segunda-feira, 25 de janeiro de 2021

Como pode a advogada que cresceu com o impeachment de Dilma não ver a gravidade de Bolsonaro?

Hoje no Brasil há somente duas posturas na política; ou se está a favor da vida ou contra os que brincam com ela. Nada mais deprimente para um político do que se gabar de ser limpo e consequente com suas ideias e depois se degradar por ideologia e covardia.

Eu me refiro à conversão da deputada Janaina Paschoal, que passou de afirmar em 16 de março de 2020 que “as autoridades precisam se unir e pedir a renúncia de Bolsonaro” e acrescentou: “Fomos invadidos por um inimigo invisível. Precisamos de pessoas capazes de conduzir a nação”. A deputada reclamava porque o presidente havia participado, um dia antes, de protestos incentivando que as pessoas saíssem às ruas.

Quem pedia à época a união de todos para tirar Bolsonaro do poder hoje zomba das forças que estão se unido para exigir a saída de Bolsonaro. E mais, chega a ironizar o que ela hoje chama em sua conta do Twitter de “uma tal Frente Ampla entre os que sempre dominaram esse país e ainda continuam dominando-o”.

Para tentar não aparecer como bolsonarista quando já havia pedido a saída do presidente do Governo, acrescentou: “Seguirei crítica a Bolsonaro, pois não sou baba ovo de ninguém”.

Janaina, que foi a maior protagonista do impeachment da ex-presidenta Dilma Rousseff, hoje escreve no Twitter: “Não vejo elementos para um impeachment de Bolsonaro”, algo que desmente a evidência de um clamor entre juristas e até na opinião popular que exigem a cada dia com mais força a abertura de um processo criminal contra o Presidente. Por genocídio e por seu negacionismo sobre a pandemia e seu sarcasmo em minimizar o perigo do vírus que causou mais de 200.000 mortes como Eliane Brum acaba de demonstrar em seu texto.

Sempre apreciei a militância da deputada Janaina Paschoal, sua linguagem aberta que destoava da velha política. E ainda que não concordasse com suas ideias, sempre apreciei uma das mulheres na política que demonstrava não seguir o rebanho.

Não aceitou ser vice de Bolsonaro nas últimas eleições presidenciais, algo que poderia prejudicá-la. Como política conhecia bem os antecedentes do Bolsonaro misógino, golpista e amante da tortura. Janaina, bem preparada em Direito e a deputada estadual mais votada do país, teve um papel fundamental no impeachment de Dilma e no mundo da velha política apareceu como uma mulher que não aceitava compromissos.

Foi uma lutadora aberta contra os Governos do PT, algo que é normal no jogo político.

E, entretanto, hoje parece ter jogado tudo pelos ares opondo-se a um possível impeachment de Bolsonaro, algo mil vezes mais grave do que o de Dilma pelo que tanto lutou. Nesse caso há um clamor popular e um consenso cada vez maior do mundo dos juristas para abrir um processo contra um Presidente tachado de genocida, de insensível aos mais de 200.000 mortos pelo vírus e considerado responsável por tanta dor que este país já tão castigado economicamente poderia ter economizado.

Existem poucos crimes maiores do que o atentado contra a vida de inocentes e por motivos bastardos de baixa política. Por mais que Janaina diga que ela não se vende a ninguém é uma deputada suficientemente inteligente e preparada juridicamente para entender o que não só a maioria dos brasileiros como boa parte do mundo já sabem, que o Presidente despreza a vida e cultua a violência e a morte. Em seu coração não há espaço para a dor alheia.

Janaina, que se opõe ao impeachment de Bolsonaro com a desculpa de que já não há tempo e parece justificá-lo pelo fato de que com isso o PT voltará, joga pelos ares todo o respeito que sua independência e sua luta contra a corrupção infundiam. É de espantar que uma mulher como ela pareça estar negando e traindo suas antigas crenças.

Criticar como está fazendo o que chama depreciativamente de “Uma tal Frente Ampla” para se opor à política de morte de Bolsonaro significa renegar o melhor de sua biografia. E o fato de ser mulher choca ainda mais com sua aparente insensibilidade diante da tragédia vivida pelo Brasil onde já não há lágrimas para chorar tanta morte. E se opor a um impeachment de Bolsonaro que sonha somente em dar o golpe para poder governar como quer revela uma falta de humanidade e insensibilidade que acabam anulando suas posturas de independência.

É patético ficar feliz por ter contribuído para tirar o PT do poder para justificar sua recusa a um impeachment de Bolsonaro. Ela sabe muito bem, como política habilidosa que é, que o PT precisa de uma refundação profunda para tentar voltar a governar. Mas comparar o perigo de um PT desgastado com a política nazista demonstrada por Bolsonaro significa que a deputada perdeu todo o seu capital político.

Hoje, um Governo que brinca e joga com a vida das pessoas é muito mais perigoso até mesmo para a economia de um país que o presidente confessa que está quebrado.

Pior que a degradação de um senador escondendo dinheiro sujo nas partes baixas é a hipocrisia na política e a insensibilidade diante da morte de inocentes. Janaina perderá sua dignidade e sua imagem de política e mulher sem complexos e conivência com a velha política corrupta, se hoje não colocar o mesmo ímpeto e coragem que demonstrou no impeachment de Dilma para derrubar Bolsonaro do poder.

Hoje Janaina joga por terra seu velho capital de credibilidade se negando a ficar do lado dos que acham que Bolsonaro ultrapassou todos os limites da dignidade e revelou, além de ser incapaz de governar um país da envergadura do Brasil, sua espantosa insensibilidade em relação aos frágeis e abandonados pelo poder.

Não vale a pena trair a própria dignidade por um prato de feijões, mesmo que não saibamos ainda que preço esses feijões podem ter para mandar pelos ares o que defendeu com tanta coragem.

A soberba e a traição às próprias ideias são a maior imoralidade na política e na vida.

Brasil exportação

 

Marian Kamensky (Áustria)

O bom combate

O presidente Jair Bolsonaro é um parasita das iniciativas alheias.

Foi assim com a reforma da Previdência, que ele sabotou em vez de apoiar, e uma vez aprovada tratou de, cinicamente, relacioná-la entre as conquistas de seu governo; foi assim com o auxílio emergencial para os que perderam renda na pandemia, cujo valor, se dependesse do presidente, seria de apenas R$ 200, mas, quando o Congresso elevou para R$ 500, Bolsonaro, como se estivesse a jogar truco, mandou subir para R$ 600, só para ter os louros do tão necessário socorro; e foi assim com a vacina contra a covid-19: depois de ter sistematicamente levantado suspeitas sobre os imunizantes, de ter feito campanha para que os brasileiros tomassem elixires mágicos sem qualquer eficácia e de ter mantido no Ministério da Saúde um almoxarife que não foi competente nem sequer para planejar a compra de agulhas e seringas, Bolsonaro agora reivindica como a “vacina do Brasil” a que foi produzida por iniciativa exclusiva do governo de São Paulo – e que ele reiteradas vezes desmereceu e disse que jamais compraria.

Se foi assim na primeira metade do mandato, é muito provável que na segunda metade Bolsonaro, na sua tresloucada ânsia de reeleição, continuará a viver à custa da energia alheia, já que há muito tempo provou ser incapaz de fazer algo produtivo por conta própria. Bolsonaro não existe senão como expressão do oportunismo mais rasteiro e, agora temos certeza, cruel e desumano. Nem os mais ingênuos panglossianos são capazes, hoje, de nutrir esperanças de que o presidente se emendará num futuro previsível.

O problema é que esse organismo traiçoeiro que exaure as forças de seu hospedeiro é formalmente o presidente da República, isto é, concentra em sua caneta o poder máximo da União. Pode ainda causar muitos estragos ao País, dado que sua natureza é exclusivamente destrutiva. Por essa razão, é compreensível, como já observado neste espaço, que cada vez mais cidadãos brasileiros estejam convencidos de que não haverá cura para a septicemia causada pelo vírus bolsonarista sem o afastamento constitucional do presidente.



Até que se reúnam as condições políticas objetivas para o impeachment, contudo, há um colossal trabalho a ser feito, isto é, superar a crise provocada pela pandemia e pela incompetência do governo. Para as forças de oposição, essa demanda coloca um dilema nada desprezível: a recuperação do País, pela qual todos de bom senso devem lutar, certamente será convertida em capital político-eleitoral por Bolsonaro, que, fiel a seu caráter, nada fará além de servir-se dos feitos dos outros para alimentar suas patranhas palanqueiras.

Esse dilema foi exposto pelo líder do PT no Senado, Rogério Carvalho, em entrevista recente ao Estado. O petista disse que seu partido, embora radicalmente de oposição, votou várias pautas junto com a base do governo porque “eram iniciativa dos próprios parlamentares” e porque “o interesse maior é diminuir o sofrimento das pessoas, ainda que com prejuízo político para o PT”.

O senador petista admitiu que “Bolsonaro tira vantagem”, mas disse que isso não importa: “Evitamos uma catástrofe maior (na pandemia) e fomos responsáveis. Tem um custo essa responsabilidade. Nós perdemos a capacidade de fazer um discurso mais duro contra Bolsonaro, mas isso ia adiantar o que para a vida das pessoas?”.

Descontando-se o fato de que o senador é de um partido que sempre pensou antes em seus objetivos estratégicos do que nos interesses do País, a fala indica o grande problema da oposição a Bolsonaro.

Mas não deveria haver dúvidas. Se a oposição tem de agir de maneira responsável em situações normais, deve ser ainda mais consequente quando o que está em jogo é a vida dos brasileiros e a saúde da democracia. Agora é o momento de cuidar – para que os cidadãos não sejam abandonados em meio à maior crise da história recente –, de votar as profundas reformas de que o País desesperadamente necessita e, não menos importante, de restabelecer a sanidade da Presidência da República, usando para isso as ferramentas legítimas que a Constituição oferece. Isso é combater o bom combate.

Não é a economia, estúpido

No próximo ano, vamos contar, enquanto sociedade, com tanto tempo de vida em democracia como em ditadura. Essa coincidência de 48 anos foi lembrada, esta semana na TV, por quem tinha acabado de esgotar os últimos recursos de internamento de doentes com Covid-19, no hospital que dirige. Pedro Soares Branco, diretor clínico do Centro Hospitalar de Lisboa Central, era a imagem da impotência e do desalento, e avisava que iam começar a morrer pessoas, porque já não havia forma de as receber ou atender. Mas, acima de tudo, não conseguia esconder a sua desilusão com os seus compatriotas. E disse-o de um modo que devia iluminar-nos a todos: “Do que eu gostava era que estes anos de democracia nos tivessem criado um melhor sentido de cidadania.”

Se há algo que já todos devíamos ter aprendido nesta pandemia é que todos os atos e decisões que tomamos num dia só têm verdadeira consequência duas a três semanas depois. E que a forma de a combater não pode estar apenas concentrada na última trincheira, a dos hospitais. As pandemias previnem-se, não se curam. Por isso, as decisões mais importantes de um governo face à pandemia não são as ordens para fechar, mas sim decretar o que deve estar aberto. Mandar fechar tem consequências apenas para a economia. Mandar abrir pode ser, ou não, um risco para a vida das pessoas – de todas.



A situação complica-se ainda mais quando se manda fechar, mas se deixa uma infinidade de exceções. É aí que se misturam, de uma forma subliminar, os efeitos deste nosso duelo, ainda não resolvido, entre quase 48 anos de democracia e 48 anos de ditadura: um respeito escrupuloso pelo direito à liberdade individual, mas que nunca é acompanhado pela exigência firme de respeito pelos deveres cívicos e de vida em sociedade.

Em termos simplistas, quem governa evita sempre a mais leve acusação de poder ser considerado autoritário, e quem é governado acha quase sempre que, em nome da liberdade, não tem de prestar contas a ninguém. O sentido de cidadania é, no entanto, muito mais do que isso e assenta, acredito, num espírito profundo de solidariedade entre todos, independentemente das suas diferenças de opinião.

Ao fim de tantos meses, o Governo já devia ter aprendido que precisa de ser mais assertivo e direto. E, com toda a franqueza, menos otimista e esperançoso. Não adianta repetir que “juntos vamos conseguir” se, na verdade, não conseguimos juntar e unir todos os portugueses neste propósito, como ficou demonstrado, de forma eloquente, nos últimos dias. Mais: é absolutamente errado continuar a insistir, como Marcelo e Costa têm feito, que vamos ultrapassar esta segunda vaga da mesma forma como “vencemos” a primeira. Não é verdade! Apesar das declarações de milagre, já é tempo de reconhecer que nós não “vencemos” o vírus na primavera (ninguém venceu!). Nós apenas nos esquivámos, exclusivamente graças ao medo… que entretanto se perdeu, devido ao cansaço, à falta de sentido de cidadania, ao desleixo no rastreamento de casos – que nunca foi a prioridade absoluta que sempre deveria ter sido – e à incapacidade manifesta de informar os cidadãos de um modo rigoroso e detalhado.

Estamos no momento mais difícil desta pandemia, e com uma certeza: tudo o que possa ser feito agora só terá consequências práticas daqui a duas ou três semanas. Por enquanto, temos todos de aguentar ainda mais uns dias com os erros, desleixos e ações criminosas até, que foram tomadas aos mais diversos níveis, nas últimas semanas. Não há alternativa, por mais custos que ela tenha. Ao contrário do célebre slogan de James Carville, conselheiro de Bill Clinton, ninguém quer saber agora da economia. São as vidas que têm de ser salvas – com a ajuda de todos, sem exceção.

Basta!

Desde sua posse, o presidente Jair Bolsonaro tem violado, reiteradamente, seu juramento de preservar, proteger e defender a Constituição do Brasil. Como se não bastasse sua obsessão em subverter a ordem democrática e as regras básicas do estado de direito, o presidente tem negligenciado suas responsabilidades políticas e jurídicas no enfrentamento da pandemia da Covid-19, contribuindo, por meio de suas ações e omissões, para o adoecimento de milhões de brasileiros e para a morte, até o presente momento, de mais de 215 mil pessoas.

O presidente Bolsonaro vem se empenhando desde o início de seu governo em aprofundar a polarização política, dividindo o país entre amigos e inimigos. Com uma retórica truculenta, baseada na crueldade com os mais vulneráveis, no racismo, no obscurantismo e na exaltação da violência, das armas e da ditadura, atenta diariamente contra os pilares fundamentais da nossa República, tais como estabelecidos pelo artigo 1º da Constituição.



O presidente não tem poupado esforços para desestabilizar nossas instituições. Participou de atos e fomentou grupos que propugnam o fechamento do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal, o que constitui crime de responsabilidade previsto pelo no artigo 6º, 1 e 5, da Lei 10.079, de 1950. Igualmente grave têm sido suas insidiosas manifestações incitando a animosidade entre as classes armadas e as instituições civis, que configuram mais um crime de responsabilidade, previsto no artigo 7º, 8, da Lei 10.079, de 1950.

O presidente Bolsonaro também vem subvertendo a Constituição por meio de nomeações incompatíveis com as funções a ser exercidas, pela expedição de decretos, regulamentos e atos administrativos e pela intimidação de servidores. Essa estratégia para frustrar a vontade constitucional fica patente no campo ambiental, no indígena, no controle de armamentos, na política de direitos humanos, educacional, cultural, de segurança pública e de inteligência.

A instrumentalização do aparato de segurança para atender a interesses pessoais do presidente, assim como a constrangedora omissão do procurador-geral da República em investigar crimes comuns atribuídos ao presidente da República, também apontam para esse grave processo de erosão de nossas instituições.

Em decorrência de uma desastrosa política externa, refratária à cooperação internacional, aos direitos humanos e ao meio ambiente, o Brasil vem se colocando numa posição de verdadeiro pária internacional. Isso com graves consequências para a nossa economia e prejuízos catastróficos para o enfrentamento da pandemia. O atraso na obtenção de vacinas é uma decorrência direta da política internacional desastrosa liderada por Jair Bolsonaro e seus auxiliares.

Ao negligenciar sistematicamente a gravidade da pandemia; fomentar aglomerações; desdenhar e descumprir medidas de prevenção determinadas por autoridades sanitárias; boicotar a produção e a obtenção da vacina; desacreditar as próprias vacinas; determinar a fabricação, a distribuição e o tratamento por meio de fármaco comprovadamente ineficaz no combate ou prevenção da Covid-19; assim como ao deixar de envidar todos os esforços financeiros e logísticos para assegurar o atendimento emergencial de enfermos, o presidente Bolsonaro tem incorrido de forma clara em diversos delitos comuns e de responsabilidade, tais como os previstos nos artigos 132 e 268 do Código Penal, artigo 85, inciso III, da Constituição Federal, e 7º, 9, da Lei 10.079, de 1950.

Conforme já havíamos afirmado em nota pública da Comissão Arns, de 19 de maio de 2020, Jair Bolsonaro perdeu as condições mínimas para exercer legitimamente o mandato presidencial que lhe foi atribuído, por absoluta incapacidade, vocação autoritária, insubordinação constitucional e constante ameaça à democracia e à vida das pessoas. Desde então, a situação apenas se agravou.

Por essas razões, a Comissão Arns chama a todas e todos aqueles verdadeiramente compromissados com a democracia e o direito à vida — cidadãos, organizações da sociedade civil, partidos políticos, organizações empresariais, religiosas e, sobretudo, instituições fundamentais da República, como Congresso Nacional, Supremo Tribunal Federal e Procuradoria-Geral da República — a assumir sua parcela de responsabilidade na defesa do regime democrático e da Constituição, contra os ataques que lhes têm sido endereçados pelo presidente da República. É preciso dizer um basta a esse desgoverno que tanto mal tem causado à vida dos brasileiros e à nossa democracia.
Margarida Bulhões Pedreira Genevois, presidente de honra da Comissão Arns/ José Carlos Dias, ex-ministro da Justiça e presidente da Comissão Arns/ Paulo Sérgio Pinheiro, ex-ministro da Secretaria de Estados de Direitos Humanos

O Plano B somos nós

Para o Brasil escapar de tragédias maiores, precisa vacinar 150 milhões de pessoas no prazo mais rápido possível.

O governo é incapaz de realizar esse plano de vacinação. Faltam vontade, competência e habilidade diplomática. Qual é a saída?

Derrubar o governo não basta. É preciso também tentar, simultaneamente, salvar vidas, pois, cada vez mais, elas estão em jogo.


Se todos compreendessem a urgência dessa tarefa, veriam que, na realidade, podemos contar com o próprio esforço. Bolsonaro e Augusto Aras nos ameaçam com um golpe, é tudo que sabem fazer. São tão estúpidos que nem percebem o mundo que os envolve.

E é sobre o mundo que precisamos conversar. As relações internacionais não podem ser monopólio de um pequeno grupo de fanáticos. Precisamos, de todas maneiras, romper o isolamento do país e deixar dentro de suas linhas estreitas apenas o governo e seus seguidores.

Precisamos de vacina num momento em que não há abundância: grande parte já foi comprada pelos países ricos.

Percebo que os governadores se movem mas encontram dificuldades. Para um só estado, se colocar no mercado internacional é difícil. Mas talvez não seja tanto para um consórcio de estados. A Bahia e outros estados do Nordeste poderiam tentar fechar negócio com a Sputnik V. Não há autorização da Anvisa? Ela é muito parecida com a de Oxford, que já foi analisada. E já foi aprovada em muitos países.

A Argentina está capacitada a produzir a vacina Oxford-AstraZeneca. Vai exportar para a América do Sul, menos para o Brasil. Mas o Rio Grande do Sul não poderia estabelecer uma relação com o governo argentino e abrir uma exceção? Nesse movimento, poderia carregar também Santa Catarina.

O governo brasileiro proibiu empresas de comprar vacinas. Isso é inconstitucional. A obrigação do governo é fornecer vacinas gratuitas para todos e não se meter em iniciativas particulares.

Um pool de empresas poderia negociar com a Pfizer, a Moderna e a Janssen, que está por vir, e, além de vacinar seus funcionários, doar grandes partidas para a sociedade.

Naturalmente que um plano nacional de vacinação é mais eficaz. Mas o governo não consegue comprar tudo. A iniciativa passa para quem tiver as vacinas nas mãos; ninguém conseguirá evitar que os trabalhadores da saúde a apliquem, ainda que sejam vistos pelos burocratas como desobedientes.

É possível dizer que talvez seja tarde demais. A ineficácia do governo e seus preconceitos contra a China foram longe.

Mas, ainda assim, é possível estabelecer um diálogo com a China fora do âmbito do governo.

O problema é que ficamos dependentes de China e Índia. Juntas elas têm quase 3 bilhões de habitantes. Só na primeira fase, a Índia quer vacinar 300 milhões. A China pretende vacinar 50 milhões até o Ano Novo Lunar, que cai em 14 de fevereiro. É muita demanda interna.

Um movimento nacional pela vacina não seria mais apenas para pressionar Bolsonaro. Ele já é uma carta fora do baralho, na medida em que fracassou parcialmente na mais importante tarefa nacional.

A campanha publicitária pela vacinação já está sendo feita por artistas independentes. Se logramos, de alguma forma, negociar a vacina, talvez possamos romper com esse impasse doloroso.

É possível argumentar que talvez seja tarde. O ideal era ter compreendido isso antes, mas seria difícil nos convencer quando o fracasso do governo ainda não era nítido.

O vírus não vai embora. Pelo contrário, ele se adapta à realidade num ritmo mais rápido do que muitas cabeças humanas. Enquanto tivermos a pandemia, a vacina sera a única saída estratégica. Não há escolha.

Vamos esperar que Bolsonaro se ilumine? Ou que Ernesto Araújo torne-se simpático ao governo chinês ou mesmo ao americano?

Tanto na sua política internacional quanto nos conselhos cotidianos para romper o isolamento, ignorar máscaras, tomar hidroxicloroquina, eles nos levam à autodestruição.

Diante da grande tarefa, o governo é incapaz. Somos o plano B, se a sociedade não ocupar também esse espaço, travaremos uma estéril batalha verbal.
Fernando Gabeira