equilíbrio dos neurotransmissores, que seja.
Hoje, vivemos em cidades sem cigarras e pássaros, nossos apartamentos da infância já foram demolidos. Trancar-se não é mais uma opção, e as portas apenas sublinham nossa fragilidade. Do alto da montanha, quando as nuvens se dissipam, finalmente enxergamos um labirinto. Como Paul Valéry olhando a lua ao amanhecer, "como se eu não estivesse em meu coração".
Todos perdemos o caminho de casa, todos – e ao mesmo tempo.
3.
Minha amiga em Berlim diz que as pessoas estão experimentando um tipo de depressão forçada. Algo que nós, jedis do claustro, conhecemos bem. Lanna escreve: "Nós compartilhamos esse ciclo desafortunado de notícias, novas mortes, esse e aquele desastre, regras contra o contágio, e a dúvida se isso vai mudar tudo, e se nada for igual de novo, e o que isso significa? Quantas mortes hoje, as pessoas estão exagerando, quais são as regras, como lavo as mãos, e se eu não estiver lavando minhas mãos o suficiente? E daí nós tentamos nos distrair com filmes, ou pornografia, ou lendo, e ficamos cada vez mais tempo com a tela, sozinhos. Parece demais e não o suficiente ao mesmo tempo."
Meu amigo em Paris está visitando hospitais para escrever sobre a pandemia. Mario escreve: "Hoje fui a uma unidade dos pacientes mais críticos. Grande maioria de homens. Muitos usando um pulmão artificial. Não é um respirador. É uma máquina que drena teu sangue, oxigena e injeta de novo no teu corpo. Perguntei pro médico qual era a porcentagem de pacientes curados. Ele me disse que 30%. Até agora não sei se entendi direito, embora faça todo o sentido pelo que se vê. Vários ali já parecem mortos. Todos na faixa dos 35 aos 55 anos, sem patologias prévias."
"Tudo bem?" – minha amiga de São Paulo pede desculpas antes de desabafar: "Você quer mesmo saber? É que hoje 'tudo bem' deixou de ser uma pergunta retórica."
4.
Uma pandemia vivida 24/7 online: talvez não exista outro evento histórico a unir tantos seres humanos sob a mesma circunstância. Mesmo as Guerras Mundiais do século passado desenrolaram-se com lógica mais fragmentada, espalhadas pela cronologia e pelo espaço. Mas hoje parecemos estar sob a mesma ameaça, com os mesmos temores, ao mesmo tempo.
Nunca antes tão juntos – e tão sozinhos em nossos quartos.
J.P. Cuenca
Nenhum comentário:
Postar um comentário