quarta-feira, 3 de fevereiro de 2021

Somos contagiosos

E contagiantes, dizia meu mentor, o pioneiro brasilianista Richard Moneygrand, hoje isolado numa empesteada Manhattan. Em suas aulas, ele citava Rousseau e Nietzsche, ampliando a apreciação de que o homem é um animal doente, justamente porque não tem um destino prefixado. Sujeito e objeto de desejos e fantasias, ele pode ser tudo de bom e de ruim.

Apreendi que somos humanos justamente porque somos contamináveis e mortais. A consciência da transitoriedade é o testemunho das nossas contaminações. Vivemos em meio a múltiplos contágios e temos até receitas (como os casamentos, as formaturas e os aniversários) para nos contagiar.

Sendo onívoros e onipotentes, podemos ser super-heróis e deuses. Muitos de nós, aliás, nascem humanos e morrem monstros.

O processo de “humanização” veio do contato e da contaminação nas suas formas construtivas da troca e do diálogo; e nas suas modalidades destrutivas da guerra e das endemias. Aprender com o outro ou detestá-lo; tentar fazer como ele, compreendendo, manipulando ou aperfeiçoando suas crenças é o nosso segredo de Polichinelo – finalizava o mestre.

Relações – contatos, juramentos, paixões e contratos – são contagiantes. “Diz-me com quem andas e dir-te-ei quem és!”, dizia Goethe. A troca é a ponte que permite estar com o outro sem sair de si mesmo. A grama do vizinho é sempre mais verde, bem como – afirmava tio Marcelino – sua mulher...

Somos contagiados, mas queremos ser contagiantes como as celebridades que admiramos. O cerne da fama é a capacidade de contaminar e assim envolver os outros.


Nossos tiques, nossas manias, fobias e predileções nos distinguem porque revelam imunidades. Tenho amigos “vacinados” contra café, pão, leite e até mesmo a saudável água de bica. Meu tio Silvio cantava: “Morte ao leite degradante / Morte à água que enferruja / Salve a Brahma, edificante!”.

Costumes e, acima de tudo, as línguas que falamos nos constrangem, mas há sempre espaço para a “vacina” do aprendizado, da recusa ou do desvio. Daí os sotaques, as gafes, e as abstinências reveladoras de que, mesmo sem ter consciência democrática, já aceitávamos exceções sociais que são respostas aos excessos de dentro ou de fora.

Tudo isso sem esquecer a negação das pestes políticas conhecidas como nacional-socialismo, stalinismo, os ibéricos salazarismo e franquismo e os fascismos em geral, essas enfermidades extasiadas pela morte, cujo vírus é duro de vacinar. O elo entre a contaminação político-ideológica e a peste é, desde o Jardim do Éden, e de Albert Camus e George Orwell, patente.

Em todo sistema, existem coisas que podem pegar. De onde vem a moda ou a gíria que individualiza as gerações dentro de uma mesma sociedade? Ou a malandragem que fura as regras e estabelece uma ética de ambiguidade?

O que chamamos de “hábito” (ou praxe), esse berço de preconceitos, resulta de um inexorável contágio. Quando dois contágios se encontram, há cataclismos físicos e mentais. É o que ocorre quando você aprende desde criança a abraçar como forma de afago e carinho, mas o vírus mortal demanda isolamento e distância. Diante de receitas de vida tão contraditórias, que forma de contaminação preferimos?

Para nós, brasileiros, isolamento é “gelo”, abandono e exílio ou morte social. Na América, ela é um valo, daí a teimosia em seguir regras. Formas de contaminação opostas às habituais prenunciam desastres. É como aprender uma nova língua ou viver com saúde sem esquecer a contaminação e a morte.

Quando assimilamos um mínimo da doença, ficamos inoculados. A vacina contra o outro (que promove incômoda ampliação ou redução da nossa humanidade) está em compreender suas razões. Construir pontes é tão difícil quanto o amor – essa doença-cura que nos perpetra humanos. Se, mesmo em escala menor, sofremos a doença do outro, pois não viramos estrangeiros de nós mesmos, saímos da dualidade de vê-lo como superior ou inferior para decifrá-lo como uma alternativa. Essa é a vacina.

O princípio dos epidemiologistas é o mesmo dos antropologistas. A gente só se sente à vontade num outro sistema quando o assimilamos. Um mundo globalizado requer uma humanidade extensiva, capaz de diminuir (ou até mesmo apagar) fronteiras e sanar desigualdades. É preciso vacinar o mundo com o manto da humanidade, inoculando nele as velhas moléstias racistas e nacionalistas.

Neste nosso Brasil (que estaria acima de todos!), a índole igualitária da fila é um problema porque os nossos fidalgos odeiam esperar e assim aplicam sem pudor o costumeiro e antidemocrático “você sabe com quem está falando?” e furam a fila. É o retorno de um velho dilema: a vacina liquida a doença, mas só nós – brasileiros – temos a cura do mal-estar causado por uma ética de ambiguidade.

Pensamento do Dia

 


República de bananas podres é de poucos

Desde 21 de abril o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), mandou a Polícia Federal (PF) investigar para descobrir financiadores e participantes de atos antidemocráticos que pregavam intervenção militar com Bolsonaro no poder. E o fechamento do Congresso e do “excelso pretório”. Na semana passada, a delegada encarregada, Denisse Dias Rosas Ribeiro, declarou-se incapaz de denunciar quem participou da subversão às portas do Quartel-General do Exército e quem pagou os fogos de artifício com que os fascistoides fingiram bombardear a sede do STF.

O ministro da Justiça do primeiro governo Lula, o criminalista Márcio Thomaz Bastos, tentou cobrir o sol com a peneira quando foi revelado que a PF fez escutas telefônicas não autorizadas pela Justiça de ministros do STF e do filho do ex-presidente. “É uma polícia republicana”, mentiu. Mas a PF não era guiada pela hierarquia funcional, e, sim, por petistas, liderados por Paulo Lacerda, que foi seu diretor, bem como da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), tucanos e viúvas do xerife Romeu Tuma. Há algum tempo, quem manda é Bolsonaro. Na sua facção milita o federal não identificado que delatou, segundo o empresário Paulo Marinho, ao então deputado estadual Flávio Bolsonaro que a Operação Furna da Onça fora adiada para evitar prejuízos à chapa de seu pai no segundo turno da eleição. E que o factótum do gabinete dele na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj), Fabrício Queiroz, teve pilhadas em sua conta pessoal “movimentações atípicas” pelo Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf).


O Grupo de Atualização Especializada em Combate à Corrupção (Gaecc) do Ministério Público do Rio (MP-RJ) reuniu provas de quatro crimes praticados pelo primogênito do presidente: peculato (uso de dinheiro público em benefício próprio), corrupção, lavagem de dinheiro e organização criminosa. Dos 22 membros, uma foi nomeada pelo atual procurador-geral do Rio, Luciano Matos. E as outras 21 nomeações estão no freezer. Cláudio Castro, governador de plantão no Rio, é íntimo da famiglia Bolsonaro, em especial do filhote 001. O novo chefe do MP-RJ foi o mais votado entre os colegas, liderando a lista tríplice que foi encaminhada a Castro. Não se sabe como será conduzido o inquérito, que sofre bombardeio pesado de órgãos da Presidência da República. O pai em pessoa chefiou uma reunião da Abin e o Gabinete de Segurança Institucional (GSI), para, no mínimo, apresentar queixumes das advogadas de defesa do acusado, que nunca apresentou um argumento documentado contra o libelo dos procuradores, sempre recorreu a órgãos superiores do Judiciário para paralisar e obstruir seu trabalho.

Esse não foi o caso do inquérito da delegada federal Ribeiro, que ignorou o princípio fundamental do Código de Processo Penal (artigo 197), segundo o qual fatos públicos e notórios dispensam provas. E ignorou atentados à democracia, tais como o bombardeio com fogos de artifício da sede do STF e o passeio do helicóptero de Bolsonaro com seu ministro da Defesa, general Fernando Azevedo (de óculos escuros, tradicional figurino dos tiranetes latino-americanos), em apoio a golpistas munidos de cartazes, faixas e gritos de ódio à cidadania. Idêntica foi a atitude do juiz Ney Bello, do Tribunal Regional Federal da 1.ª Região (TRF-1), ao encerrar inquérito sobre Frederick Wassef, ex-advogado de Flávio e lobista assíduo da intimidade palaciana, dispensado de explicar a presença do presidiário Queiroz em seu falso escritório de causídico de ocasião em Atibaia. Na decisão, ele foi acompanhado por Maria do Carmo, amiga de Flávio Bolsonaro e dada no STJ como madrinha de Kassio Marques, recente indicação do pai Jair ao STF. Dos bastidores brasilienses consta que Bello também é o favorito de Gilmar Mendes para o lugar de Napoleão Maia, recém-aposentado no STJ.

Essa dança macabra de cadeiras é rotineira em substituições de aposentados nos tribunais superiores. Da mesma forma, as emendas bilionárias de parlamentares foram assinadas pelo chefe do Executivo. Elas representam, contudo, muito mais o poder do Centrão do que a força do capitão artilheiro. O buraco, no caso, é mais embaixo: a garantia de impunidade para condenados, denunciados, acusados e suspeitos de corrupção. Isso confirma o que descreveu o desembargador paulista Fausto De Sanctis na série Nêumanne Entrevista em meu blog no portal do Estadão. Mais do que uma derrota das operações do tipo Lava Jato, trata-se de um retrocesso para as priscas eras a elas anteriores. Bolsonaro assume o aparente comando da operação “solta todos” porque ele, e não apenas os filhos, sabe o que fez no verão passado. É o que acusou, explicitamente, o deputado Kim Kataguiri, em outra entrevista dessa série.

Os ratos fugiram dos porões e subiram à torre de comando, onde o suposto capitão da nave a conduz para cruzeiro confortável, o mais distante possível das tempestades armadas pelas operações de combate à corrupção e às ações policiais contra o crime nesta república de bananas podres.

O liberalismo 'Viúva Porcina'

A política econômica no Brasil poucas vezes foi liberal em nossa história, menos ainda por convicção. O liberalismo só ganha ímpeto nas crises. Na atual, nem isso.

Historicamente, prevaleceu o nacional-desenvolvimentismo - mesmo quando não existia esse termo, do pós-guerra –, que defende a intervenção estatal para a promoção do desenvolvimento de economias atrasadas. Não há preocupação com o desequilíbrio fiscal e a política monetária é condicionada ao estímulo da economia.

Em vez de eliminar os problemas estruturais que obstruem o desenvolvimento, como a baixa qualificação da mão de obra e a insegurança jurídica, busca-se atalhos e privilegia-se alguns setores - em geral empresas ineficientes que não conseguem se tornar competitivas - em detrimento dos demais.

Enquanto isso, o liberalismo condena artificialismos e preconiza medidas horizontais, com resultados favoráveis também em países emergentes.


O fato é que a ação estatal fracassou. Não se trata de erros de implementação, como alguns argumentam, mas de concepção - como na “canetada” nas tarifas de energia em 2013. Políticas são renovadas mesmo quando não funcionam, como a Zona Franca de Manaus, que nem desenvolveu a região, nem preservou a floresta.

Erros de política econômica geralmente demoram para se materializar, como nos governos Geisel e Dilma, responsáveis pelas mais graves crises da nossa história. Isso dificulta a compreensão da sociedade, que muitas vezes hostiliza quem faz o ajuste. Este, por sua vez, não é lei da física; depende de convicção e liderança do presidente.

O liberalismo, por outro lado, não se apresenta satisfatoriamente à opinião pública como agenda republicana, do bem-comum.

Avalio que a fraqueza remonta à formação da intelectualidade ainda no Império, com predomínio dos bacharéis liberais da escola de direito de São Paulo. Na imprensa, na política e no serviço público, defendiam a liberdade para os negócios, mas se ajustaram ao patrimonialismo, como aponta Sérgio Adorno.

Os proprietários rurais defendiam o liberalismo de forma oportunista, pois demandavam proteção e ajuda estatal nos momentos críticos. Além disso, o pensamento liberal não acompanhou valores democráticos de igualdade. Como resultado, foi associado à elite conservadora.

A ditadura militar prejudicou bastante o liberalismo na opinião pública. A linha dura militar resgatou o nacional-desenvolvimentismo, depois das iniciativas liberais de Castello Branco, que combateu a inflação e conduziu reformas, como a criação do Banco Central com autonomia.

Com a crise aberta, o governo Figueiredo retomou a ortodoxia, que ficou associada ao autoritarismo. Mas ficou o saudosismo no nacional-desenvolvimentismo, ignorando o legado da década perdida dos anos 1980.

O governo Collor, com abertura comercial e privatização, tampouco contribuiu para reforçar o pensamento liberal, por conta do fracassado plano de estabilização.

FHC e Lula 1, por convicção ou pragmatismo, avançaram com políticas de cunho liberal, sob bombardeios. Escaldados, não apresentaram suas plataformas como sendo liberais, pela associação equivocada a entreguismo e elitismo.

O preconceito foi atenuado após o desastre de Dilma e com o caminho iniciado pelo impopular governo Temer, que compreendeu o momento. Bolsonaro, presidente eleito, desperdiça a oportunidade aberta.

Mais uma vez, monta-se um cenário de desmoralização do liberalismo. O governo se apresenta como liberal, mas não é. Pior, seu discurso está associado ao anticientificismo e a valores antidemocráticos, contaminando o debate público.

Não há avanços em abertura da economia, privatizações, redução de benefícios tributários e eliminação de privilégios do funcionalismo - temas que dependem de (inexistente) convicção e liderança do Executivo. Não se trata de bancar as eleições das presidências do Congresso.

A grave crise deveria fortalecer as reformas liberais, inclusive para se atender às demandas por recursos públicos sem ferir o compromisso com a disciplina fiscal. Não é ao que se assiste.

Somos um país de crenças estatizantes e com grupos organizados com capacidade de bloquear reformas. Liberalismo não é para os fracos. O governo pode estar comprometendo seu tardio e tímido avanço no debate público, podendo abrir espaço para retrocessos em momento crítico da economia brasileira.

Com Brasil à deriva, Bolsonaro contribui para causar uma grave crise institucional

Ao longo de toda a sua vida política, o atual presidente, Jair Bolsonaro, sempre deixou claro, através de inúmeras ações e embates, que, diante da ausência do diálogo e do respaldo de sólidos projetos, enveredaria pela propagação da desinformação, das teorias conspiratórias e, sobretudo, dos violentos ataques aos que ousassem discordar de suas narrativas, por vezes alucinadas.

O que explicitamente poderia compor contra a sua pretensa caminhada, encontrou simpatia em uma massa que cresceu exponencialmente ao longo dos últimos anos por diversos motivos, seja por admiração, similaridade de pensamentos ou simplesmente raiva da urna eletrônica; razões pelas quais, em 2018, seus eleitores garantiram a cadeira presidencial para o Forrest Gump tupiniquim.

Com Bolsonaro, o país rubricou por quatro anos o mais caro pacote combo dos planos ofertados por ocasião da eleição, já que a reboque, os brasileiros ganharam não somente um contador de histórias, mas também três figurantes de mandatários – os filhos 01, 02 e 03 – com direito a vergonhosos pitacos na condução do país, gerando, por vezes, estrondosos ruídos internacionais, além de um vasto leque de questionáveis ministros e secretários que seguem à risca a premissa do “manda quem pode, obedece quem tem juízo”.

Thomas Wong (Canadá)

Assim, Bolsonaro se faz onipresente em todos os ministérios e secretarias. Espirrou fora do tom, está fora. Sem conversa ou direito à explicação. E que passe a boiada, adiante com o berrante, sob a batuta do imperativo monólogo presidencial.

Desde quando ainda cochilava pelas Casas Legislativas, e lá se foram três décadas, Jair sustentou o seu vazio discurso através de pautas igualmente descabidas, a exemplo da luta contra a invasão comunista, da urgência em disponibilizar vias legais para que o cidadão “de família” andasse armado ou ainda da sumária exclusão das falsas cartilhas escolares, entre tantas outras bandeiras fugazes e duvidosas.

Ao longo de dois anos de mandato no Planalto, o atual presidente remou contra a maré quase que diariamente, contradizendo recomendações adotadas por todo o mundo, ignorando a realidade pandêmica, chutando estatísticas, expondo a população à própria sorte, promovendo desencontros e rindo da promoção de conflitos.

Entoando o seu samba de uma nota só, Bolsonaro foi capaz de mentir reiteradas vezes para todo o país, negando os seus próprios discursos anteriores, inflamando os seus currais eleitorais, quebrando a bússola do bom senso e deixando o país definitivamente sem rumo.

Não há seriedade ou planejamento estratégico. As promessas de mudanças ficaram restritas à campanha eleitoral e, ainda que consiga chegar até o fim de sua gestão, Bolsonaro certamente não conseguirá provar a que veio. E não por culpa da crescente e insatisfeita oposição, pelos percalços do caminho ou ainda em virtude da crise sanitária, mas pela sua intrínseca incapacidade de gerir um condomínio, quiçá um país de dimensão continental.

Parafraseando o cineasta Luis Buñuel, “as oportunidades não abundam, e raramente as encontramos uma segunda vez”. E, por maior que seja a resiliência exigida da sociedade, o presidente ultrapassou o seu limite no cartão corporativo da boa vontade e já deu reiteradas oportunidades para ser cancelado definitivamente do cenário político. Só falta o providencial carimbo em seu passaporte para uma viagem apenas de ida.

Por enquanto, o Brasil segue desgovernado e à deriva. Os poucos coletes que ainda restavam, Bolsonaro fez questão de jogar ao mar.

2021: Reinventar o mundo, só baseado no conhecimento

Nunca tive jeito para profeta e receio os que pretendem ser. Mas, como John Lennon, nunca deixei de imaginar um mundo melhor. Não é necessária uma literacia histórica profunda para perceber que muitas das utopias prometidas se converteram rapidamente em distopias e que os avanços que beneficiaram gerações sucessivas, continuam a deixar muitos de fora.

A ideia de que “o conhecimento é poder” renasce no ocidente em 1597, com Bacon. Mas o conhecimento tanto pode ser usado para construir um mundo melhor, como para fazer exatamente o contrário. O século XX está pejado de exemplos do que acabo de referir. Hoje percebemos que o conhecimento (sempre incompleto), se for usado de forma integradora, prudente e dialogante, tem uma força imensa. Será chamado para a tomada de decisões em nossa casa, na instituição onde trabalhamos, na cidade e no país onde vivemos e no planeta que partilhamos. É desse conhecimento, em construção, que gostaria de falar.

Os grandes desafios do ano que termina, não são novos. Descobrir vacinas começa com Edward Jenner em 1796, e os objetivos de desenvolvimento sustentável, definidos pelas Nações Unidas em 2015, continuam atualíssimos. Em 2020 essa “lista de coisas a fazer em nome dos povos e do planeta” só se tornou mais urgente. E a pandemia ajudou-nos a entender a complexidade das interligações entre a alimentação, a saúde, o clima, o ambiente, a economia e a política. Com menos de dois milhões de mortes, é de relembrar que as doenças não transmissíveis vitimizam anualmente 40 milhões de seres humanos. Que as vítimas da falta de acesso a estratégias eficazes de planeamento familiar ou do trabalho infantil perduram em muitos países. E que, quase diariamente, ouvimos falar das vítimas das discriminações gritantes, quer étnicas, quer religiosas, políticas e de género.

São três as minhas preocupações atuais. O impacto evidente das alterações climáticas, a agressividade crescente dos movimentos identitários e o saldo final das fake news.

Não deixa de ser irónico já sabermos tanto, e há tanto tempo, sobre as alterações climáticas, e ainda estarmos tão longe de as conseguir mitigar. Os triliões de dados (a Big Data), acumulados há mais de 60 anos, estão na base das previsões que se tem vindo a confirmar anualmente. A nova liderança nos EUA dá-nos alguma esperança, mas o que resta por fazer é gigantesco. Portugal tem sido exemplar neste domínio. Uma Lei de Bases sobre as políticas climáticas, atualmente em discussão no nosso Parlamento, confirma essa posição.

Sempre entendi e participei nas lutas identitárias como necessárias na afirmação da igualdade de direitos. E sei que essas lutas estão longe de terem sido ganhas. Mas sinto uma pressão crescente para um certo tipo de “rotulagem” que enfatiza as diferenças e, na maioria dos casos, não nos aproxima uns dos outros. Eu gostaria de viver num mundo pós-etnia, pós-nação, pós-género, pós-…, e vejo o mundo a caminhar na direção oposta. A resposta europeia à pandemia abre uma nova esperança. Uma utopia?

As fake news e a ideia que todas as opiniões não passam de narrativas diferentes, são assustadoras. Assim como a de que uma opinião repetida muitas vezes, tem de ser verdadeira! A deificação da Natureza e do Natural vem a propósito e o debate atual sobre a vacinação é um excelente exemplo. Muitos dos que não se querem vacinar dizem que, não sendo essa a forma natural de o organismo se defender do vírus, ela deve ser evitada. Ignoram deliberadamente o facto de que ao não se vacinarem, tornam-se fatais para muitos outros, incluindo os que, sofrendo de outras doenças, passaram a ter maior dificuldade de acesso aos serviços de saúde. E esquecem-se que, quase tudo o que a medicina consegue fazer não tem nada de natural. Os antibióticos, as transfusões, os transplantes, a “pílula” e a procriação medicamente assistida resultaram de avanços do conhecimento. As vacinas também. Conforta-me saber que todas estas formas de ultrapassar a Natureza já melhoraram ou salvaram a vida de milhões de seres humanos.

A vivência parlamentar tem consolidado a ideia de que é valorizando o conhecimento, que conseguimos imaginar um mundo melhor.