segunda-feira, 19 de dezembro de 2016
Fim do mundo não é o fim de tudo
Fim de ano, fim do mundo com a delação da Odebrecht, estradas remotas, poucas conexões. Os cientistas estão trabalhando para pesquisar a região do cérebro onde se depositam as memórias recentes. Não sei que lugar ocupará 2016 em nosso escaninho, sei apenas que o cérebro é elástico, e viver no Brasil é educar-se para a complexidade.
A guerra na Síria, a crise de emigração na Europa, o caricato gabinete de Trump — tudo isso indica que as coisas no mundo também não foram bem em 2016. E o que é pior: são problemas que se desdobram no ano que entra.
Nesse carrossel da transição para 2018 é bom pelo menos ter em mente os objetivos principais: recuperar a economia e restabelecer, através de uma renovação, ainda que modesta, os vínculos da política com a sociedade.
Isso de estabelecer prioridades é muito pessoal. Existem milhares de outras visões. É apenas um exercício no caos.
A guerra na Síria, a crise de emigração na Europa, o caricato gabinete de Trump — tudo isso indica que as coisas no mundo também não foram bem em 2016. E o que é pior: são problemas que se desdobram no ano que entra.
Nesse carrossel da transição para 2018 é bom pelo menos ter em mente os objetivos principais: recuperar a economia e restabelecer, através de uma renovação, ainda que modesta, os vínculos da política com a sociedade.
Isso de estabelecer prioridades é muito pessoal. Existem milhares de outras visões. É apenas um exercício no caos.
Na verdade, a delação do fim do mundo marca talvez o período final do processo que se iniciou com o movimento pelas Diretas. Os próprios apelidos dos políticos nas planilhas da Odebrecht mostram como a empresa, de uma certa forma, os condenava. Todo Feio, Gripado, Caranguejo — parecem nomes das páginas policiais de antigamente.
É toda uma época que se encerra com o fim da aliança entre empreiteiras e o sistema político. Uma das vantagens é que o Brasil poderá chegar a um planejamento mais adequado às nossas necessidades, porque, na verdade, ele foi também sequestrado pelo esquema de corrupção. A outra vantagem seria julgar e punir os culpados para que as eleições de 2018 se fizessem sem eles. Um atraso poderá torná-las mais distantes da sociedade.
As ruas mostraram o que querem. Elas apoiam a Lava-Jato. O próprio governo admite que a operação deve ir até onde os fatos a levem. Como fazer com que a Lava-Jato não seja um obstáculo para a recuperação econômica? Temer deu a pista: celeridade. O importante é definir como a celeridade vai surgir, depois de tanta lentidão. O nó é o Supremo. Se não se convencer da singularidade da situação, vai tratá-la como todas as outras. E continuaremos aos solavancos.
Um ano como o de 2016 num ritmo de roda-gigante nos traz uma nostalgia da estabilidade. Não apenas por motivos econômicos, mas também no nível individual, imersão em projetos de longo alcance, meditação para puxar o fio da meada, desde quando o atual processo democrático começou.
A tarefa de recuperar a economia sob os ventos da Lava-Jato, jogando gente no mar para não se afogar também, não é fácil. É uma transição em que se entrelaçam a maior operação da História com a crise econômica mais profunda. A única forma de alcançá-las é manter os dois polos. Um deles sozinho não consegue fazer a passagem.
A celeridade, que depende do STF, atenua os possíveis atritos da Lava-Jato com o esforço de recuperação econômica. Estrategicamente, os dois polos são aliados. A desmontagem do esquema de corrupção no governo aumenta a credibilidade do país, torna-o mais atraente para investimentos sérios. O simples estancamento da sangria na Petrobras deu à empresa uma chance de soerguimento. E até trouxe de volta uma boa parte do dinheiro roubado.
Quando digo que o fim do mundo não é o fim de tudo, penso na própria contribuição que a Lava-Jato vai trazer. A delação do fim do mundo não é o fim de tudo. Deixará mortos, feridos, escoriações, fraturas expostas. Mas é também nos escombros que vai sobreviver uma parte do Congresso vital para o segundo momento.
A História não começa do zero. A renovação que surgir da sociedade contará com uma experiência acumulada até dominar os complicados ritos do Congresso.
A esta altura, eu mesmo me pergunto se combinei com os russos ao traçar esse cenário. Um quadro de economia funcionando, um Congresso mais próximo da sociedade, no entanto, não são um sonho. São uma possibilidade real que vislumbro nesse caleidoscópio visto das estradas de Minas, das margens do Solimões na fronteira com a Colômbia.
Não posso acreditar que um país tão rico e diverso não consiga sair dessa situação pantanosa em que a elite política o colocou. Se for um delírio, que valha apenas como desejo de Ano Novo.
O que me conforta é que para mim a experiência democrática iniciada com as Diretas se esgotou. Tudo o que acontece pode ser visto não só como escombros de um período, mas também como os primeiros passos de transição. Algo se move, nem sempre no ritmo de minha visão otimista, mas se move no meio de muita fumaça.
Fernando Gabeira
É toda uma época que se encerra com o fim da aliança entre empreiteiras e o sistema político. Uma das vantagens é que o Brasil poderá chegar a um planejamento mais adequado às nossas necessidades, porque, na verdade, ele foi também sequestrado pelo esquema de corrupção. A outra vantagem seria julgar e punir os culpados para que as eleições de 2018 se fizessem sem eles. Um atraso poderá torná-las mais distantes da sociedade.
As ruas mostraram o que querem. Elas apoiam a Lava-Jato. O próprio governo admite que a operação deve ir até onde os fatos a levem. Como fazer com que a Lava-Jato não seja um obstáculo para a recuperação econômica? Temer deu a pista: celeridade. O importante é definir como a celeridade vai surgir, depois de tanta lentidão. O nó é o Supremo. Se não se convencer da singularidade da situação, vai tratá-la como todas as outras. E continuaremos aos solavancos.
Um ano como o de 2016 num ritmo de roda-gigante nos traz uma nostalgia da estabilidade. Não apenas por motivos econômicos, mas também no nível individual, imersão em projetos de longo alcance, meditação para puxar o fio da meada, desde quando o atual processo democrático começou.
A tarefa de recuperar a economia sob os ventos da Lava-Jato, jogando gente no mar para não se afogar também, não é fácil. É uma transição em que se entrelaçam a maior operação da História com a crise econômica mais profunda. A única forma de alcançá-las é manter os dois polos. Um deles sozinho não consegue fazer a passagem.
A celeridade, que depende do STF, atenua os possíveis atritos da Lava-Jato com o esforço de recuperação econômica. Estrategicamente, os dois polos são aliados. A desmontagem do esquema de corrupção no governo aumenta a credibilidade do país, torna-o mais atraente para investimentos sérios. O simples estancamento da sangria na Petrobras deu à empresa uma chance de soerguimento. E até trouxe de volta uma boa parte do dinheiro roubado.
Quando digo que o fim do mundo não é o fim de tudo, penso na própria contribuição que a Lava-Jato vai trazer. A delação do fim do mundo não é o fim de tudo. Deixará mortos, feridos, escoriações, fraturas expostas. Mas é também nos escombros que vai sobreviver uma parte do Congresso vital para o segundo momento.
A História não começa do zero. A renovação que surgir da sociedade contará com uma experiência acumulada até dominar os complicados ritos do Congresso.
A esta altura, eu mesmo me pergunto se combinei com os russos ao traçar esse cenário. Um quadro de economia funcionando, um Congresso mais próximo da sociedade, no entanto, não são um sonho. São uma possibilidade real que vislumbro nesse caleidoscópio visto das estradas de Minas, das margens do Solimões na fronteira com a Colômbia.
Não posso acreditar que um país tão rico e diverso não consiga sair dessa situação pantanosa em que a elite política o colocou. Se for um delírio, que valha apenas como desejo de Ano Novo.
O que me conforta é que para mim a experiência democrática iniciada com as Diretas se esgotou. Tudo o que acontece pode ser visto não só como escombros de um período, mas também como os primeiros passos de transição. Algo se move, nem sempre no ritmo de minha visão otimista, mas se move no meio de muita fumaça.
Fernando Gabeira
Lente bifocal
Pontos de vista restritos causam ilusão de ótica. As instituições governamentais que apoiaram e legitimaram a restrição das despesas públicas e transferência de renda para empresários não enxergaram um palmo adiante. Estão passando rápido pela História como defensores do dinheiro e opositores ferrenhos das políticas baseadas na solidariedade. Para a população, o principal problema a ser resolvido é a saúde. As expectativas em torno do uso rigoroso dos orçamentos públicos, fim da roubalheira, estão relacionadas com a melhoria de serviços coletivos.
Defeitos visuais podem ser corrigidos com óculos que facilitem a apreensão da realidade, de perto e de longe. Menores orçamentos para saúde não resultarão em mais dinamismo do setor privado e melhor qualidade das despesas no SUS. Degradação da rede pública, desabastecimento de medicamentos, queda de investimentos em pesquisas, combinados com redução da renda e desemprego, afetam toda a cadeia produtiva. Os motores setoriais movem insumos industriais, serviços especializados, instituições de formação de pessoal e mídia. Racionar remédios e limitar a variedade de estratégias terapêuticas não são necessariamente sinais positivos para o mercado farmacêutico.
Dependendo do problema, torna-se impossível tirar do bolso o pagamento do tratamento. As filas no SUS não estão integradas por sovinas ou oportunistas, e sim doentes que não poderiam pagar parte ou a totalidade do diagnóstico e terapia. Chegar antes de os serviços abrirem, ficar em lugar na frente para pegar senha, ter todos os documentos solicitados e comparecer nos dias e horários nos quais o especialista está e o equipamento funciona custam dedicação, dinheiro e falta ou atraso no trabalho. A insegurança sobre a realização e continuidade do atendimento e obtenção dos cuidados para evitar sequelas e mortes atormenta quem precisa e ameaça os que estão bem, mas um dia poderão experimentar o mesmo dissabor do parente, do amigo ou conhecido.
As conversas sobre as estratégias para obter uma boa assistência atravessam classes sociais. Os relatos incluem avaliações sobre a presença de médico, a educação dos profissionais de saúde (que quer dizer gentileza e empatia), as melhores combinações do uso de pagamento, se o exame é realizado e quitado na hora e a consulta fica por conta do plano ou vice-versa, a importância de poder recorrer a uma pessoa influente e ainda a necessidade de botar a boca no trombone e rodar a baiana. Mas ninguém sugere o fim e nem mesmo a diminuição do orçamento para o SUS.
O teto para as despesas públicas e a postergação das dívidas dos ricos, reduzindo ainda mais as receitas, situam-se em um campo visual oposto ao da perspectiva adotada pela maioria da população. Mas a insensibilidade às prioridades populares é insustentável, especialmente diante do desequilíbrio provocado pelas falhas de cálculos e promessas de retomada do crescimento econômico e de uma coalizão política liderada por ministros e parlamentares acusados de corrupção. Então começou a se dizer que não é bem e nem tanto assim. De repente, a bancada da saúde — antes carimbada por defensores da PEC do corte de gastos como o suprassumo do atraso, um grupelho de defensores de interesses particulares, de verbas públicas para hospitais filantrópicos e privados — foi promovida a categoria de nobre e legítima defensora do direito universal à saúde. E os argumentos sobre a premência da boa gestão de gastos foram reconvocados, e seriam sérios não fosse a ligeireza das avaliações sobre a localização dos erros. Jogar luzes apenas sobre o pagamento para servidores públicos e dar um sumiço na magnitude e aumento dos gastos tributários (não pagamento de impostos e contribuições que conformam receitas para a saúde) iludem e impossibilitam que os recursos existentes sejam bem utilizados.
Preços podem ser reduzidos e o acesso, ampliado, se o país expandir sua base produtiva de medicamentos e equipamentos. As regras estabelecidas para pagar valores extremamente elevados por insumos protegidos por patentes têm sido questionadas por organismos internacionais de saúde e por determinadas e populosas nações em desenvolvimento.
A análise criteriosa dos custos e benefícios de serviços de terceiros, tais como segurança, limpeza, recepção e com organizações sociais, que em certos casos representam mais da metade dos recursos disponíveis, também poderá redirecionar o financiamento para as atividades diretas de atenção aos pacientes. Olhar para o gato e para o peixe é um imperativo para tentar evitar a regressão definitiva de atividades essenciais de saúde. Mas mexer nos inúmeros e variados contratos que organizam o sistema não é simplesmente uma tarefa técnica, falta transparência e debate político sobre os interesses econômicos, situados atrás das convenções. Em 2016, os ciclopes apagaram a saúde da agenda pública. No ano que vem, caso se pretenda continuar propiciando atenção aos problemas mais frequentes de saúde, o uso de lentes bifocais deveria ser obrigatório para todos os responsáveis pelas decisões que envolvem políticas públicas.
Ligia Bahia
Defeitos visuais podem ser corrigidos com óculos que facilitem a apreensão da realidade, de perto e de longe. Menores orçamentos para saúde não resultarão em mais dinamismo do setor privado e melhor qualidade das despesas no SUS. Degradação da rede pública, desabastecimento de medicamentos, queda de investimentos em pesquisas, combinados com redução da renda e desemprego, afetam toda a cadeia produtiva. Os motores setoriais movem insumos industriais, serviços especializados, instituições de formação de pessoal e mídia. Racionar remédios e limitar a variedade de estratégias terapêuticas não são necessariamente sinais positivos para o mercado farmacêutico.
Dependendo do problema, torna-se impossível tirar do bolso o pagamento do tratamento. As filas no SUS não estão integradas por sovinas ou oportunistas, e sim doentes que não poderiam pagar parte ou a totalidade do diagnóstico e terapia. Chegar antes de os serviços abrirem, ficar em lugar na frente para pegar senha, ter todos os documentos solicitados e comparecer nos dias e horários nos quais o especialista está e o equipamento funciona custam dedicação, dinheiro e falta ou atraso no trabalho. A insegurança sobre a realização e continuidade do atendimento e obtenção dos cuidados para evitar sequelas e mortes atormenta quem precisa e ameaça os que estão bem, mas um dia poderão experimentar o mesmo dissabor do parente, do amigo ou conhecido.
As conversas sobre as estratégias para obter uma boa assistência atravessam classes sociais. Os relatos incluem avaliações sobre a presença de médico, a educação dos profissionais de saúde (que quer dizer gentileza e empatia), as melhores combinações do uso de pagamento, se o exame é realizado e quitado na hora e a consulta fica por conta do plano ou vice-versa, a importância de poder recorrer a uma pessoa influente e ainda a necessidade de botar a boca no trombone e rodar a baiana. Mas ninguém sugere o fim e nem mesmo a diminuição do orçamento para o SUS.
O teto para as despesas públicas e a postergação das dívidas dos ricos, reduzindo ainda mais as receitas, situam-se em um campo visual oposto ao da perspectiva adotada pela maioria da população. Mas a insensibilidade às prioridades populares é insustentável, especialmente diante do desequilíbrio provocado pelas falhas de cálculos e promessas de retomada do crescimento econômico e de uma coalizão política liderada por ministros e parlamentares acusados de corrupção. Então começou a se dizer que não é bem e nem tanto assim. De repente, a bancada da saúde — antes carimbada por defensores da PEC do corte de gastos como o suprassumo do atraso, um grupelho de defensores de interesses particulares, de verbas públicas para hospitais filantrópicos e privados — foi promovida a categoria de nobre e legítima defensora do direito universal à saúde. E os argumentos sobre a premência da boa gestão de gastos foram reconvocados, e seriam sérios não fosse a ligeireza das avaliações sobre a localização dos erros. Jogar luzes apenas sobre o pagamento para servidores públicos e dar um sumiço na magnitude e aumento dos gastos tributários (não pagamento de impostos e contribuições que conformam receitas para a saúde) iludem e impossibilitam que os recursos existentes sejam bem utilizados.
Preços podem ser reduzidos e o acesso, ampliado, se o país expandir sua base produtiva de medicamentos e equipamentos. As regras estabelecidas para pagar valores extremamente elevados por insumos protegidos por patentes têm sido questionadas por organismos internacionais de saúde e por determinadas e populosas nações em desenvolvimento.
A análise criteriosa dos custos e benefícios de serviços de terceiros, tais como segurança, limpeza, recepção e com organizações sociais, que em certos casos representam mais da metade dos recursos disponíveis, também poderá redirecionar o financiamento para as atividades diretas de atenção aos pacientes. Olhar para o gato e para o peixe é um imperativo para tentar evitar a regressão definitiva de atividades essenciais de saúde. Mas mexer nos inúmeros e variados contratos que organizam o sistema não é simplesmente uma tarefa técnica, falta transparência e debate político sobre os interesses econômicos, situados atrás das convenções. Em 2016, os ciclopes apagaram a saúde da agenda pública. No ano que vem, caso se pretenda continuar propiciando atenção aos problemas mais frequentes de saúde, o uso de lentes bifocais deveria ser obrigatório para todos os responsáveis pelas decisões que envolvem políticas públicas.
Ligia Bahia
A espera é difícil
Já percebeu? Passamos a vida a esperar. No final de ano, nessa época, fica ainda mais patente porque mostra que todo o tempo esperamos. Ainda mais e demais de tudo e de todos, de todas as coisas, dos dias que virão, e até de nós mesmos. E depositamos esperança, que nada mais é do que esperar o algo que mais desejamos. Contagens regressivas diárias que fazemos às vezes até meio distraídos; algumas esperas até impulsionam quando possível, aceleramos para tentar chegar ao seu fim o mais rápido possível, quando então se transformarão em realidade - e isso é sempre muito concreto
O compasso da espera - essa pausa que, em uma orquestra, se aguarda a vez de o instrumento entrar e participar da música entoada. O difícil é preencher esse vazio, atento, para não desafinar, entrar na hora errada, estragar tudo. A espera é prima-irmã da angústia. Mãe da ansiedade. A espera não contém certezas.
Continuo escrevendo para você sentada em uma cadeira azul, ao lado de uma cama de hospital de onde ainda não consegui arrancar meu pai. A cadeira é só um pouco mais confortável do que a anterior, já que agora ele foi transferido para outra enfermaria.
Em hospitais, por exemplo, a espera tem uma dimensão fantástica. Esperamos melhoras, a eficácia dos medicamentos, diagnósticos mais precisos, a passagem das longas horas dos compridos dias e noites, que as nossas orações alcancem os céus, a cura, que vençamos os embates e os jogos mortais. Todos aqui especialmente esperam. Talvez daí, pelo menos neste onde me encontro, tantas filas, uma das maiores e mais comuns expressões e formas de espera.
10, 9, 8,7,6,5,4,3,2,1...a contagem regressiva para o Natal. De novo, 10, 9, 8,7,6,5,4,3,2,1...e lá vai o ano acabar e chegar outro; dele se esperam soluções para nossos desencantos e a realização de nossos planos. Meia noite. Poucos lembram que, se essa mágica fosse mesmo eficaz, a passagem de um minuto a outro em alguns estados onde vigora o horário de verão a faríamos uma hora depois.
Pouco adianta dizer que na sequência continuaremos esperando tudo da vida. Esperaremos sentados ou em pé. O Sol e a chuva, o calor e o frio. As estações e as grandes datas; os feriados.
Esperaremos muito das pessoas; ou menos. Esperaremos as pessoas certas, e as ocasiões para cada uma delas. Os dois lados da moeda. Seu amor vir te ver.
Esperando uns governos melhores e um país, enfim, minimamente decente, terra da qual possamos nos orgulhar.
Continuaremos contando com a boa vontade, a solidariedade, a proteção divina, algo que teremos como certo ou provável, uma chegada ou partida. Esperando uma brecha, uma oportunidade, reconhecimento de algo que talvez seja como sempre esperamos.
Esperar é esperança. Essa virtude que almeja a vida eterna e o reino dos céus.
Os nossos atos que depositamos na mão de Deus, esperando que ele os julgue e decida o quanto precisaremos esperar para sentir Sua glória.
Marli Gonçalves
O compasso da espera - essa pausa que, em uma orquestra, se aguarda a vez de o instrumento entrar e participar da música entoada. O difícil é preencher esse vazio, atento, para não desafinar, entrar na hora errada, estragar tudo. A espera é prima-irmã da angústia. Mãe da ansiedade. A espera não contém certezas.
Continuo escrevendo para você sentada em uma cadeira azul, ao lado de uma cama de hospital de onde ainda não consegui arrancar meu pai. A cadeira é só um pouco mais confortável do que a anterior, já que agora ele foi transferido para outra enfermaria.
Em hospitais, por exemplo, a espera tem uma dimensão fantástica. Esperamos melhoras, a eficácia dos medicamentos, diagnósticos mais precisos, a passagem das longas horas dos compridos dias e noites, que as nossas orações alcancem os céus, a cura, que vençamos os embates e os jogos mortais. Todos aqui especialmente esperam. Talvez daí, pelo menos neste onde me encontro, tantas filas, uma das maiores e mais comuns expressões e formas de espera.
10, 9, 8,7,6,5,4,3,2,1...a contagem regressiva para o Natal. De novo, 10, 9, 8,7,6,5,4,3,2,1...e lá vai o ano acabar e chegar outro; dele se esperam soluções para nossos desencantos e a realização de nossos planos. Meia noite. Poucos lembram que, se essa mágica fosse mesmo eficaz, a passagem de um minuto a outro em alguns estados onde vigora o horário de verão a faríamos uma hora depois.
Pouco adianta dizer que na sequência continuaremos esperando tudo da vida. Esperaremos sentados ou em pé. O Sol e a chuva, o calor e o frio. As estações e as grandes datas; os feriados.
Esperaremos muito das pessoas; ou menos. Esperaremos as pessoas certas, e as ocasiões para cada uma delas. Os dois lados da moeda. Seu amor vir te ver.
Esperando uns governos melhores e um país, enfim, minimamente decente, terra da qual possamos nos orgulhar.
Continuaremos contando com a boa vontade, a solidariedade, a proteção divina, algo que teremos como certo ou provável, uma chegada ou partida. Esperando uma brecha, uma oportunidade, reconhecimento de algo que talvez seja como sempre esperamos.
Esperar é esperança. Essa virtude que almeja a vida eterna e o reino dos céus.
Os nossos atos que depositamos na mão de Deus, esperando que ele os julgue e decida o quanto precisaremos esperar para sentir Sua glória.
Marli Gonçalves
'Educação não é prioridade'
Há mais de dez anos, eu, como tantos outros, dizia que no Brasil, por séculos, um dos reconhecidos problemas está na Educação. Quando a escola pública expandiu-se, educadores brasileiros de peso, como Anísio Teixeira e Cristovam Buarque, denunciaram a existência de uma escola para nossos filhos e de outra escola para os filhos dos outros.
Apesar da expansão quantitativa das matrículas, a cada comparação internacional, a cada divulgação dos resultados da educação básica no Brasil, renova-se esse constrangimento. Já no Pisa 2003, o país continuava nas últimas posições. Chega o Pisa 2015, 12 anos depois (!), e o Brasil, estagnado, continua tão mal posicionado no ranking mundial da Educação quanto no passado, entre os piores do mundo.
Observamos o cruzamento de dois tipos de pobreza na Educação brasileira: ela é pobre quando comparada a padrões internacionais, mas é ainda mais pobre quando oferecida aos filhos de pais pobres. Os alunos mais desfavorecidos materialmente aprendem menos, e os mais ricos têm melhores notas. A perversidade dessa combinação chama poderosamente nossa atenção. Como afirma recente editorial do GLOBO, “mesmo previsível, a tragédia da Educação no país assusta”.
O Brasil se acostumou a aceitar, como naturais, indicadores que deveriam ser firmemente repudiados pela sociedade: taxas de homicídios altíssimas, resolução de conflitos de forma violenta a todo momento, colapso dos sistemas públicos de saúde e resultados lamentáveis dos sistemas educacionais, tanto públicos quanto privados.
O caso da Educação é flagrante e merece destaque, pois está por trás de outras mazelas sociais do país. No recente Pisa 2015, amplamente relatado pela imprensa brasileira, as médias dos alunos brasileiros não tiveram avanço significativo nas três áreas avaliadas: Matemática, Leitura e Ciências.
O escore médio dos jovens estudantes brasileiros na avaliação de Ciências foi de 401 pontos. Esse número é consideravelmente inferior ao da média dos estudantes dos países membros da OCDE (493). Pouco mais de 40% dos estudantes brasileiros atingiram o nível 2 de uma escala que vai de 1 a 6, ou seja, o nível básico de proficiência que permite a aprendizagem e a participação plena na vida social, econômica e cívica das sociedades modernas em um mundo globalizado.
No que diz respeito à leitura, o Brasil teve média de 41,4% com relação ao percentual de respostas corretas. Se comparado a países da OCDE, essa média se mostra muito inferior: Finlândia (65,5%), Canadá (64,9%), Coreia do Sul (64,4%), Estados Unidos (60%), Portugal (59,9%), Espanha (59,8%), Chile (51,9%). O escore médio dos estudantes brasileiros de 15 anos na avaliação de leitura foi de 407 pontos, enquanto a média na OCDE ficou em 493.
O escore médio do estudante brasileiro em Matemática foi de 377 pontos. A média da OCDE foi 490. No Brasil, 70,3% dos estudantes estão abaixo do nível 2 (na mesma escala que vai de 1 a 6), patamar que a OCDE estabelece como necessário para que se possa dizer que eles exercem plenamente a cidadania. Esse percentual é maior na República Dominicana (90,5%) e menor na Finlândia (13,6%).
Em Ciências, mais de 56% dos alunos brasileiros, na faixa etária dos 15 aos 16 anos, contemplada na pesquisa, só conseguem resolver questões de baixa exigência cognitiva. No ranking de 14 países, elaborado pelo Inep, o Brasil só está à frente do Peru (397) e, novamente, da República Dominicana (332).
Mais uma vez, resultados preocupantes como esses nos levam a reiterar que a Educação não é uma prioridade para o Estado brasileiro. A sociedade tem que se dar conta de que isso é inaceitável. É necessário que assuma uma posição enérgica e ativa para reivindicar não apenas uma vaga na escola, mas também uma escola de qualidade — e para todas e todos.
Da mesma forma que, com êxito, parcela expressiva da população brasileira se está fazendo ouvir diante das tentativas de conter avanços sociais importantes, como os protestos que atacam a corrupção endêmica no país, chegou o momento de ela não aceitar mais uma educação ruim, igualmente endêmica, que assola o Brasil e reproduz desigualdades intoleráveis.
Jorge Werthein
Apesar da expansão quantitativa das matrículas, a cada comparação internacional, a cada divulgação dos resultados da educação básica no Brasil, renova-se esse constrangimento. Já no Pisa 2003, o país continuava nas últimas posições. Chega o Pisa 2015, 12 anos depois (!), e o Brasil, estagnado, continua tão mal posicionado no ranking mundial da Educação quanto no passado, entre os piores do mundo.
Observamos o cruzamento de dois tipos de pobreza na Educação brasileira: ela é pobre quando comparada a padrões internacionais, mas é ainda mais pobre quando oferecida aos filhos de pais pobres. Os alunos mais desfavorecidos materialmente aprendem menos, e os mais ricos têm melhores notas. A perversidade dessa combinação chama poderosamente nossa atenção. Como afirma recente editorial do GLOBO, “mesmo previsível, a tragédia da Educação no país assusta”.
O Brasil se acostumou a aceitar, como naturais, indicadores que deveriam ser firmemente repudiados pela sociedade: taxas de homicídios altíssimas, resolução de conflitos de forma violenta a todo momento, colapso dos sistemas públicos de saúde e resultados lamentáveis dos sistemas educacionais, tanto públicos quanto privados.
O caso da Educação é flagrante e merece destaque, pois está por trás de outras mazelas sociais do país. No recente Pisa 2015, amplamente relatado pela imprensa brasileira, as médias dos alunos brasileiros não tiveram avanço significativo nas três áreas avaliadas: Matemática, Leitura e Ciências.
O escore médio dos jovens estudantes brasileiros na avaliação de Ciências foi de 401 pontos. Esse número é consideravelmente inferior ao da média dos estudantes dos países membros da OCDE (493). Pouco mais de 40% dos estudantes brasileiros atingiram o nível 2 de uma escala que vai de 1 a 6, ou seja, o nível básico de proficiência que permite a aprendizagem e a participação plena na vida social, econômica e cívica das sociedades modernas em um mundo globalizado.
No que diz respeito à leitura, o Brasil teve média de 41,4% com relação ao percentual de respostas corretas. Se comparado a países da OCDE, essa média se mostra muito inferior: Finlândia (65,5%), Canadá (64,9%), Coreia do Sul (64,4%), Estados Unidos (60%), Portugal (59,9%), Espanha (59,8%), Chile (51,9%). O escore médio dos estudantes brasileiros de 15 anos na avaliação de leitura foi de 407 pontos, enquanto a média na OCDE ficou em 493.
O escore médio do estudante brasileiro em Matemática foi de 377 pontos. A média da OCDE foi 490. No Brasil, 70,3% dos estudantes estão abaixo do nível 2 (na mesma escala que vai de 1 a 6), patamar que a OCDE estabelece como necessário para que se possa dizer que eles exercem plenamente a cidadania. Esse percentual é maior na República Dominicana (90,5%) e menor na Finlândia (13,6%).
Em Ciências, mais de 56% dos alunos brasileiros, na faixa etária dos 15 aos 16 anos, contemplada na pesquisa, só conseguem resolver questões de baixa exigência cognitiva. No ranking de 14 países, elaborado pelo Inep, o Brasil só está à frente do Peru (397) e, novamente, da República Dominicana (332).
Mais uma vez, resultados preocupantes como esses nos levam a reiterar que a Educação não é uma prioridade para o Estado brasileiro. A sociedade tem que se dar conta de que isso é inaceitável. É necessário que assuma uma posição enérgica e ativa para reivindicar não apenas uma vaga na escola, mas também uma escola de qualidade — e para todas e todos.
Da mesma forma que, com êxito, parcela expressiva da população brasileira se está fazendo ouvir diante das tentativas de conter avanços sociais importantes, como os protestos que atacam a corrupção endêmica no país, chegou o momento de ela não aceitar mais uma educação ruim, igualmente endêmica, que assola o Brasil e reproduz desigualdades intoleráveis.
Jorge Werthein
Privilégios a militares, parlamentares e juízes na Previdência são inaceitáveis
Na discussão sobre a reforma da Previdência está sendo superdimensionada a dedicação dos militares. Em princípio, ninguém é obrigado a seguir carreira nas Forças Armadas. Quem optou por esta profissão sabia exatamente o que ela exige e oferece. Quanto às prontidões ou serviços de 24 horas, isso não é exclusividade do Exército ou Marinha ou Aeronáutica. Qualquer médico, enfermeira, policial militar ou civil, motorista de ônibus ou aeroviário, entre muitos outros profissionais, conhece de cor e salteado ficar sem dormir, atendendo pacientes ou ocorrências policiais, transportando passageiros etc. e tal.
E ganham bem menos que os militares, que depois do serviço e até serem escalados novamente, apenas “trabalham” meio expediente. De mais a mais, é uma falácia alegar que “o Exército está nas fronteiras”, porque muitas outras instituições públicas também operam nessas regiões, como a Polícia Federal e a Receita Federal. Com exceção da Amazônia, não vejo os militares nas divisas com a Bolívia, Peru, Paraguai, Uruguai, Argentina, que eu as conheço muito bem, mas lá encontrei os agentes da Polícia Federal.
Com relação aos militares de baixa patente, quem dera que se entrasse para as Forças Armada no posto de general, e não como “cadete” ou soldado raso. Ainda assim, de soldado, cabo, até a aspirante a oficial, o soldo está excelente, muitíssimo maior que a média do trabalhador da iniciativa privada, que dá duro de sol a sol, e não somente meio turno, como hoje existe nos quartéis.
Portanto, convenhamos, os privilégios aos militares, parlamentares, magistrados etc. representam uma injustiça aos demais trabalhadores, que marcham solenemente no dia a dia como pagadores de impostos e patrocinadores dessas mordomias e regalias que os três poderes se concederam.
Por outro lado, se é este o espírito e o desejo dos militares, que pretendem diferenciar da população os seus aquartelados, colocando-os em pedestais de incomparabilidade com os “paisanos”, então é porque a maionese desandou mesmo, a ponto de os membros das Forças Armadas nos tomarem como inimigos e nos explorarem até onde for possível, do mesmo modo como fazem os parlamentares e também os juízes, que se julgam acima do bem e do mal, razão pela qual devem receber proventos milionários, várias férias por ano, podendo engavetar processos por anos a fio, e o povo que dê jeito de sustentar os diferenciados e privilegiados trabalhadores que se julgam superiores aos demais brasileiros.
Se isso for verdade, decididamente este país sucumbiu a si mesmo.
E ganham bem menos que os militares, que depois do serviço e até serem escalados novamente, apenas “trabalham” meio expediente. De mais a mais, é uma falácia alegar que “o Exército está nas fronteiras”, porque muitas outras instituições públicas também operam nessas regiões, como a Polícia Federal e a Receita Federal. Com exceção da Amazônia, não vejo os militares nas divisas com a Bolívia, Peru, Paraguai, Uruguai, Argentina, que eu as conheço muito bem, mas lá encontrei os agentes da Polícia Federal.
Portanto, convenhamos, os privilégios aos militares, parlamentares, magistrados etc. representam uma injustiça aos demais trabalhadores, que marcham solenemente no dia a dia como pagadores de impostos e patrocinadores dessas mordomias e regalias que os três poderes se concederam.
Por outro lado, se é este o espírito e o desejo dos militares, que pretendem diferenciar da população os seus aquartelados, colocando-os em pedestais de incomparabilidade com os “paisanos”, então é porque a maionese desandou mesmo, a ponto de os membros das Forças Armadas nos tomarem como inimigos e nos explorarem até onde for possível, do mesmo modo como fazem os parlamentares e também os juízes, que se julgam acima do bem e do mal, razão pela qual devem receber proventos milionários, várias férias por ano, podendo engavetar processos por anos a fio, e o povo que dê jeito de sustentar os diferenciados e privilegiados trabalhadores que se julgam superiores aos demais brasileiros.
Se isso for verdade, decididamente este país sucumbiu a si mesmo.
Olho no olho, o corpo fala e diz mais
Um pinta ou implanta cabelos. Outro ajeita a gravata bem abaixo ou bem acima do cinto ao pé do ventre, contrariando todas as regras da etiqueta. E não faltam também outras que, mesmo sem repetir o vestido e os sapatos, têm cabeleireiros e maquiadores que seriam reprovados ainda na preparação das múmias do Egito antigo!
Todos devemos muito a fotógrafos e cinegrafistas. Uma coisa é ler a frase proferida pelo parlamentar que não domina sequer a língua falada, sua ferramenta de trabalho por excelência, ou ouvi-la de terceiros. Mas outra, bem diferente, é ver a cara dos brutos proferindo a infâmia. E que delícia contemplá-los naquelas vestes e pompas!
Mas ainda mais forte é ver e ouvir o cara de pau olhando meio de lado para a câmera e atestando o contrário, não apenas do que diz, mas do que sente e pensa.
O corpo fala, mede, fixa a altura, a profundidade, a largura, o tamanho e é capaz de evidenciar verdades ocultas e realçar ainda mais as mentiras profissionais.
A língua portuguesa mostra isso em numerosas palavras e expressões. A polegada, medida fixada em dois centímetros e meio pelo rei inglês Eduardo I, no século XVI, ainda hoje mede a tela de celulares, smartphones, tablets e televisores em que contemplamos a face mais sinistra daqueles que elegemos.
O que vimos em tantos deles para os elevar a tão altos cargos, sem que possamos imputar a má escolha a ninguém mais, só mesmo aos eleitores, isto é, a nós mesmos, que votamos protegidos no último reduto da liberdade, a sacrossanta urna?
Dois dedos de prosa podem servir para descomplicar a questão emaranhada. O dedo-duro, simbolizado no gesto do alcagueta esticando o indicador, espanta-nos à simples menção, mesmo tanto tempo depois de governos impostos contra a democracia, quando se mostrou ferramenta de exercício do poder.
Nos tempos atuais, o gesto migrou da mão para a língua no bater de línguas nos dentes nas delações premiadas, sem as quais provavelmente jamais o distinto público saberia de coisa alguma. Só sabe porque os arrependidos ou flagrados com a boca na botija resolveram falar para salvar a própria pele.
Estes políticos que traíram o público serão julgados olho por olho, dente por dente ou vão cumprir as sentenças apenas com o adereço da tornozeleira eletrônica?
A coisa pode também não nos cheirar bem, por faltar vergonha na cara de quem proferiu, expressou ou escreveu a infâmia da semana passada.
A democracia, à semelhança da baiana, tem ‘graça como ninguém’ e ‘requebra bem’, itens que as réguas não medem, para evitar equívocos. Afinal, por duas polegadas a mais, já passaram a baiana pra trás. E sempre restará a questão vista de outro modo: Marta Rocha tinha duas polegadas a mais ou a americana Miriam Stevenson tinha duas polegadas a menos?
Naquela oportunidade, quem decidiu, usou outras medidas ou usou as medidas de outro modo, como hoje fazem tantos poderes da República, esta nossa frágil plantinha, nascida de um golpe de Estado liderado por um marechal monarquista amigo do imperador mais republicano que tivemos, a quem o amigo depôs e despachou para o exílio no meio da noite, pois se aguardasse a manhã, o povo talvez o entronizasse de volta.
E com que medida os novos aliados medirão os antigos? Afinal, eles são sempre os mesmos, não são? Eles sempre se entenderam. Não se entenderão apenas desta vez? O que mudou para eles mudarem tanto, se é que vão mudar?
Falsas notícias: o fracasso da verdade no ano de 2016
“Pós-verdade: fazer referência ou denotar circunstâncias em que fatos objetivos têm menos influência na formação da opinião pública do que apelos à emoção e a convicções pessoais.”
A eleição de Donald Trump e o referendo que aprovou o Brexit estão por trás da escolha de pós-verdade como palavra de 2016 pelo venerando dicionário Oxford da língua inglesa.
Mas isto se passou no longínquo mês de novembro. Quando 2017 acordar, já é possível escolher uma palavra que perdeu sua artilharia semântica: Orwelliano. O adjetivo foi cunhado no pós-guerra com a publicação do romance 1984, a distopia totalitária imaginada por George Orwell, em que o protagonista reescreve a história para que a memória seja derrotada.
A eleição de Donald Trump e o referendo que aprovou o Brexit estão por trás da escolha de pós-verdade como palavra de 2016 pelo venerando dicionário Oxford da língua inglesa.
Mas isto se passou no longínquo mês de novembro. Quando 2017 acordar, já é possível escolher uma palavra que perdeu sua artilharia semântica: Orwelliano. O adjetivo foi cunhado no pós-guerra com a publicação do romance 1984, a distopia totalitária imaginada por George Orwell, em que o protagonista reescreve a história para que a memória seja derrotada.
Os embustes são parte da história do jornalismo”, diz Schneider. “A diferença hoje é a rapidez da propagação e o fato de que há tecnologia e interesse econômico em maximizar a distribuição
Howard Schneider
Os fatos sempre viveram sob assalto de ditadores, demagogos e comerciantes de biotônicos inócuos ou de guerras devastadoras com base em fabricações. Mas 2016 foi o ano em que a verdade foi derrotada na urna de dois faróis da democracia ocidental, Grã-Bretanha e Estados Unidos. Fatos mundanos, aritmética simples foram omitidos ou falsificados para exacerbar o sentimento anti-imigrante entre os britânicos. Mas a realidade voltou para puxar a perna dos angustiados eleitores do Brexit, como demonstra o moroso processo de desligamento da União Europeia.
Nos EUA, o ano termina com um cenário mais assustador. Mesmo depois de eleito, Donald Trump continuou a mentir com a aprovação tácita de parte da mídia e da minoria que votou nele. E ele conta com um fenômeno que nasceu na era Nixon, mas foi articulado e cozinhado nas duas últimas décadas por seu ex-assessor de campanha, Roger Ailes, fundador da Fox News: o antijornalismo. A mensagem da mídia favorita dos eleitores de Trump é: todos os jornalistas mentem, menos os que nós empregamos. Ailes foi demitido em julho por múltiplas acusações de assédio sexual, mas sua usina de fabricações continua intocada e facilitadora do recém-eleito Trump, Editor-Chefe dos Estados Unidos do Pensamento Mágico.
O principal repórter político da Fox, o veterano Chris Wallace, nem piscou, muito menos contestou quando o presidente eleito afirmou o seguinte, no último domingo: “minha vitória foi uma das maiores da história”. Fato: a vitória de Donald Trump em número de delegados está em 48º lugar em 58 eleições presidenciais no Colégio Eleitoral. Ele obteve a maior derrota no voto popular da história da república. Hillary Clinton tem, até este momento, uma vantagem de 2,85 milhões de votos dos norte-americanos.
Além de ter sido decidida por 80 mil eleitores em três Estados, num país de 300 milhões de habitantes, a campanha presidencial de 2016 marcou um descolamento de fatos sem precedentes turbinado pela explosão de fake news, as falsas notícias veiculadas pelo duopólio digital planetário do Facebook e do Google. A epidemia de desinformação mobilizou até o Papa Francisco, que comparou o consumo de fake news a comer cocô. Mas o apetite pela iguaria escatológica não será diminuído com sermões ou ressentimento ideológico. Sim, os conteúdos falsos anti-Hillary Clinton tiveram muito maior distribuição no Facebook do que os críticos ao presidente eleito.
Na quinta-feira, o Facebook anunciou uma série de medidas para combater a veiculação de fake news. Durante um mês, Mark Zuckerberg tentou desconversar, insistindo na neutralidade de sua rede social com mais de 1,8 bilhão de membros ativos. As novas medidas incluem um recurso para o internauta levantar suspeita sobre um conteúdo e a terceirização do fact checking para uma coalizão que inclui a Associated Press, ABC News e o Washington Post. É cedo para avaliar a eficácia das medidas, mas elas implicam a aceitação do óbvio: o Facebook é uma companhia de mídia.
Até o fato de usarmos a expressão pós-verdade e não mentira, lorota, embuste ou ficção aponta para a desejada derrota da memória tramada no romance de Orwell. O que fazer? Já passamos da complacência travestida de postura libertária como “todo filtro é censura”? Quando uma quase tragédia ocorre dentro de uma popular pizzaria de Washington, invadida por um homem armado que acreditou numa falsa notícia viral sobre Hillary envolvida com tráfico sexual de menores, é o caso de avaliar as consequências do fenômeno sobre a democracia?
Depois da eleição de novembro, uma escola de jornalismo no belo e sonolento câmpus da Universidade de Stony Brook, em Long Island, Nova York, recebeu telefonemas vários países, com pedidos de informação sobre um curso, conta o veterano jornalista e editor Howard Schneider, diretor da escola. Quando o Facebook e o Twitter eram ainda recém-nascidos, Schneider, com décadas de carreira analógica, ensinava Ética em Jornalismo e criou um novo curso na escola de Jornalismo da Universidade de Stony Brook, em Long Island, a 90 minutos de Manhattan. Ele já ensinava Ética em Jornalismo, mas notou que seus alunos pareciam perdidos com o aumento de fluxo de informação digital e demonstravam um crescente cinismo sobre a credibilidade de fontes. Com o apoio de acadêmicos de outras área no câmpus, Schneider fundou o centro de News Literacy de Stony Brook, uma espécie de alfabetização adulta em consumo de notícias.
Uma década e dez mil estudantes depois, Schneider diz ao Estado que o alvo ideal do curso de News Literacy tem 12 anos. “É mais difícil incutir ceticismo e capacidade crítica numa geração que já chega à universidade tendo consumido tanta mídia,” diz.
O centro de Stony Brook apoia um programa piloto numa escola pública de ensino médio do bairro de Coney Island, no Brooklyn, em que alunos desde a 6ª série – média de 11 anos – “se alfabetizam” em jornalismo com ajuda de materiais multimídia fornecidos pela equipe de Schneider. Eles são estimulados a questionar fatos, conferir origem da informação e até avaliar se as fontes têm interesse em se beneficiar desta ou daquela versão.
“Os embustes são parte da história do jornalismo”, diz Schneider. “A diferença hoje é a rapidez da propagação e o fato de que há tecnologia e interesse econômico em maximizar a distribuição. Há duas frentes, a ideológica e o interesse financeiro em monetizar conteúdo online”, conclui. A este cenário, ele acrescenta o fato de que uma população cada vez maior se informa através da rede social sem contato com as fontes e a explosão de polarização política nos Estados Unidos, que ele chama de hiperpartidarismo. O jornalista expressa também alguma simpatia pelo Facebook e o Google. “Mudar algoritmos e filtrar conteúdo apenas não resolve o problema”, argumenta. “O filtro mais poderoso é o público alerta e educado para distinguir fato de ficção.”
Uma pesquisa feita pelo BuzzFeed descobriu dezenas de websites difusores de fake news em Veles, cidade de menos de 50 mil habitantes na Macedônia. Os redatores produziam conteúdo que gerava mais dinheiro em hits, como notícias sobre saúde ou, nos websites políticos, notícias pró Trump ou anti-Hillary. Não se tratava de ideologia, e sim de monetização da ferramenta AdSense de anúncios do Google.
Há outro fator que facilita a propagação de embustes como a notícia de que Hillary Clinton era traficante de sexo. Experiências feitas por psicólogos mostram que teorias conspiratórias triunfam mais entre pessoas vulneráveis – aqueles que não se sentem no controle de seu destino.
Não é coincidência as mentiras notórias do presidente eleito pouco importarem a boa parte do seu eleitorado, trabalhadores brancos em indústrias em declínio que se sentem marginalizados com a crescente diversificação étnica do país e a transformação tecnológica da economia. Quando o seu horizonte parece drasticamente reduzido, é compreensível a atração e o consolo de uma voz que oferece soluções simples (falsas) para problemas complexos. Quem passou 30 anos ganhando um salário de classe média numa mina de carvão que acaba de ser fechada, prefere ouvir a fantasia de que um homem vai colocar o mercado de energia de joelhos para reabrir a mina e tornar o carvão uma fonte de energia viável.
É impossível lidar com a desinformação global de olhos fechados para 15 anos de investimento de Vladimir Putin em propaganda em múltiplos países. Ainda estamos navegando no escuro sobre o que descobriu a inteligência norte-americana sobre o hacking russo da eleição. Sabemos que contou com participação ativa do FSB (sucessor da KGB) e do GRU (o serviço de inteligência militar) – às vezes, comicamente hackeando a sede do Partido Democrata ao mesmo tempo, como um gatuno sem notar a presença do outro numa joalheria escura. Sabemos que Vladimir Putin queria punir Hillary Clinton, desacreditar a eleição nos EUA e talvez até tenha se surpreendido com a eleição de Donald Trump, um resultado que satisfaz o Kremlin.
Até novembro, o ecossistema de falsificação e propaganda era observado à distância pelos norte-americanos, como instrumento de ditadores ou de uma minoria extremista doméstica. Até que acordaram no dia 9 de novembro e começaram a compreender que o autoritarismo da desinformação foi legitimado nas urnas. A ideia de que comunidades compartilham de fatos como o índice de emprego, ou o aumento da temperatura média é desafiada diariamente. Mas uma nova pesquisa do Pew Research Center revela fadiga do caos informativo. Dois terços dos adultos consultados pelo disseram que notícias fabricadas provocam confusão e têm impacto na vida do país. Um sinal de que o telefone deve continuar tocando no câmpus de Stony Brook.
Nos EUA, o ano termina com um cenário mais assustador. Mesmo depois de eleito, Donald Trump continuou a mentir com a aprovação tácita de parte da mídia e da minoria que votou nele. E ele conta com um fenômeno que nasceu na era Nixon, mas foi articulado e cozinhado nas duas últimas décadas por seu ex-assessor de campanha, Roger Ailes, fundador da Fox News: o antijornalismo. A mensagem da mídia favorita dos eleitores de Trump é: todos os jornalistas mentem, menos os que nós empregamos. Ailes foi demitido em julho por múltiplas acusações de assédio sexual, mas sua usina de fabricações continua intocada e facilitadora do recém-eleito Trump, Editor-Chefe dos Estados Unidos do Pensamento Mágico.
O principal repórter político da Fox, o veterano Chris Wallace, nem piscou, muito menos contestou quando o presidente eleito afirmou o seguinte, no último domingo: “minha vitória foi uma das maiores da história”. Fato: a vitória de Donald Trump em número de delegados está em 48º lugar em 58 eleições presidenciais no Colégio Eleitoral. Ele obteve a maior derrota no voto popular da história da república. Hillary Clinton tem, até este momento, uma vantagem de 2,85 milhões de votos dos norte-americanos.
Além de ter sido decidida por 80 mil eleitores em três Estados, num país de 300 milhões de habitantes, a campanha presidencial de 2016 marcou um descolamento de fatos sem precedentes turbinado pela explosão de fake news, as falsas notícias veiculadas pelo duopólio digital planetário do Facebook e do Google. A epidemia de desinformação mobilizou até o Papa Francisco, que comparou o consumo de fake news a comer cocô. Mas o apetite pela iguaria escatológica não será diminuído com sermões ou ressentimento ideológico. Sim, os conteúdos falsos anti-Hillary Clinton tiveram muito maior distribuição no Facebook do que os críticos ao presidente eleito.
Na quinta-feira, o Facebook anunciou uma série de medidas para combater a veiculação de fake news. Durante um mês, Mark Zuckerberg tentou desconversar, insistindo na neutralidade de sua rede social com mais de 1,8 bilhão de membros ativos. As novas medidas incluem um recurso para o internauta levantar suspeita sobre um conteúdo e a terceirização do fact checking para uma coalizão que inclui a Associated Press, ABC News e o Washington Post. É cedo para avaliar a eficácia das medidas, mas elas implicam a aceitação do óbvio: o Facebook é uma companhia de mídia.
Até o fato de usarmos a expressão pós-verdade e não mentira, lorota, embuste ou ficção aponta para a desejada derrota da memória tramada no romance de Orwell. O que fazer? Já passamos da complacência travestida de postura libertária como “todo filtro é censura”? Quando uma quase tragédia ocorre dentro de uma popular pizzaria de Washington, invadida por um homem armado que acreditou numa falsa notícia viral sobre Hillary envolvida com tráfico sexual de menores, é o caso de avaliar as consequências do fenômeno sobre a democracia?
Depois da eleição de novembro, uma escola de jornalismo no belo e sonolento câmpus da Universidade de Stony Brook, em Long Island, Nova York, recebeu telefonemas vários países, com pedidos de informação sobre um curso, conta o veterano jornalista e editor Howard Schneider, diretor da escola. Quando o Facebook e o Twitter eram ainda recém-nascidos, Schneider, com décadas de carreira analógica, ensinava Ética em Jornalismo e criou um novo curso na escola de Jornalismo da Universidade de Stony Brook, em Long Island, a 90 minutos de Manhattan. Ele já ensinava Ética em Jornalismo, mas notou que seus alunos pareciam perdidos com o aumento de fluxo de informação digital e demonstravam um crescente cinismo sobre a credibilidade de fontes. Com o apoio de acadêmicos de outras área no câmpus, Schneider fundou o centro de News Literacy de Stony Brook, uma espécie de alfabetização adulta em consumo de notícias.
Uma década e dez mil estudantes depois, Schneider diz ao Estado que o alvo ideal do curso de News Literacy tem 12 anos. “É mais difícil incutir ceticismo e capacidade crítica numa geração que já chega à universidade tendo consumido tanta mídia,” diz.
O centro de Stony Brook apoia um programa piloto numa escola pública de ensino médio do bairro de Coney Island, no Brooklyn, em que alunos desde a 6ª série – média de 11 anos – “se alfabetizam” em jornalismo com ajuda de materiais multimídia fornecidos pela equipe de Schneider. Eles são estimulados a questionar fatos, conferir origem da informação e até avaliar se as fontes têm interesse em se beneficiar desta ou daquela versão.
“Os embustes são parte da história do jornalismo”, diz Schneider. “A diferença hoje é a rapidez da propagação e o fato de que há tecnologia e interesse econômico em maximizar a distribuição. Há duas frentes, a ideológica e o interesse financeiro em monetizar conteúdo online”, conclui. A este cenário, ele acrescenta o fato de que uma população cada vez maior se informa através da rede social sem contato com as fontes e a explosão de polarização política nos Estados Unidos, que ele chama de hiperpartidarismo. O jornalista expressa também alguma simpatia pelo Facebook e o Google. “Mudar algoritmos e filtrar conteúdo apenas não resolve o problema”, argumenta. “O filtro mais poderoso é o público alerta e educado para distinguir fato de ficção.”
Uma pesquisa feita pelo BuzzFeed descobriu dezenas de websites difusores de fake news em Veles, cidade de menos de 50 mil habitantes na Macedônia. Os redatores produziam conteúdo que gerava mais dinheiro em hits, como notícias sobre saúde ou, nos websites políticos, notícias pró Trump ou anti-Hillary. Não se tratava de ideologia, e sim de monetização da ferramenta AdSense de anúncios do Google.
Há outro fator que facilita a propagação de embustes como a notícia de que Hillary Clinton era traficante de sexo. Experiências feitas por psicólogos mostram que teorias conspiratórias triunfam mais entre pessoas vulneráveis – aqueles que não se sentem no controle de seu destino.
Não é coincidência as mentiras notórias do presidente eleito pouco importarem a boa parte do seu eleitorado, trabalhadores brancos em indústrias em declínio que se sentem marginalizados com a crescente diversificação étnica do país e a transformação tecnológica da economia. Quando o seu horizonte parece drasticamente reduzido, é compreensível a atração e o consolo de uma voz que oferece soluções simples (falsas) para problemas complexos. Quem passou 30 anos ganhando um salário de classe média numa mina de carvão que acaba de ser fechada, prefere ouvir a fantasia de que um homem vai colocar o mercado de energia de joelhos para reabrir a mina e tornar o carvão uma fonte de energia viável.
É impossível lidar com a desinformação global de olhos fechados para 15 anos de investimento de Vladimir Putin em propaganda em múltiplos países. Ainda estamos navegando no escuro sobre o que descobriu a inteligência norte-americana sobre o hacking russo da eleição. Sabemos que contou com participação ativa do FSB (sucessor da KGB) e do GRU (o serviço de inteligência militar) – às vezes, comicamente hackeando a sede do Partido Democrata ao mesmo tempo, como um gatuno sem notar a presença do outro numa joalheria escura. Sabemos que Vladimir Putin queria punir Hillary Clinton, desacreditar a eleição nos EUA e talvez até tenha se surpreendido com a eleição de Donald Trump, um resultado que satisfaz o Kremlin.
Até novembro, o ecossistema de falsificação e propaganda era observado à distância pelos norte-americanos, como instrumento de ditadores ou de uma minoria extremista doméstica. Até que acordaram no dia 9 de novembro e começaram a compreender que o autoritarismo da desinformação foi legitimado nas urnas. A ideia de que comunidades compartilham de fatos como o índice de emprego, ou o aumento da temperatura média é desafiada diariamente. Mas uma nova pesquisa do Pew Research Center revela fadiga do caos informativo. Dois terços dos adultos consultados pelo disseram que notícias fabricadas provocam confusão e têm impacto na vida do país. Um sinal de que o telefone deve continuar tocando no câmpus de Stony Brook.
Colapsos urbanos?
Durante a campanha eleitoral de 2008, em disputa pela prefeitura paulistana, o candidato do PSTU, um professor cujo nome não me vem à mente neste exato momento, disse uma coisa perfeita. Falou que São Paulo precisava eleger um prefeito de verdade, não um mero agente imobiliário, um funcionário público a serviço do setor da construção civil.
De fato, não temos prefeitos-de-verdade em nossos mais de cinco mil municípios. Haddad, em São Paulo, foi exceção mais do que rara. Para a quase totalidade de nossos alcaides, urbanismo é luxo, conversa fiada de arquiteto. Planejamento urbano só interessa se der lucro. Ecologia atrapalha o “desenvolvimento”.
Esses caras, de modo praticamente unânime, não estão preocupados com as cidades que supostamente deveriam governar. A cidade, para eles, não passa de um trampolim para o cargo mais alto de governador, quiçá de presidente. Alguns, são obrigados a se contentar com os postos de deputado ou senador.
Durante seus mandatos, não é raro que as cidades sejam levadas à falência. Prevalecem ações imediatistas e predatórias. Obras vistosas (pouco importa se realmente necessárias ou não). Estupros urbanísticos, cuja longa tradição no Brasil quase rivaliza com a história de nossas violências sexuais. Corrupção. E imprevidência.
Neste momento, por exemplo, nossas cidades não estão encarando seus grandes problemas do presente – e muito menos se preparando para desafios futuros que já começam a se insinuar – e, em alguns casos, a se desenhar – no horizonte.
Tome-se o caso do aquecimento global (ao contrário do que ocorre nos países mais avançados da Europa, por exemplo, nossos prefeitos sorriem algo ironicamente quando ouvem a expressão). Pelo andar da carruagem, nossas cidades litorais irão experimentar momentos difíceis, angustiantes mesmo. Mas quem está preocupado com isso?
Mas não é só a elevação do nível do mar. Com o aquecimento, alguns espaços da extensão territorial brasileira podem se tornar insuportáveis para seres humanos, com ondas de calor a varrer terras nortistas e nordestinas, provocando mortes. E o que vai atingir em cheio determinadas cidades: fortes fluxos migratórios interurbanos.
O Brasil, que já concluiu sua transição demográfica campo-cidade na década de 1970, deverá conhecer, daqui a pouquíssimas décadas, nova onda migratória – desta vez, entre cidades. Com rios minguando, crise elétrica, usinas se convertendo em monumentos irônicos, calor dos infernos. Mas – repito – quem está preocupado com isso?
De fato, não temos prefeitos-de-verdade em nossos mais de cinco mil municípios. Haddad, em São Paulo, foi exceção mais do que rara. Para a quase totalidade de nossos alcaides, urbanismo é luxo, conversa fiada de arquiteto. Planejamento urbano só interessa se der lucro. Ecologia atrapalha o “desenvolvimento”.
Durante seus mandatos, não é raro que as cidades sejam levadas à falência. Prevalecem ações imediatistas e predatórias. Obras vistosas (pouco importa se realmente necessárias ou não). Estupros urbanísticos, cuja longa tradição no Brasil quase rivaliza com a história de nossas violências sexuais. Corrupção. E imprevidência.
Neste momento, por exemplo, nossas cidades não estão encarando seus grandes problemas do presente – e muito menos se preparando para desafios futuros que já começam a se insinuar – e, em alguns casos, a se desenhar – no horizonte.
Tome-se o caso do aquecimento global (ao contrário do que ocorre nos países mais avançados da Europa, por exemplo, nossos prefeitos sorriem algo ironicamente quando ouvem a expressão). Pelo andar da carruagem, nossas cidades litorais irão experimentar momentos difíceis, angustiantes mesmo. Mas quem está preocupado com isso?
Mas não é só a elevação do nível do mar. Com o aquecimento, alguns espaços da extensão territorial brasileira podem se tornar insuportáveis para seres humanos, com ondas de calor a varrer terras nortistas e nordestinas, provocando mortes. E o que vai atingir em cheio determinadas cidades: fortes fluxos migratórios interurbanos.
O Brasil, que já concluiu sua transição demográfica campo-cidade na década de 1970, deverá conhecer, daqui a pouquíssimas décadas, nova onda migratória – desta vez, entre cidades. Com rios minguando, crise elétrica, usinas se convertendo em monumentos irônicos, calor dos infernos. Mas – repito – quem está preocupado com isso?
Adeus aos grandes mamíferos do planeta
Um dos relatos mais importantes da ficção contemporânea é intitulado O Grande Silêncio. É protagonizado (e contado) por um papagaio e tem pouco mais de quatro páginas. Seu autor é Ted Chiang, um norte-americano especialista em tecnologia da informação que, com um punhado de contos reveladores, entre eles o que inspirou o filme A Chegada, foi capaz de tocar nossas fibras mais sensíveis. O pássaro-narrador mora ao lado do telescópio de Arecibo, na floresta de Porto Rico, com o objetivo de tentar captar um som inteligente proveniente do espaço exterior, examinando o chamado “silêncio do universo”. No entanto, o papagaio se pergunta por que os humanos nunca tentaram falar com os seres de outras espécies com as quais compartilham o planeta: “Centenas de anos atrás, minha espécie era tão abundante que nossas vozes ressoavam por todos os lugares. Hoje, estamos quase extintos. Em breve, a selva será tão silenciosa quanto o resto do universo”. O desaparecimento da fauna tem sido um pesadelo recorrente da ficção – o título do livro de Philip K. Dick, no qual Blade Runner foi baseado, é Androides Sonham Com Ovelhas Elétricas?, porque descreve um mundo de megacidades nas quais não existem animais –, mas que agora é um processo já em andamento. É o que se chama a sexta extinção.
“É o acontecimento mais importante de nosso tempo. A situação é muito grave. Na verdade, não poderia ser mais grave”, diz Elizabeth Kolbert, jornalista norte-americana que no ano passado ganhou o Prêmio Pulitzer por seu livro cujo título é precisamente A Sexta Extinção – Uma História Não Natural, que o presidente Barack Obama recomendou em numerosas ocasiões. “É importante perceber que alguns ecossistemas, como recifes de coral, estão entrando em colapso atualmente”, acrescenta a jornalista da revista The New Yorker. E a National Geographic, em um artigo recente, levantou a questão de forma ainda mais dramática: “Os seres humanos sobreviverão à sexta extinção?”.
Nos quatro bilhões de anos que se passaram desde o início da vida na Terra, houve cinco episódios de extinção em massa de espécies. O mais famoso de todos ocorreu 66 milhões de anos atrás, no Cretáceo, quando o impacto de um meteorito causou a aniquilação dos dinossauros e de 80% das espécies terrestres. No entanto, esta sexta extinção tem uma diferença fundamental com as outras: somos os responsáveis. Desde o ano 1500, 322 espécies foram extintas, mas agora o processo está em plena aceleração. Anthony Barnosky, paleobiólogo na Universidade Stanford (EUA) e especialista no funcionamento de ecossistemas, resume a situação: “Se não tomarmos medidas diante da atual crise, os netos de nossos filhos viverão em um mundo no qual três quartas partes das espécies que existem na atualidade terão desaparecido para sempre”. Nos oceanos, continua Barnosky, muitos dos animais dos quais nos alimentamos, como o atum, terão também desaparecido.
Um planeta no qual não existam leões, tigres, rinocerontes, girafas ou elefantes em liberdade, animais com os quais a humanidade vem sonhando pelo menos desde que os pintou nas paredes da caverna Chauvet, há 33.000 anos, é uma possibilidade cada vez mais real e provável. Essa também é a conclusão de uma equipe internacional de cientistas, que publicou em outubro o relatório Saving the World's Megafauna (Salve a Megafauna do Mundo) na revista Bioscience, da Universidade de Oxford (Reino Unido).
O estudo concluía: “A maioria da megafauna de mamíferos enfrenta dramáticas reduções de seu âmbito geográfico e declínios populacionais significativos. De fato, 59% dos maiores carnívoros e 60% dos herbívoros de grande porte estão ameaçados de extinção. Esta situação é particularmente crítica na África Subsaariana e no sudeste Asiático, lugares que abrigam a maior diversidade de megafauna existente. O grupo de espécies em risco de extinção inclui alguns dos animais mais emblemáticos do mundo, como os gorilas, rinocerontes e grandes felinos. Ironicamente, essas espécies estão desaparecendo justamente quando se torna cada vez mais evidente o papel tão essencial que desempenham nos ecossistemas”.
Nos últimos anos, tem aumentado o número de pesquisas científicas de todos os tipos de centros de estudo e universidades, que traçam um panorama cada vez mais preocupante. Para citar apenas as mais recentes, em outubro passado a organização de conservação global WWF publicou a última edição de seu Índice Planeta Vivo, um relatório bianual que monitora 14.152 populações de 3.706 espécies, e concluía que, entre 1970 e 2012, houve um declínio de 58% desses animais em todo o mundo. Se a situação não melhorar, a WWF indicou que, em 2020, dois terços dos animais selvagens terão desaparecido em relação à quantidade de 1970 (uma queda de 67%).
No início de dezembro, foram publicados dois dados que mostram até que ponto a sexta extinção é um fenômeno global: a Lista Vermelha de Espécies Ameaçadas, divulgada pela União Internacional para a Conservação da Natureza, o índice mais utilizado e citado para monitorar os animais que estão em perigo, indicou que mais de metade das raias, tubarões e quimeriformes (uma ordem de peixes cartilaginosos) do Mediterrâneo – 73 espécies no total – está em risco de extinção.
A mesma instituição publicou, em 8 de dezembro, um outro relatório informando que um dos animais mais emblemáticos e reconhecidos, a girafa, o mamífero mais alto do mundo, está sofrendo “um declínio devastador em suas populaçõesdevido à perda de habitat, guerras civis e caça ilegal”. Sua população mundial diminuiu em 40% em 30 anos. No total, a Lista Vermelha inclui 85.604 espécies, das quais 24.307 estão ameaçadas de extinção.
Parafraseando o grande Ennio Flaiano, poderíamos dizer que, neste caso, a situação é grave e também muito séria. Os caminhos percorridos pela natureza quando as espécies desaparecem são imprevisíveis, porque elas dependem umas das outras e, se uma parte do sistema falhar, é difícil saber como irá se reequilibrar.
A maioria dos cientistas que estuda a sexta extinção chegou à mesma conclusão: trata-se de um processo contínuo, mas pode ser reversível. “Não é tarde demais”, afirmou Jonathan L. Payne, professor adjunto da Universidade Stanford (EUA) e um dos autores de outro relatório, publicado em setembro pela revista Science, que anunciava uma extinção “sem precedentes” dos grandes animais marinhos. “A porcentagem de espécies que já estão extintas ainda é bem inferior ao porcentual que desapareceu em episódios anteriores.”
O biólogo José Vicente López-Bao, pesquisador da Universidade de Oviedo, na Espanha, que participou do relatório Saving the World's Megafauna, afirma: “As sociedades modernas devem exigir um maior compromisso político em matéria de conservação, incluindo respeitar as decisões adotadas nos tratados e convenções internacionais, coordenar esforços e um maior apoio financeiro para a conservação da biodiversidade. Do contrário, muitas populações e espécies correm risco de não chegar ao próximo século”.
Elizabeth Kolbert acrescenta: “É, obviamente, muito tarde para muitas criaturas que já estão extintas ou foram reduzidas a alguns poucos indivíduos. Mas não é para milhões de espécies”. Ao comentar a influência neste processo das possíveis políticas do presidente eleito dos EUA, Donald Trump – que nomeou como chefe da Agência de Meio Ambiente um negacionista da mudança climática, Scott Pruitt –, Kolbert disse: “Tenho medo de que as coisas piorem”.
A sexta extinção não é apenas produto das mudanças climáticas – exceto no caso de animais como ursos polares, que, com a redução da camada de gelo, perdem a capacidade de caçar –, mas também de um conjunto de fatores que têm um ponto em comum: a humanidade. Por exemplo, o desmatamento, o desaparecimento de habitats, o aumento das terras dedicadas à agricultura e à pecuária, a caça ilegal, o comércio ilegal de espécies (o tráfico de marfim pode eliminar os elefantes do planeta, e uma forma de culinária pode extinguir o pangolim, um tatu asiático) ou a exploração descontrolada (no caso de muitas espécies marinhas).
Jonathan L. Payne explica: “As mudanças no clima (aquecimento global acelerado) e nos oceanos (acidificação e declínio de oxigênio) ocorreram durante extinções em massa anteriores. No entanto, nossas análises sugerem que as mudanças biológicas que estamos experimentando, particularmente a extinção seletiva de espécies de todos os tipos, são diferentes de qualquer processo anterior”.
A humanidade vem há muitos séculos moldando a terra: basta visitar as Médulas, em León (Espanha), uma paisagem que os romanos forjaram com suas explorações de minas, ou imaginar a quantidade de resíduos que Roma produzia em seu máximo esplendor, uma cidade onde viviam um milhão de pessoas no século I, para notarmos nossa capacidade de alterar o ambiente. E as mudanças começaram provavelmente muito antes: um estudo publicado em novembro pelos professores Jed Kaplan, da Universidade de Lausanne, e Jan Kolen, da Universidade de Leiden, concluiu que cerca de 20.000 anos atrás, em plena Idade do Gelo, os caçadores coletores queimaram grandes extensões de floresta e, portanto, transformaram radicalmente seu ambiente. No entanto, nada se compara ao processo no qual estamos imersos hoje, embora alguns cientistas afirmem que não é a primeira extinção em massa causada pela humanidade.
“É o acontecimento mais importante de nosso tempo. A situação é muito grave. Na verdade, não poderia ser mais grave”, diz Elizabeth Kolbert, jornalista norte-americana que no ano passado ganhou o Prêmio Pulitzer por seu livro cujo título é precisamente A Sexta Extinção – Uma História Não Natural, que o presidente Barack Obama recomendou em numerosas ocasiões. “É importante perceber que alguns ecossistemas, como recifes de coral, estão entrando em colapso atualmente”, acrescenta a jornalista da revista The New Yorker. E a National Geographic, em um artigo recente, levantou a questão de forma ainda mais dramática: “Os seres humanos sobreviverão à sexta extinção?”.
Nos quatro bilhões de anos que se passaram desde o início da vida na Terra, houve cinco episódios de extinção em massa de espécies. O mais famoso de todos ocorreu 66 milhões de anos atrás, no Cretáceo, quando o impacto de um meteorito causou a aniquilação dos dinossauros e de 80% das espécies terrestres. No entanto, esta sexta extinção tem uma diferença fundamental com as outras: somos os responsáveis. Desde o ano 1500, 322 espécies foram extintas, mas agora o processo está em plena aceleração. Anthony Barnosky, paleobiólogo na Universidade Stanford (EUA) e especialista no funcionamento de ecossistemas, resume a situação: “Se não tomarmos medidas diante da atual crise, os netos de nossos filhos viverão em um mundo no qual três quartas partes das espécies que existem na atualidade terão desaparecido para sempre”. Nos oceanos, continua Barnosky, muitos dos animais dos quais nos alimentamos, como o atum, terão também desaparecido.
A causa não é apenas a mudança climática, mas também um conjunto de fatores que têm um ponto em comum: a atividade humana
Um planeta no qual não existam leões, tigres, rinocerontes, girafas ou elefantes em liberdade, animais com os quais a humanidade vem sonhando pelo menos desde que os pintou nas paredes da caverna Chauvet, há 33.000 anos, é uma possibilidade cada vez mais real e provável. Essa também é a conclusão de uma equipe internacional de cientistas, que publicou em outubro o relatório Saving the World's Megafauna (Salve a Megafauna do Mundo) na revista Bioscience, da Universidade de Oxford (Reino Unido).
O estudo concluía: “A maioria da megafauna de mamíferos enfrenta dramáticas reduções de seu âmbito geográfico e declínios populacionais significativos. De fato, 59% dos maiores carnívoros e 60% dos herbívoros de grande porte estão ameaçados de extinção. Esta situação é particularmente crítica na África Subsaariana e no sudeste Asiático, lugares que abrigam a maior diversidade de megafauna existente. O grupo de espécies em risco de extinção inclui alguns dos animais mais emblemáticos do mundo, como os gorilas, rinocerontes e grandes felinos. Ironicamente, essas espécies estão desaparecendo justamente quando se torna cada vez mais evidente o papel tão essencial que desempenham nos ecossistemas”.
Nos últimos anos, tem aumentado o número de pesquisas científicas de todos os tipos de centros de estudo e universidades, que traçam um panorama cada vez mais preocupante. Para citar apenas as mais recentes, em outubro passado a organização de conservação global WWF publicou a última edição de seu Índice Planeta Vivo, um relatório bianual que monitora 14.152 populações de 3.706 espécies, e concluía que, entre 1970 e 2012, houve um declínio de 58% desses animais em todo o mundo. Se a situação não melhorar, a WWF indicou que, em 2020, dois terços dos animais selvagens terão desaparecido em relação à quantidade de 1970 (uma queda de 67%).
No início de dezembro, foram publicados dois dados que mostram até que ponto a sexta extinção é um fenômeno global: a Lista Vermelha de Espécies Ameaçadas, divulgada pela União Internacional para a Conservação da Natureza, o índice mais utilizado e citado para monitorar os animais que estão em perigo, indicou que mais de metade das raias, tubarões e quimeriformes (uma ordem de peixes cartilaginosos) do Mediterrâneo – 73 espécies no total – está em risco de extinção.
A mesma instituição publicou, em 8 de dezembro, um outro relatório informando que um dos animais mais emblemáticos e reconhecidos, a girafa, o mamífero mais alto do mundo, está sofrendo “um declínio devastador em suas populaçõesdevido à perda de habitat, guerras civis e caça ilegal”. Sua população mundial diminuiu em 40% em 30 anos. No total, a Lista Vermelha inclui 85.604 espécies, das quais 24.307 estão ameaçadas de extinção.
Parafraseando o grande Ennio Flaiano, poderíamos dizer que, neste caso, a situação é grave e também muito séria. Os caminhos percorridos pela natureza quando as espécies desaparecem são imprevisíveis, porque elas dependem umas das outras e, se uma parte do sistema falhar, é difícil saber como irá se reequilibrar.
A maioria dos cientistas que estuda a sexta extinção chegou à mesma conclusão: trata-se de um processo contínuo, mas pode ser reversível. “Não é tarde demais”, afirmou Jonathan L. Payne, professor adjunto da Universidade Stanford (EUA) e um dos autores de outro relatório, publicado em setembro pela revista Science, que anunciava uma extinção “sem precedentes” dos grandes animais marinhos. “A porcentagem de espécies que já estão extintas ainda é bem inferior ao porcentual que desapareceu em episódios anteriores.”
O biólogo José Vicente López-Bao, pesquisador da Universidade de Oviedo, na Espanha, que participou do relatório Saving the World's Megafauna, afirma: “As sociedades modernas devem exigir um maior compromisso político em matéria de conservação, incluindo respeitar as decisões adotadas nos tratados e convenções internacionais, coordenar esforços e um maior apoio financeiro para a conservação da biodiversidade. Do contrário, muitas populações e espécies correm risco de não chegar ao próximo século”.
Elizabeth Kolbert acrescenta: “É, obviamente, muito tarde para muitas criaturas que já estão extintas ou foram reduzidas a alguns poucos indivíduos. Mas não é para milhões de espécies”. Ao comentar a influência neste processo das possíveis políticas do presidente eleito dos EUA, Donald Trump – que nomeou como chefe da Agência de Meio Ambiente um negacionista da mudança climática, Scott Pruitt –, Kolbert disse: “Tenho medo de que as coisas piorem”.
A sexta extinção não é apenas produto das mudanças climáticas – exceto no caso de animais como ursos polares, que, com a redução da camada de gelo, perdem a capacidade de caçar –, mas também de um conjunto de fatores que têm um ponto em comum: a humanidade. Por exemplo, o desmatamento, o desaparecimento de habitats, o aumento das terras dedicadas à agricultura e à pecuária, a caça ilegal, o comércio ilegal de espécies (o tráfico de marfim pode eliminar os elefantes do planeta, e uma forma de culinária pode extinguir o pangolim, um tatu asiático) ou a exploração descontrolada (no caso de muitas espécies marinhas).
Jonathan L. Payne explica: “As mudanças no clima (aquecimento global acelerado) e nos oceanos (acidificação e declínio de oxigênio) ocorreram durante extinções em massa anteriores. No entanto, nossas análises sugerem que as mudanças biológicas que estamos experimentando, particularmente a extinção seletiva de espécies de todos os tipos, são diferentes de qualquer processo anterior”.
A humanidade vem há muitos séculos moldando a terra: basta visitar as Médulas, em León (Espanha), uma paisagem que os romanos forjaram com suas explorações de minas, ou imaginar a quantidade de resíduos que Roma produzia em seu máximo esplendor, uma cidade onde viviam um milhão de pessoas no século I, para notarmos nossa capacidade de alterar o ambiente. E as mudanças começaram provavelmente muito antes: um estudo publicado em novembro pelos professores Jed Kaplan, da Universidade de Lausanne, e Jan Kolen, da Universidade de Leiden, concluiu que cerca de 20.000 anos atrás, em plena Idade do Gelo, os caçadores coletores queimaram grandes extensões de floresta e, portanto, transformaram radicalmente seu ambiente. No entanto, nada se compara ao processo no qual estamos imersos hoje, embora alguns cientistas afirmem que não é a primeira extinção em massa causada pela humanidade.
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