terça-feira, 8 de maio de 2018


Novos quilombos

O Brasil foi o último país das Américas a abolir a escravidão, 28º do mundo. Quando a princesa Isabel assinou a Lei Aurea, em 1888, o país tinha 10 milhões de habitantes e mais de 138 mil escravos que, sem dono e sem teto, foram favelar-se nos morros e nas periferias das grandes cidades.

Por lá ficaram em luta, parece, eterna para sobreviver à margem. Viver é coisa muito perigosa para os menos iguais. Eles que o digam.


Cresceu o Brasil, cresceram as favelas – guetos dos que, no Império, eram nominados como elemento servil, hoje como excluídos.

Também cresceu a distância entre riqueza e pobreza. (Quando ela encurta um bocadinho, o bicho pega, né não?).

Dos nossos 207,7 milhões de habitantes, 60 milhões vivem nas periferias urbanas, 11 milhões em favelas.

Seis milhões são sem teto, os mais dos mais excluídos sociais, os que sequer têm precários barracos para chamar de seu, como as 146 famílias vítimas do incêndio no Edifício Wilton Paes de Almeida, do Largo Paissandu, em São Paulo.

São eles os invisíveis habitantes dos novos quilombos urbanos. Vulneráveis na estatística e na vida.

No dicionário quilombo é definido como povoação fortificada de negros fugidos do cativeiro, dotada de divisões e organização interna, onde também se acoitavam índios e eventualmente brancos socialmente desprivilegiados.

Foram espaços de resistência ao status quo. Como são agora as invasões dos Sem Teto, dos Sem Terra. Onde “se acoitam” e se organizam os socialmente desprivilegiados – de todos os tons de pele, com maioria negra. Herança de lá de trás, da escravidão.

Na desgraça, os invisíveis ganham visibilidade. Provocam a compaixão de uns e metem medo nos mais confortáveis com o status quo vigente.

Ao enxerga-los assim reais, de carne e osso, ignoram que são o tal próximo, que devem amar como a si mesmo, e veem apenas malditos invasores de propriedades privadas – ainda que abandonadas por pessoas físicas ou jurídicas. No Brasil, há sete milhões desses espaços – imóveis, construções, terrenos em áreas urbanas e rurais.

Ainda assim demonizamos os excluídos invasores. Como fizemos antes com os quilombos, combatidos à bala. Como fazemos sempre com os que sobram na organização social.

Seis caberiam com folga em sete, não? Por que não cabem?

Porque pobres e miseráveis sobram na nossa História, que não é muito diferente de outros vizinhos das Américas – aí incluídos os Estados Unidos -, da África, das arábias…

Pobres e miseráveis não se encaixam como cidadãos, mas como sujeitos disponíveis para todo tipo de exploração, de indignidades. Vez por outra também para prática de compaixão e de caridade, que, ainda por cima, aliviam culpas pelo nosso over consumismo, individualismo e/ou o culto ao dinheiro pelo dinheiro, muito além de necessidades físicas, emocionais, espirituais ou de qualidade de vida.

O capitalismo não é bonzinho. Nunca foi. Sobrou? Sobrou. Recebe sobras.

O povo dos quilombos está onde esteve sempre. Até o fim do século 19 eram humanos desumanizados pela cor da pele. Coisa comprada a ser usada como bem se entendesse.

Tivemos 300 anos de escravidão legal, formal, consentida e aprovada. Três séculos. E, no modelão “jeitinho”, fizemos uma abolição meia bomba. Demos liberdade e soltamos à própria sorte. (Não foi muito diferente por aí afora – de novo incluindo os USA). Não iam querer também que os donos de escravos tivessem alguma responsabilidade sobre os libertos? Ah vá!

Não vão querer que, agora, tenham alguma obrigação com o que resultou daquele arranjo mal feito, que atendeu às pressões econômicas estrangeiras (humanitárias?) e desatendeu senhores da terra locais. Também os que recolhiam, guardavam e emprestavam dinheiro. Os de sempre.

Os donos que, descontentes, apearam rapidinho Pedro II do poder. A causa de então era a República*. Eles são safos.

O Brasil (deles) não é bonzinho. Nunca foi. Que o digam os que sobram sempre – o povo dos quilombos. De ontem e de hoje.

* República – substantivo feminino – 1.Forma de governo em que o Estado se constitui de modo a atender o interesse geral dos cidadãos. 2. Forma de governo na qual o povo é soberano, governando o Estado por meio de representantes investidos nas suas funções em poderes distintos.

PS.: Sobre direitos – na Constituição Federal
Artigo 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios:
IX – Promover programas de construção de moradias e melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico;
X – Combater as causas da pobreza e os fatores de marginalização, promovendo a integração social dos setores desfavorecidos.
A Carta tem 30 anos. Os quilombos uns 400.

Aviso aos imorais


Uma instituição que não se respeita não pode exigir o respeito dos destinatários de suas decisões, que são a sociedade e o povo
Luiz Fux, ministro do STF 

Déficit de vergonha

Os desvalidos da sorte não têm onde morar no Brasil desde priscas eras. Desde sempre, aliás, se têm amontado em morros de difícil acesso e bairros na periferia das grandes cidades sem que a autoridade responsável pela ordem pública intervenha e resolva esse problema, que tem produzido efeitos maléficos e duradouros na paz social. Para se dar uma ideia desse tempo basta lembrar a origem da denominação de tais ocupações: favela, como é conhecida uma planta rústica encontrada nas cercanias de Canudos, no sertão da Bahia, durante as campanhas do Exército Brasileiro contra os beatos de Antônio Conselheiro, retratadas na obra-prima da literatura brasileira Os Sertões, de Euclides da Cunha. Hoje os bairros precários nas “coroas de espinhos” (apud dom Paulo Evaristo Arns) das maiores cidades do País não podem mais ser chamados de favelas, como dantes, em mais um eufemismo que desvia o assunto sem resolver o problema. Chamam-se agora comunidades, mas o drama em que nelas é encenado não apenas não foi resolvido como só se agravou.


Dados confiáveis do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) informam que faltam mais de 6 milhões de moradias no Brasil. A palavra usada para denominar as ocupações de mais de cem anos na periferia das metrópoles – favela – liga esse fenômeno ao do êxodo rural e regional do campo para a cidade e das áreas mais pobres para as mais ricas, que oferecem trabalho com remuneração mais digna e condições mais decentes. Do ponto de vista cultural, a música popular (Asa Branca, de Luiz Gonzaga), a literatura e o cinema (Vidas Secas, obra de Graciliano Ramos, filmada por Nelson Pereira dos Santos) identificam a origem nordestina da maioria dessas vítimas. Seria simplismo em exagero relacionar o drama da falta de teto a tal fuga, mas o êxodo bíblico ainda está presente nas histórias de vida de pessoas mortas, feridas e desabrigadas em incêndios e desabamentos que assolam o cotidiano dessas comunidades.

A crise moral, política, econômica e financeira que desabou sobre a população em geral no desastre institucional provocado pelos dois desgovernos Lula e mais um mandato e meio de sua afilhada Dilma Rousseff teve o condão de agravar o problema e também aumentou o caos generalizado. Mas seria injusto concentrar toda a crítica nesse episódio, que não é atípico na História do Brasil, nem único do ponto de vista das causas da situação de miséria e desespero das famílias atingidas pelo descaso e pela indiferença de um poder público alienado, corrupto e mal gerido. Todos os gestores e todos os partidos têm sua parcela de (ir)responsabilidade nas raízes podres do problema e também na desídia da inexistência de políticas para atacá-lo como se deveria fazê-lo.

À época da ditadura militar, ficou célebre o Banco Nacional de Habitação, cuja sigla, BNH, se tornou praticamente uma senha para representar o acesso das camadas baixas à casa própria. Nunca, porém, esse esforço pôde sequer ser comparado com iniciativas bem-sucedidas no exterior. O caso mais radical que conheci pessoalmente foi o de Singapura, com déficit zero de habitações alcançado graças a um sucesso de gestão da elite chinesa que governa com punho de ferro a ilha estrategicamente situada na Ásia, que servia antigamente de escala de viagens entre o Ocidente e o Oriente e hoje é um importante centro de administração de dados por computador, em nossa civilização cibernética. Trata-se de um caso singular que o Brasil jamais teria condições de emular. Mas o que dizer do bem-sucedido negócio imobiliário dos Estados Unidos que permite acesso universal à moradia em planos de financiamento acessíveis a famílias sem alta renda? Há uma distância abissal em termos de PIB entre os ianques e nós outros, mas isso não justifica a incapacidade crônica de nossos gestores públicos de, pelo menos, amenizarem essa tragédia.

As desastradas gestões ditas socialistas do PT no governo federal exploraram com muito estardalhaço sua tentativa de suprir moradias com um programa de denominação sugestiva, o Minha Casa Minha Vida, de Dilma Rousseff. Mera fantasia de marketing! O melhor exemplo dessa farsa criminosa está contido na reportagem de Fabiana Cambricolli, Fábio Leite e Isabela Palhares, publicada na página A16 do Estadode domingo, Só 8% do Minha Casa Minha Vida acolhe faixa mais pobre, a partir de dados do Ministério das Cidades que “mostram que, desde 2010, quando o programa de habitação federal foi criado, menos de 5 mil das quase 57 mil unidades finalizadas foram destinadas a pessoas com renda até R$ 1,8 mil”. O noticiário sobre a roubalheira na contratação das obras e a precariedade da construção das unidades complementa o horrendo cenário desse tipo de exploração meramente publicitária, que por si só desnuda a imoralidade e a desfaçatez sem limites desses governantes.

Esse, contudo, está longe de ser o exemplo mais terrível da exploração política do criminoso déficit habitacional brasileiro. A reportagem do alto da mesma página em que foi feito esse registro relata a existência de 162 movimentos de sem-teto que exploram esse veio populista. Só rematados ingênuos ainda acreditam que essa miríade cometa apenas o crime de exploração da boa-fé dos pobres, que trabalham muito, ganham muito pouco e não têm tempo de desconfiar dos discursos de “luta social”, sob cuja bandeira se abrigam “revolucionários” marxistas como Guilherme Boulos, que chegou ao topo da carreira na condição de pretenso presidenciável do PSOL, legenda à esquerda do PT de Lula e Dilma. O incêndio do edifício Wilton Paes de Almeida, perto do Largo do Paiçandu, no centro de São Paulo, expôs as entranhas desses grupos, que cobram aluguel e estão sob suspeita de conexões “heterodoxas” com o crime organizado.

Não convém dar azo a tais suspeitas, de vez que a polícia garante que as está investigando a partir de informações obtidas com os sobreviventes do incêndio e posterior desabamento do edifício, que de ícone do modernismo a sede da Polícia Federal virou um monte de escombros num terreno baldio. Entre as negativas de Boulos de sequer reconhecer o tal Movimento de Luta Social por Moradia (MLSM), que organizou e administrava a ocupação do prédio, e os depoimentos de sobreviventes, a prudência recomenda dar ouvidos a estes. Convém lembrar que até o presidente da República cometeu a temeridade de levar sua solidariedade aos desabrigados. Boulos, líder máximo do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), contudo, não deu o ar de sua graça no local.

Mais de uma semana depois da tragédia, Michel Temer (MDB), o governador Márcio França (PSB) e o prefeito Bruno Covas (PSDB) falaram, mas não agiram. Covas citou mais de cem prédios em situação similar à do que desabou. Mas não se tem notícia de que a União ­– proprietária de muitos, incluído o palco do horror no feriadão do Dia do Trabalho –, o Estado e o Município tenham tomado providências efetivas para evacuar o Largo do Paiçandu, ocupado por desabrigados dispostos a manter distância dos sem-teto que pretendiam fazer-lhes companhia no local. E muito menos de que outros edifícios com problemas semelhantes (cujos riscos, aliás, Prefeitura, Corpo de Bombeiros e Ministério Público desprezaram solenemente) escaparão do destino do prédio que ruiu. Continuarão investindo no milagre de nenhum deles ter repetido o sinistro?

A verdade é que não houve na Rua Antônio de Godoy, nas proximidades da Avenida Rio Branco, um acidente. O incêndio e o desabamento que vitimaram Ricardo Oliveira Galvão Pinheiro, o Tatuagem, surpreendido pelo fogo quando tentava salvar a vida de outros moradores do prédio, não resultaram de mero acaso, ou falta de sorte. Na verdade, aquilo tudo foi um crime bárbaro. Em sua origem está o déficit de vergonha dos políticos brasileiros que estão nos poderes federal, estadual e municipal e nunca tomam conhecimento da tragédia habitacional, nem quando ela mata e desabriga. E também os da esquerda irresponsável, que explora a miséria do povo politicamente e ainda a transforma num negócio criminoso e lucrativo, diante dos olhos e ouvidos fechados de autoridades indignas dos cargos que ocupam, algumas delas por delegação popular. A tentativa de pôr a sujeira sob o tapete da semântica ao trocar “favela” por “comunidade” agora tem efeito mais grave: a impunidade dos exploradores da miséria popular e a cumplicidade com eles daqueles que o povo elege para resolver seus problemas. É o terrível retrato da crônica anunciada da tragédia brasileira.

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Sob as cinzas paulistanas

Por trás da tragédia da ocupação, incêndio, desabamento e morte num prédio público no Centro de São Paulo há uma história pouco conhecida: o governo federal é o maior administrador imobiliário do país, mas acumula resultados catastróficos na gestão desse patrimônio.

Estima-se em 652,6 mil o número de imóveis de propriedade da União. Dados do Ministério do Planejamento indicam a existência de outros 2,3 mil alugados pelo governo.


O patrimônio público cresce de forma constante, com a incorporação de propriedades de devedores do Erário. Por mais incrível que pareça, depois de 129 anos de República, a burocracia federal ainda não conseguiu ter uma dimensão precisa, o valor exato e dados confiáveis sobre os imóveis da União. Nem mesmo sobre quem são as pessoas e empresas locatárias e ocupantes das suas edificações e terrenos nos 5.570 municípios.

O cadastro federal não é confiável. Relaciona 652,6 mil imóveis e situações esdrúxulas, como as detectadas em recente auditoria. Eis algumas:

*existem 864 terrenos com uma área total inferior a 15 metros quadrados;
*pelo menos 27 imóveis estão cadastrados com uma área igual a "ZERO";
*entre as pessoas e empresas locatárias, pelo menos 26 mil sequer existem para a Receita. Não têm identificação (CPF ou CNPJ) localizável;
*contam-se 36 mil nomes de pessoas físicas na relação de locatários da União que, comprovadamente, morreram há muito tempo;
*outras 1.112 pessoas nasceram antes do século XX. Teriam mais de 117 anos;
dezenas são menores de 16 anos;
*há um grupo de 57 locatários (pessoas e empresas) registrados com nomes que incluem dígitos — algo como “José” ou “Cia.”, “1,2,3,4”...

A negligência é obra de sucessivos governos. E um dos resultados é o desperdício de dinheiro: apesar do patrimônio, a administração federal gasta mais do que recebe com aluguel de imóveis.

A despesa pública com locações imobiliárias para atividades burocráticas e prestação de serviços é de R$ 1,6 bilhão por ano. Isso equivale ao dobro daquilo que o governo recebe com aluguel de bens a particulares, pessoas e empresas.

O quadro piora com o calote privado. O governo cobra taxas — além do aluguel — dos ocupantes ou beneficiários de propriedades da União. Em tese, existem 519.855 imóveis públicos cujos ocupantes estão sujeitos ao pagamento. Na vida real, a maioria simplesmente não paga: “Estima-se em, aproximadamente, 60% de taxa de inadimplência no pagamento de taxas de ocupação e foro devidas”, repetem relatórios oficiais dos últimos 24 meses.

São 312 mil os ocupantes de imóveis públicos que devem e não pagam. O Ministério do Planejamento, que abriga a Secretaria de Patrimônio da União, informa ter iniciado “processo de cobrança administrativa” dessas pessoas e empresas.

Dentro desse grupo de devedores estão 12,6 mil pessoas e empresas, situados em 14 estados e no Distrito Federal, com débitos individuais superiores a R$ 500 mil. Juntos, somam uma dívida de R$ 566,7 milhões.

Sob as cinzas paulistanas tem-se um histórico de incúria com bens públicos, pontuado pela manipulação política da miséria e pela impunidade.

Amante do dinheiro

Ele sempre gostou de dinheiro. E não adianta dizer que não tem prova. Está preso porque praticou um crime
Paulo Vidal Neto, que ajudou Lula a se tornar líder sindical 

Os senhores do Brasil

Tudo indica que a nefasta tradição brasileira de solucionar um conflito através da conciliação, desta vez, deve fracassar. Isto porque o Brasil não passa por uma crise política conjuntural. A questão é mais ampla e atinge a estrutura organizativa do Estado e do funcionamento das instituições. Não há nenhum paralelo com outros momentos da história republicana: 1889, 1930, 1964 ou 1984-1985 representaram disputas pelo poder de Estado mas que, simplesmente, permitiram um rearranjo relativamente rápido entre as diferentes frações da elite dominante. As forças do passado puderam obter algumas vantagens na nova ordem. O entendimento representou uma mudança porém sem que fosse possível a construção de uma nova institucionalidade efetivamente republicana.

O malogro da conciliação deverá ocorrer, pois as contradições estão de tal forma exacerbadas e o desgaste da estrutura legal edificada pela Constituição de 1988 chegou a tal ponto, que não há outro caminho a não ser reorganizar profundamente a República. A desmoralização das instituições é evidente. O processo de renovação é inviável, pois o sistema não permite nenhuma mudança estrutural. A petrificação de interesses classistas e corporativos produzidos pela “Constituição cidadã” manietou até a possibilidade da negociação. Qualquer alternativa gerada pelo atual arcabouço legal somente vai estender a agonia do regime. Sem solucionarmos a questão política, dificilmente teremos condições de, por exemplo, permitir uma sólida recuperação econômica. Se o dr. Pangloss estivesse no Brasil, até ele chegaria à conclusão de que não há motivo para otimismo.


O noticiário político está recheado de platitudes. Estamos a cinco meses da eleição e sequer sabemos quais os candidatos que postulam a Presidência da República. Sobre os programas, bem aí seria exigir demais. Um dos possíveis nomes, o ex-ministro do STF Joaquim Barbosa, é uma verdadeira esfinge. Os jornalistas procuram seus velhos tuítes para descobrir o que ele pensa. Ou seja, no Brasil tuíte é pensamento! Duzentos e oitenta caracteres são suficientes para expor uma ideia. Inacreditável! Fofocas pululam por toda parte. É uma comédia nonsense.

Os supostos candidatos percorrem o Brasil proclamando platitudes. Acabam tendo destaque. Afinal, não é fácil todo santo dia preencher as páginas dos jornais com noticiário político. Frente à pobreza das ideias, resta o diz que diz. O que é dito hoje é desmentido no dia seguinte. Balões de ensaios são lançados a toda hora. A maioria tem vida curta. O inimigo de hoje poderá ser o aliado de amanhã. Ideologia? Qual? Onde? No Brasil não há direita, centro ou esquerda. Há oportunismo. Só isso. Os conceitos políticos perdem seus sentidos originais. Aqui, os opostos são idênticos. E, se são idênticos, não são opostos, diria o Conselheiro Acácio.

A velha política ainda não compreendeu que o Brasil mudou. As grandes mobilizações que conduziram o processo do impeachment de Dilma Rousseff deram um protagonismo à sociedade civil como nunca na nossa história. O Brasil era o país do futebol. Hoje é o país da política. As pessoas comentam as decisões de Brasília como no passado falavam de um jogo de futebol. Sabem os nomes dos principais políticos e dos ministros do STF.

Concordam, discordam, debatem as decisões que afetam o seu cotidiano e o futuro de suas famílias. A política deixou de ser uma coisa chata ou um tema afeito a poucos. E isto é muito bom.

Também deve ser destacado que a indignação em relação à política tradicional chegou ao ponto máximo. Ninguém mais suporta os conchavos brasilienses. A maligna Praça dos Três Poderes é o símbolo maior do antirrepublicanismo e da insatisfação popular. O desejo de mudança — mas de mudança real — nunca foi tão presente. O terrível é que a elite política faz ouvidos de mercador. Age como se fosse dona do Brasil, uma máfia tupiniquim, vendo na coisa pública a possibilidade de ascensão social ou de manutenção de status.

Nada indica que o Congresso Nacional a ser eleito 7 de outubro será melhor que o atual.

Se haverá — como de hábito — uma sensível renovação de nomes — algo próximo a 40% —, os interesses representados serão os mesmos. E o domínio da velha política continuará intacto. Isto porque a forma de eleger os parlamentares não foi alterada. Com este sistema eleitoral, a mudança exigida pela sociedade civil é impossível. Há uma contradição antagônica entre o que o cidadão deseja e os instrumentos concedidos pelo sistema eleitoral. No máximo teremos a eleição de alguns parlamentares identificados com o quadro produzido nos últimos anos. Nada poderão fazer. Mesmo tendo boas intenções vão ficar isolados. Pior. Servirão como exemplos de que a estrutura é reformável, o que é uma falácia.

Esta República vive seus estertores. Isto não significa que a crise final vá ocorrer amanhã.

Este processo pode demorar. As grandes mudanças da história foram súbitas, imprevistas.

Os agentes não conseguem ler a conjuntura com antecedência. E determinar o seu caminho. O imponderável é a marca da história. Quem, por exemplo, poderia prever o afluxo de pessoas às manifestações em todo o Brasil — especialmente em São Paulo, na Avenida Paulista — que ocorreram em 2015 e 2016? Havia um sentimento no ar de indignação que só se materializava em conversas ou nas redes sociais. Porém, quando o desejo de mudança foi às ruas, o Brasil assistiu às maiores manifestações da sua história. Mas uma coisa é certa: as eleições — pois teremos dois turnos — não vão solucionar a crise mais longa e profunda da história republicana.

Marco Antonio Villa

Os partidos e o dinheiro público

Sendo entidades privadas, os partidos políticos não deveriam viver de dinheiro público. Não é o Estado que deve financiar a atividade política, e sim os cidadãos. Quando são os recursos públicos que sustentam as atividades partidárias, a representação fica distorcida e o eleitor perde o seu necessário protagonismo no processo partidário. As legendas, assim sustentadas, já não têm necessidade de estarem próximas do cidadão, seja para convencê-lo de suas propostas, seja para estimulá-lo a que financie suas causas. O que assegura a continuidade dos partidos deixa de ser a força das suas propostas ou a sua capacidade de entusiasmar pessoas com seus ideais. O decisivo para as legendas passa a ser a provisão de mais verbas no orçamento do Estado.

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É um absurdo, portanto, a existência do “Fundo Especial de Assistência Financeira aos Partidos Políticos”, conhecido como fundo partidário. Previsto na Lei 9.096/1995, o fundo é abastecido, entre outras receitas, por dotações orçamentárias da União. É a própria legislação deformando a representação política.

E, como se não bastasse receber dinheiro público, as legendas têm usado mal esses recursos. Levantamento feito pelo Estado mostrou que os partidos terão de devolver aos cofres públicos mais de R$ 13,3 milhões em razão de irregularidades no uso dos recursos do fundo partidário em 2012. O valor, que ainda deverá ser corrigido por juros, é o resultado do julgamento do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) das prestações de contas dos diretórios nacionais das 30 agremiações existentes em 2012.

O PSDB terá de devolver R$ 5,4 milhões. Depois, vem o PT, que terá de ressarcir R$ 1,53 milhão ao erário. Em seguida, vêm DEM (R$ 1 milhão), PMN (R$ 922 mil) e PP (R$ 726 mil). Ao todo, o TSE reprovou a conta de nove legendas: PCO, PSDB, PR, PPS, PRTB, PCB, PSDC, PMN e PHS. O PT do B e o DEM tiveram suas contas “desaprovadas com ressalvas”. Esses 11 partidos terão os repasses do fundo suspensos.

Proporcionalmente, a maior sanção foi aplicada ao PRTB, que ficará sem o equivalente a cinco repasses do Fundo Partidário em 2019. No entanto, a penalidade será diluída em dez parcelas de forma a não comprometer as atividades da sigla. Ora, se um partido não usa bem os recursos públicos que lhe são destinados, a sanção correspondente deveria justamente recair sobre as atividades da legenda. Do contrário, é o próprio Estado afirmando que os partidos que não cumprem a lei podem continuar funcionando sem maiores percalços.

As irregularidades mais comuns foram a falta de documentos que comprovem gastos com hospedagem, passagens aéreas, assessoria e marketing, repasses a diretórios estaduais que estavam impedidos de receber cotas do Fundo Partidário e o não cumprimento da exigência de investir 5% do fundo para programas que incentivem a participação feminina na política.

Sendo do contribuinte o dinheiro, o mínimo a esperar dos partidos é uma prestação de contas transparente, detalhada e precisa, com o rigoroso cumprimento dos parâmetros legais. Se os postulantes a cargos públicos e seus partidos têm problemas no uso de recursos do Estado antes mesmo de assumirem os cargos, seu comportamento demonstra que, a rigor, não estão aptos para os postos que almejam.

No caso do PT, foram encontradas irregularidades que somaram R$ 3,39 milhões, o que corresponde a 7,42% dos recursos do Fundo Partidário recebidos em 2012. Mesmo assim, as contas não foram reprovadas. Segundo o relator do caso, ministro Admar Gonzaga, apesar de haver “um mínimo de elementos indicativos de má-fé do partido”, a jurisprudência do TSE permite a aprovação das contas com ressalvas, mediante a aplicação dos princípios da “proporcionalidade e da razoabilidade”. Tendo em vista que já virou praxe esse descuido com o dinheiro público por parte das legendas, deve a Corte revisar sua jurisprudência, endurecendo as regras. Não é possível tamanha tolerância com quem dispensa a lei na hora de gastar o dinheiro do contribuinte.

Paisagem brasileira

Fundo de quintal em Bento Gonçalves (1913), Pedro Weingärtner

Revolução com fim econômico

O que me irrita é o fato de que se trata da primeira revolução da mídia na história da humanidade que serve antes de tudo a fins econômicos, e não culturais
Jürgen Habermas

Pegando no tranco

Até seria cedo. No grande esquema das coisas, 500 anos de história são nada. Passam rápido. Em tese, mal o país mal começou a existir. Mas, tendo começado recentemente a conhecer a vida, já anuncia a partida.

Viveu triunfos passageiros com pretensões enganosas. Hoje está perdido. Descartado como móvel velho. E com poucas esperanças no coração. Sem saber mesmo o rumo que vai tomar.

Não construímos uma nação. Criamos um amalgamado de interesses corporativos protegidos por injustiça, e sustentados por cidadãos, nascidos e por nascer, carregando nas costas fardo que só aumenta.

Criamos uma máquina de moer ilusões, reduzindo ilusões a pó. E transformando sonhos em arrependimentos. De maneira mesquinha, cruel e triste. Se cada decisão, canetada, discussão jurídica sobra nada de construtivo. Só herdamos o cinismo. Até chegarmos ao abismo onde estamos. Que cavamos com afinco todos os dias.

Em cada esquina, cai um pouco a qualidade da vida. Tudo fica mais difícil, mais feio, mais inseguro. Continuando assim, em pouco tempo, a gente nem vai mais reconhecer o lugar de onde viemos.

A gente poderia passar a vida buscando sentido nisso tudo. Até certamente perceber que sentido não há. Existe apenas a consequência de nossas ações coletivas. Talvez cause mesmo horror essa conclusão. Mas ela traz em si a oportunidade de tomar controle do destino. Ninguém merece tanto sofrimento.

É tempo. O país novamente este ano pode decidir entre mudança e aceitação. É uma oportunidade. E como toda oportunidade, pode virar amargura. Mas talvez possa estar grávida de esperança. Não precisamos reviver estes tempos de maldade insolente, envolvidos em confusão eterna e condenados a manipulação.

Com algum esforço, a gente até talvez possa um dia merecer o título de cidadão. Quem sabe a moda pega. E, contrariando expectativas e evidências em contrário, possivelmente meio por acidente, a gente prove que democracia pode começar a funcionar nos trópicos. Certamente pegando no tranco. Bem ao nosso estilo.

Por uma democracia representativa

É pura ilusão acreditar que mais uma eleição dentro da mesma regra “proporcional” das anteriores – agravada agora pelo “financiamento público” que abafa a voz de quem entra limpo na disputa enquanto dá um megafone ao continuísmo – vá mudar qualquer coisa de significativo na tragédia brasileira. É de uma ingenuidade de dar pena afirmar que “eleger gente honesta” é o quanto basta, como se jogar honestamente se tivesse tornado milagrosamente possivel num jogo que começa viciado pela obrigação de todo estreante de compor-se com os donos das capitanias partidárias hereditárias e seus latifundios no “horário gratuito” e prossegue com os políticos, tornados intocáveis assim que eleitos pelos 30 co-proprietários do “fundo partidário” dimensionado e redimensionado “a gosto”, negociando cada voto nos legislativos.

Também é sonho de uma noite de verão imaginar que a doença brasileira possa ser curada só com ações policiais e judiciais encomendadas ou desencomendadas a critério de agentes públicos refestelados em privilégios e fora do alcance dos eleitores. Quanto do “vaza-não vaza” que atinge exclusivamente o legislativo e o executivo responde a uma disposição genuína de fazer justiça? Quanto ao propósito de deter reformas contra privilégios? Quanto às disputas de poder de inspiração ideológica ou patrimonialista?


Nem pouco, nem muito mais do mesmo mudará coisa nenhuma. A primeira providência comezinha para tirarmos o pé desse passado grudento é liberar a portaria da política. Despartidarizar as eleições municipais e condicionar as estaduais para cima a eleições primárias diretas. Nos municípios – todos únicos e radicalmente diferentes entre si – deve concorrer quem quiser, independentemente de partidos. E nas eleições estaduais e federais quem quer que chegue às portas do partido apoiado por uma lista de assinaturas não muito extensa terá obrigatoriamente de ser incluído na disputa pelo direito de candidatar-se que os associados da agremiação decidirão no voto direto. É o quanto basta para varrer de cena os velhos caciques sem a eliminação dos quais o ambiente político não se higieniza.

No mais, o nome do jogo é “democracia representativa”. A implantação de um sistema que permita saber exatamente quem representa quais eleitores em cada instância de governo é, portanto, o que poderá nos credenciar a entrar nele. Isto se consegue com eleições distritais puras. O eleitorado tem de ser dividido em distritos mais ou menos equivalentes em numero de habitantes desenhados sobre o mapa real da localização do seu domicílio, do menor (o bairro ou conjunto de bairros em eleições municipais) para o maior (um conjunto de distritos menores em eleições mais amplas). O tamanho dos distritos é dado pela divisão do numero de habitantes pelo numero de representantes que se deseja ter na instância em disputa e só pode ser alterado em função do censo populacional. O Brasil de 204 milhões de habitantes, mantido o numero de deputados federais de hoje, seria dividido em 513 distritos de aproximadamente 400 mil habitantes. Como cada distrito só pode eleger um representante e cada candidato só pode concorrer por um distrito, alem de reduzir drasticamente o custo das campanhas, o sistema permite que cada deputado eleito saiba o nome e o endereço de todos os seus representados.

Mas eleição distrital não é uma solução em si mesmo. Ela apenas permite viabilizar o controle efetivo do processo político pelos eleitores com garantia de absoluta legitimidade daí por diante. Esclarecido quem representa quem, o passo seguinte é consagrar o direito à retomada dos mandatos traidos ou mal satisfeitos a qualquer momento (recall). Qualquer cidadão pode iniciar uma petição para desafiar o seu representante. Se conseguir uma porcentagem previamente definida de assinaturas será convocada uma nova eleição apenas no distrito envolvido para reconfirmar ou cassar seu representante e eleger um substituto.

O resto do ferramental inclui o direito ao referendo por iniciativa popular das leis passadas nos legislativos usando a mesma mecânica de legitimação do recall, o que torna efetivo, de trôco, o direito de oferecer leis de iniciativa popular que os brasileiros “já têm” (me engana que eu gosto), pois a ultima palavra sobre toda lei passa a ser daqueles a quem ela será imposta e não mais de legisladores livres para legislar em causa própria.

Isso de fato entrega o poder a quem a constituição define como a “unica fonte de legitimação do estado”, nós, o povo, também dito o eleitorado. Mas todo esse edifício só se mantem solidamente em pé com o complemento das periódicas “eleições de retenção” de juízes, o Brasil amargamente sabe porque. As comarcas sob a alçada de cada um devem ter correspondência com os distritos eleitorais e a cada eleição o nome de cada juiz de cada tribunal até a instância estadual mais alta, aparecerá na cédula dos eleitores sujeitos à sua jurisdição com a pergunta sobre se deve manter ou não seu cargo e suas prerrogativas por mais um período. Os que forem expelidos serão substituídos pelo sistema normal de nomeação de juízes, com o que cria-se um controle efetivo do Judiciário operando exclusivamente a porta de saída, sem interferir com a independência de quem permanecer dentro do sistema.

A eleição de outubro se vai desenhando como desolada e negativamente plebiscitária. A escolha restringe-se a votar simbólica e genericamente “contra a política” ou pela continuação dela por falta de melhor e medo do pior. Ninguém oferece plataforma nenhuma que se possa apoiar. E adotar um tom radical, mesmo que seja em torno de nada, é a única coisa que empurra candidatos para cima do brejo geral dos sub-10%. Se alguém abraçar radicalmente uma plataforma de reformas não apenas que faça sentido mas que possa exibir uma certificação histórica de eficiência letal contra a corrupção e a politicagem estará, portanto, seriamente arriscado de se tornar um candidato imbatível.
Fernão Lara Mesquita

Gente fora do mapa


Os protagonistas do show de cinismo homicida

O ex-deputado Robson Tuma, que ganha um gordo salário para cuidar do patrimônio da União em São Paulo, apareceu no Largo Paissandu decidido a denunciar o culpado pelo desabamento do prédio no Largo Paissandu: foi a burocracia, repetiu em sucessivas entrevistas o representante do governo federal no elenco dos responsáveis culpados pelo desabamento do prédio de 24 andares. Deixou o local do crime sem elucidar o mistério das “dificuldades burocráticas”. E continua no emprego que lhe permite viver sem trabalhar.

O governador Márcio França revelou que a tragédia era “mais ou menos previsível”. Sem explicar por que nada fez para evitar que a previsão se consumasse, retomou a campanha eleitoral que empreende para prolongar por quatro anos o inquilinato no Palácio dos Bandeirantes. O prefeito Bruno Covas mandou interditar cinco prédios em situação de risco, e garantiu que outros setenta serão vistoriados com urgência. Dispensou-se de informar por que só depois que um prédio cai são vistoriados os que estão para cair.

Guilherme Boulos, único sem-teto do mundo que jamais dormiu ao relento, precisou apenas de dois vídeos e alguns recados em redes sociais para subir algumas posições no ranking mundial da cafajestagem política. Absorvido pela agenda de candidato do PSOL à Presidência da República, o chefão do MTST inventou a terceirização do estupro do direito de propriedade. Invasões no centro de São Paulo, garantiu, são agora explorados por um certo Movimento de Lula Social por Moradia, vulgo MLSM.

Além de um número ainda impreciso de vidas não vividas, o prédio assassinado também soterrou imposturas paridas por gigolôs da miséria. Há pelo menos dez anos, por exemplo, Lula jura que a pobreza acabou. Seria feita só de estrangeiros importados por Michel Temer essa gente que não tem sequer onde morar? Dilma recita de meia em meia hora que o Minha Casa Minha Vida operou o milagre da multiplicação das residências populares. Se há teto para todos, todo sem-teto é uma miragem.

O edifício Wilton Paes de Almeida não existe mais. O espetáculo do cinismo homicida, esse não tem prazo para terminar.

Farol certo

Seja lá em que lugar ou circunstâncias, o que importa é sonhar. É a única porta deixada ao homem, num caminho tenebroso, onde se emboscam sofrimento, velhice e morte. Só o sonho pode nos levar a mundos outros que não o nosso, de atroz caminhar, de torvo esperar, de fatal acabar
Eduardo Canabra Barreiros, "Semicírculo"

Alguns dos piores riscos que rondam o Brasil

Quase toda semana alguma revista ou jornal do Primeiro Mundo publica reflexões sobre o fim da democracia representativa. Subestimar tais alertas seria tolice, mas permito-me lembrar que eles têm sido feitos desde as primeiras décadas do século 20.

O que não vejo nessas matérias é a indispensável distinção entre democracia e Estado. Democracia é software, Estado é hardware. Ou seja, o termo Estado refere-se à parte fixa, ou, melhor dizendo, à ossatura burocrática que assegura a estabilidade e a regularidade de funcionamento de toda sociedade. Mal comparando, é o esqueleto, a estrutura óssea que sustenta um ser vivo. Mas o que lhe incute a vida é o processo político. Esse é o “programa” que manda a máquina operar no cumprimento de tais ou quais objetivos. O eventual colapso da democracia leva a uma ditadura, o do Estado, a uma situação de anarquia ou desordem generalizada.


No presente momento brasileiro, quase não há ameaças diretas ao regime democrático, pois praticamente todas as forças políticas querem trabalhar dentro dele para tentar atingir seus objetivos particulares. Mas ameaças ao Estado não faltam, e esse é o perigo. Penso ser útil mencionar três tipos de ameaça. A primeira e mais grave é o fato de altas autoridades institucionais se comportarem em flagrante desacordo com suas atribuições. O melhor exemplo é o STF, que em tese é o guardião da ordem constitucional, mas onde diversos ministros parecem mais empenhados em descumpri-la que em mantê-la incólume. Não é segredo para ninguém que alguns ministros trabalham diuturnamente para abortar o combate à corrupção.

O segundo fator é o aumento exponencial da criminalidade violenta, notadamente no nordeste e no Norte, processo estreitamente associado ao narcotráfico, que há tempos controla pontos importantes do território nacional. Por último, mas não menos importante, é o descalabro econômico a que fomos arrastados pelos governos Lula e Dilma. Um Estado deixa praticamente de ser um Estado quando carece de recursos para fazer face aos gastos correntes e à remuneração dos empréstimos que é obrigado a fazer para manter a máquina em andamento. O prognóstico atual é o de que reaveremos essa capacidade em 2021, se não fizermos novas asneiras.

Pautas disruptivas

A vida nos surpreende. Constantemente. Estive recentemente em Porto Velho, capital de Rondônia. Fui participar da reunião do Conselho Consultivo do Grupo Rede Amazônica. As reuniões ordinárias são realizadas na sede da rede de televisão, em Manaus. Conhecer a operação em outras praças permite sentir o pulso da região, calibrar os desafios e as oportunidades. O saldo foi um mergulho numa realidade fascinante.

Bovinos, soja, leite e café são os principais produtos agropecuários de um Estado que respira empreendedorismo, ousadia e crescimento. O Rio Madeira, afluente poderoso do Rio Amazonas, propiciou a construção de duas importantes usinas hidrelétricas: Jirau e Santo Antônio. Visitei a Usina de Santo Antônio. Surpreendeu-me a qualidade dos estudos e da pesquisa sobre as espécies de peixes: 920 espécies somente no território brasileiro, quase 20% de todas as espécies atualmente conhecidas em toda América do Sul. As pesquisas desenvolvidas pelo Laboratório de Ictiologia e Pesquisa da Universidade Federal de Rondônia em parceria com várias instituições, mas principalmente com o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia e com a Universidade Federal do Amazonas, resultaram em notável preservação do meio ambiente.

Para além da corrupção e da violência, chagas destacadas em matérias da grande mídia, há muita coisa interessante acontecendo num país que sonha grande, empreende e produz. O sol brilha no Brasil real. E nós, jornalistas, precisamos contar boas histórias. Chegou a hora das pautas disruptivas.


O negativismo da mídia é uma forma de falsear a verdade. A vida, como os quadros, é composta de sombras e luzes. Precisamos denunciar com responsabilidade. Mas devemos, ao mesmo tempo, mostrar o lado positivo da vida. Não se trata, por óbvio, de fazer jornalismo cor-de-rosa. Mas de investir no lado construtivo da vida. O leitor está cansado das sombras. Há uma forte demanda de informação a respeito de iniciativas bem-sucedidas, de projetos renovadores, de políticas públicas que deram certo. Tudo isso é jornalismo de qualidade.

A fórmula de um bom jornal reclama uma boa dose de interrogações. A candura, num país de delinquência arrogante, acaba sendo um desserviço à sociedade. A astúcia não pode ser debelada com terapias ingênuas. É indispensável o exercício da pergunta consistente, da dúvida limpa e honesta. Essa atitude, contudo, não se confunde com o marketing do catastrofismo.

Alguns setores da mídia, em nome de suposta independência e de autoproclamada imparcialidade, castigam, diariamente, o fígado de seus leitores. Dominados pelo vírus do negativismo, perdem a conexão com a vida a real. O jornalismo não existe para elogiar, argumentam os defensores de uma imprensa que se transforma em exercício sistemático de contrapoder. Tem uma missão de denúncia, de contraponto. Até aí, estou de acordo. A impunidade, embora resistente, está se enfrentando com o aparecimento de uma profunda mudança cultural: o ocaso do conformismo e o despertar da cidadania. Por isso a imprensa investigativa, apoiada em denúncias bem apuradas, produz o autêntico jornalismo da boa notícia.

Denunciar o mal é um dever ético. Impressiona-me, no entanto, o crescente espaço destinado à violência nos meios de comunicação, sobretudo no telejornalismo. Catástrofes, tragédias, crimes e agressões, recorrentes como chuvaradas de verão, compõem uma pauta sombria e perturbadora. A violência, por óbvio, não é uma invenção da mídia. Mas sua espetacularização é um efeito colateral que deve ser evitado. Não se trata de sonegar informação. Mas é preciso contextualizá-la. O excesso de violência na mídia pode causar fatalismo e uma perigosa resignação. Não há o que fazer, imaginam inúmeros leitores, ouvintes, telespectadores e internautas. Acabamos, todos, paralisados sob o impacto de uma violência que se afirma como algo irrefreável e invencível. E não é verdade. Podemos todos – jornalistas, formadores de opinião, estudantes, cidadãos, enfim – dar pequenos passos rumo à cidadania e à paz.

A deformação, portanto, não está apenas no noticiário violento, mas na miopia, na obsessão seletiva pelo underground da vida. O que critico não é o jornalismo de denúncia, mas o culto ao denuncismo, a opção pelo sensacionalismo em detrimento da análise séria e profunda. Estou convencido de que boa parte da crise da imprensa pode ser explicada pelo isolamento de algumas redações, por sua orgulhosa incapacidade de ouvir os seus leitores.

Precisamos valorizar editorialmente inúmeras iniciativas que tentam construir avenidas ou vielas de paz nas cidades sem alma. É preciso investir numa agenda positiva. A bandeira a meio pau sinalizando a violência sem fim não pode ocultar o esforço de entidades, universidades e pessoas isoladas que, diariamente, se empenham na recuperação de valores fundamentais: o humanismo, o respeito à vida, a solidariedade. São pautas magníficas. Embriões de grandes reportagens. Denunciar o avanço da violência e a falência do Estado no seu combate é um dever ético. Mas não é menos ético iluminar a cena de ações construtivas, frequentemente desconhecidas do grande público, que, sem alarde ou pirotecnias do marketing, colaboram, e muito, para a construção da cidadania.

É fácil fazer jornalismo de boletim de ocorrência. Não é tão fácil contar histórias reais, com rosto humano, que mostram o lado bom da vida. “Quando nada acontece”, dizia Guimarães Rosa, “há um milagre que não estamos vendo”. O jornalista de talento sabe descobrir a grande matéria que se esconde no aparente lusco-fusco do dia a dia. Sair às ruas, olhar no olho das pessoas, ver a vida real. Aí, nas esquinas da vida, encontraremos inúmeras pautas disruptivas capazes de conquistar o interesse dos nossos leitores.

No fundo, a normalidade é um grande desafio e, sem dúvida, o melhor termômetro da qualidade
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