segunda-feira, 7 de abril de 2025
Protesto do batom escancara estratégia de u m Bolsonaro pré-condenado
A manifestação deste domingo, na Avenida Paulista, em São Paulo, ganhou a maquiagem, carregada no batom, de um ato a favor da anistia aos condenados de 8 de janeiro. Mas, por baixo da camada de tinta, a mensagem central dos discursos, principalmente os de Jair Bolsonaro e de sua esposa, Michelle, foi outra: preparem-se para o sacrifício do seu líder e lembremse de que vocês também estão ameaçados.
O projeto de anistia não resolve o problema de Bolsonaro, pois o STF pode impedir sua aplicação. A direita bolsonarista precisa manter o assunto em voga, contudo, por dois motivos. Primeiro, para justificar a narrativa de que o Brasil vive uma ditadura do Judiciário que persegue a direita. Segundo, para reforçar o vínculo de lealdade entre Bolsonaro e seus seguidores. Ele precisa que seus apoiadores estejam convencidos de que sua liberdade, seus bens e até mesmo suas vidas estão em risco, e que, se seu líder vai se sacrificar para salvá-los, devem estar preparados para fazer o mesmo por ele.
Bolsonaro sintetizou as duas ideias, ditadura e perseguição, em uma fala: “Se eu estivesse no Brasil (em 8 de janeiro de 2023), estaria apodrecendo na cadeia ou teria sido assassinado pelos mesmos que colocaram esse vagabundo na Presidência”.
Ele quer que sua condenação e sua prisão despertem um grande clamor popular. O pastor Silas Malafaia, organizador dos atos pró-Bolsonaro, deu a dica: “Se os senhores (ministros do STF) prenderem Bolsonaro, o que pode acontecer no Brasil? Pode não acontecer nada, ou pode acontecer tudo!” Não é por acaso que o protesto do batom ganhou contornos religiosos tão acentuados. Bolsonaro, disse Michelle, é o “escolhido” por Deus para enfrentar a “maldade de alguns do STF”. O ato deste domingo, apesar de toda a fanfarra em torno da ideia de aprovação de uma anistia para os “inocentes” do 8 de Janeiro, representou, isso sim, o início da incitação de uma futura revolta contra a condenação de Bolsonaro.
O círculo próximo do expresidente está convencido de que a condenação e a prisão são favas contadas. Sóstenes Cavalcante, líder do PL na Câmara dos Deputados, chegou a dizer, antes mesmo da aceitação, pelo STF, da denúncia por tentativa de golpe de Estado, que Bolsonaro “já é um pré-condenado”. Os discursos deste domingo serviram ao propósito de preparar o terreno para a reação à condenação de Bolsonaro.
O projeto de anistia não resolve o problema de Bolsonaro, pois o STF pode impedir sua aplicação. A direita bolsonarista precisa manter o assunto em voga, contudo, por dois motivos. Primeiro, para justificar a narrativa de que o Brasil vive uma ditadura do Judiciário que persegue a direita. Segundo, para reforçar o vínculo de lealdade entre Bolsonaro e seus seguidores. Ele precisa que seus apoiadores estejam convencidos de que sua liberdade, seus bens e até mesmo suas vidas estão em risco, e que, se seu líder vai se sacrificar para salvá-los, devem estar preparados para fazer o mesmo por ele.
Bolsonaro sintetizou as duas ideias, ditadura e perseguição, em uma fala: “Se eu estivesse no Brasil (em 8 de janeiro de 2023), estaria apodrecendo na cadeia ou teria sido assassinado pelos mesmos que colocaram esse vagabundo na Presidência”.
Ele quer que sua condenação e sua prisão despertem um grande clamor popular. O pastor Silas Malafaia, organizador dos atos pró-Bolsonaro, deu a dica: “Se os senhores (ministros do STF) prenderem Bolsonaro, o que pode acontecer no Brasil? Pode não acontecer nada, ou pode acontecer tudo!” Não é por acaso que o protesto do batom ganhou contornos religiosos tão acentuados. Bolsonaro, disse Michelle, é o “escolhido” por Deus para enfrentar a “maldade de alguns do STF”. O ato deste domingo, apesar de toda a fanfarra em torno da ideia de aprovação de uma anistia para os “inocentes” do 8 de Janeiro, representou, isso sim, o início da incitação de uma futura revolta contra a condenação de Bolsonaro.
Não foi sobre anistia. Foi sobre provocar a revolta dos bolsonaristas
Em Paris, a líder da ultradireita Marine Le Pen disse no que vai se inspirar no pastor Martin Luther King Jr., assassinado em 1968 por lutar contra a segregação racial nos Estados Unidos, para enfrentar a Justiça que a tornou inelegível por cinco anos.
Há quase uma semana, Le Pen foi condenada por desviar fundos do Parlamento Europeu para o caixa de seu partido, a Reunião Nacional (RN), e impedida de concorrer a cargos públicos – medida que entrou em vigor imediatamente apesar de ainda ser passível de recursos.
Na Avenida Paulista, o líder da ultradireita Jair Bolsonaro disse que “algo o avisou”, porque se ele estivesse no Brasil no dia do golpe de 8 de janeiro de 2023, “teria sido preso e estaria apodrecendo até hoje ou até assassinado”. Bolsonaro e Le Pen são dois contraventores.
Le Pen ainda tem chances de disputar a presidência da França em 2027. Bolsonaro, inelegível até 2030, não tem, de vez que foi condenado duas vezes pelo Tribunal Superior Eleitoral. Em breve, o Supremo Tribunal Federal o condenará por golpe de Estado.
É remota a possibilidade de Le Pen ser presa. A de Bolsonaro é mais do que certa, a não ser que fuja. Há poucos dias, ele admitiu que conversou com chefes militares sobre a adoção de medidas de exceção que impediriam a posse do presidente eleito, Lula.
Bolsonaro sabe melhor do que ninguém que o Congresso não aprovará a anistia que o beneficiaria. E que se a aprovasse, ela seria barrada pelo Supremo por ferir a Constituição. Só lhe resta, pois, estimular seus seguidores à revolta caso ele seja preso.
O pastor Silas Malafaia, um dos promotores do comício na Avenida Paulista, disse aos manifestantes:
“Se os senhores [ministros do STF] prenderem Bolsonaro, o que pode acontecer no Brasil? Pode não acontecer nada, ou pode acontecer tudo!”
O que seria “acontecer tudo”? Baderna, estradas bloqueadas por caminhoneiros, acampamentos à porta de quarteis, invasões de prédios públicos, milhares de pessoas a clamarem por um golpe? Esse filme já passou, e no fim os bandidos morrem.
De resto, segundo pesquisa da Quaest, a maior parte dos brasileiros (49%) acredita que Bolsonaro participou de uma tentativa de golpe, contra 36% que não acreditam; e 52% concordam que o Supremo Tribunal foi justo ao tornar Bolsonaro réu no inquérito do golpe.
Patética a cena de Bolsonaro ao tentar ler em inglês uma mensagem dirigida ao mundo. Bolsonaro sugeriu que a perseguição a ele é parte de uma conspiração internacional contra a direita, e citou Le Pen, os processos contra Trump e a oposição venezuelana.
Bolsonaro criou o bordão que espera ver repetido por todos os seus asseclas:
“O que os canalhas querem é me matar!”
Fazia parte do golpe que Bolsonaro quis aplicar o assassinato de Lula, do vice Geraldo Alckmin e do ministro Alexandre de Moraes. Esqueci algum nome?
Baderna não é golpe, em alguns casos é crime. Tentativa de golpe é crime, como tentativa de homicídio também é.
Golpe mata. Mata a democracia. Mata e tortura pessoas. Enterra sonhos de gerações inteiras.
Há quase uma semana, Le Pen foi condenada por desviar fundos do Parlamento Europeu para o caixa de seu partido, a Reunião Nacional (RN), e impedida de concorrer a cargos públicos – medida que entrou em vigor imediatamente apesar de ainda ser passível de recursos.
Na Avenida Paulista, o líder da ultradireita Jair Bolsonaro disse que “algo o avisou”, porque se ele estivesse no Brasil no dia do golpe de 8 de janeiro de 2023, “teria sido preso e estaria apodrecendo até hoje ou até assassinado”. Bolsonaro e Le Pen são dois contraventores.
Le Pen ainda tem chances de disputar a presidência da França em 2027. Bolsonaro, inelegível até 2030, não tem, de vez que foi condenado duas vezes pelo Tribunal Superior Eleitoral. Em breve, o Supremo Tribunal Federal o condenará por golpe de Estado.
É remota a possibilidade de Le Pen ser presa. A de Bolsonaro é mais do que certa, a não ser que fuja. Há poucos dias, ele admitiu que conversou com chefes militares sobre a adoção de medidas de exceção que impediriam a posse do presidente eleito, Lula.
Bolsonaro sabe melhor do que ninguém que o Congresso não aprovará a anistia que o beneficiaria. E que se a aprovasse, ela seria barrada pelo Supremo por ferir a Constituição. Só lhe resta, pois, estimular seus seguidores à revolta caso ele seja preso.
O pastor Silas Malafaia, um dos promotores do comício na Avenida Paulista, disse aos manifestantes:
“Se os senhores [ministros do STF] prenderem Bolsonaro, o que pode acontecer no Brasil? Pode não acontecer nada, ou pode acontecer tudo!”
O que seria “acontecer tudo”? Baderna, estradas bloqueadas por caminhoneiros, acampamentos à porta de quarteis, invasões de prédios públicos, milhares de pessoas a clamarem por um golpe? Esse filme já passou, e no fim os bandidos morrem.
De resto, segundo pesquisa da Quaest, a maior parte dos brasileiros (49%) acredita que Bolsonaro participou de uma tentativa de golpe, contra 36% que não acreditam; e 52% concordam que o Supremo Tribunal foi justo ao tornar Bolsonaro réu no inquérito do golpe.
Patética a cena de Bolsonaro ao tentar ler em inglês uma mensagem dirigida ao mundo. Bolsonaro sugeriu que a perseguição a ele é parte de uma conspiração internacional contra a direita, e citou Le Pen, os processos contra Trump e a oposição venezuelana.
Bolsonaro criou o bordão que espera ver repetido por todos os seus asseclas:
“O que os canalhas querem é me matar!”
Fazia parte do golpe que Bolsonaro quis aplicar o assassinato de Lula, do vice Geraldo Alckmin e do ministro Alexandre de Moraes. Esqueci algum nome?
Baderna não é golpe, em alguns casos é crime. Tentativa de golpe é crime, como tentativa de homicídio também é.
Golpe mata. Mata a democracia. Mata e tortura pessoas. Enterra sonhos de gerações inteiras.
Os derrotados
Somente os vencedores têm a sua história contada. Não existe tempo nem espaço na memória dos homens para a história dos que perderam, dos que ficaram pelo meio do caminho, dos que tentaram e não conseguiram. São a cara da humanidade; mas a própria humanidade os despreza. São a parte submersa do iceberg da história, do qual forçamo-nos a ver somente o que se eleva e se destaca, e fingimos que por baixo nada mais existe. Cadê a biografia dos que nunca subiram ao pódio, dos que perderam todas as eleições, dos que foram passados-no-rodo nas batalhas, dos que ficaram em décimo-primeiro lugar nas listas dos dez melhores, dos que buscados no Google dão zero hits?
Toda história de sucesso é praticamente a mesma coisa, mas cada derrota e cada tragédia é mais individualizada, mais pessoal e mais de-carne-e-osso do que o mero triunfo. Perguntem a Dante Alighieri, que já respondeu. É uma verdadeira assimetria filosófica que um escritor que publicou dez livros receba uma biografia e um pretendente a escritor que pensou em escrever dez livros e não o fez não receba sequer dez linhas de wiki. Sem falar naqueles que escreveram livros trabalhosíssimos e deixaram a única cópia datilografada no banco traseiro de um táxi ou numa maleta esquecida na plataforma de um trem.
O sucesso tem uma função meramente ampliadora, mas as histórias que conta não têm um grama sequer a mais do que as catástrofes de subúrbio, os naufrágios de piscina de quintal, os apocalipses em plena adolescência, os hindemburgs que colecionamos na interminável infância. Mandem parar a van em qualquer estrada lateral de qualquer interiorzão brabo, e detenham o primeiro transeunte que for passando, como faziam aqueles califas e vizires das mil e uma noites. Ele lhes contará uma história pessoal que bem escrita deixaria um bilhão de mentes estremecendo mundo afora.
A vitória é um cheque pré-datado de imortalidade, mas sem fundos. A derrota é o destino cósmico do universo: a extinção da humanidade, indivíduo por indivíduo, ou seja, a demissão da espécie por justa causa. O derrotado é aquele a quem coube receber em nome da espécie esse incômodo recado e essa ainda mais desconfortável eliminação. Toda vitória é um adiamento; uma história só se conclui de fato quando atinge sua derradeira derrota, que para uns é a morte, para outros é a não-existência de alguma coisa depois dela. Humilhados, ofendidos, condenados da terra, desvalidos, quixotes visionários, drogados incorrigíveis, missionários que em oitenta anos deixam um resíduo de estalactite e cedem lugar ao próximo, artistas jamais ouvidos, vidas que encontraram uma linha reta na direção do fim.
Toda história de sucesso é praticamente a mesma coisa, mas cada derrota e cada tragédia é mais individualizada, mais pessoal e mais de-carne-e-osso do que o mero triunfo. Perguntem a Dante Alighieri, que já respondeu. É uma verdadeira assimetria filosófica que um escritor que publicou dez livros receba uma biografia e um pretendente a escritor que pensou em escrever dez livros e não o fez não receba sequer dez linhas de wiki. Sem falar naqueles que escreveram livros trabalhosíssimos e deixaram a única cópia datilografada no banco traseiro de um táxi ou numa maleta esquecida na plataforma de um trem.
O sucesso tem uma função meramente ampliadora, mas as histórias que conta não têm um grama sequer a mais do que as catástrofes de subúrbio, os naufrágios de piscina de quintal, os apocalipses em plena adolescência, os hindemburgs que colecionamos na interminável infância. Mandem parar a van em qualquer estrada lateral de qualquer interiorzão brabo, e detenham o primeiro transeunte que for passando, como faziam aqueles califas e vizires das mil e uma noites. Ele lhes contará uma história pessoal que bem escrita deixaria um bilhão de mentes estremecendo mundo afora.
A vitória é um cheque pré-datado de imortalidade, mas sem fundos. A derrota é o destino cósmico do universo: a extinção da humanidade, indivíduo por indivíduo, ou seja, a demissão da espécie por justa causa. O derrotado é aquele a quem coube receber em nome da espécie esse incômodo recado e essa ainda mais desconfortável eliminação. Toda vitória é um adiamento; uma história só se conclui de fato quando atinge sua derradeira derrota, que para uns é a morte, para outros é a não-existência de alguma coisa depois dela. Humilhados, ofendidos, condenados da terra, desvalidos, quixotes visionários, drogados incorrigíveis, missionários que em oitenta anos deixam um resíduo de estalactite e cedem lugar ao próximo, artistas jamais ouvidos, vidas que encontraram uma linha reta na direção do fim.
A maré montante da autocracia
A prisão em 19 de março do prefeito de Istambul, Ekrem Imamoglu, principal líder da oposição e candidato à presidência da Turquia, mostra que o regime de Recep Tayyip Erdogan dá mais um passo no sentido de se tornar uma autocracia plena. Membro fundador da Otan, a Turquia tem papel importante na geopolítica global, pela região em que se situa e pelo papel ambivalente que joga entre as grandes potências.
A decisão de Erdogan de dar um passo decisivo na direção da autocracia é parte do novo contexto global que se vai delineando com rapidez desde a posse de Donald Trump. Mais um sinal claro de que as transformações das políticas interna e externa dos Estados Unidos terão graves consequências para a democracia no plano internacional. A erosão deliberada dos pilares da democracia norte-americana caminha de mãos dadas com o completo abandono pelos Estados Unidos da ordem liberal cuja construção o país liderou após a Segunda Guerra Mundial.
Nem a democracia americana nem a chamada ordem liberal podem ser idealizadas. Entre outros defeitos, a primeira ainda hoje preserva uma relíquia do século 18, o Colégio Eleitoral, que impede a eleição direta do presidente da república. Já a ordem internacional erguida depois de 1945, seja na sua concepção, seja na sua aplicação, jamais representou um obstáculo suficiente para que os Estados Unidos exercitassem o seu poder de potência dominante ou hegemônica, à sua conveniência.
Ainda assim, quando essa ordem desmorona, importa reconhecer o que estamos perdendo e os imensos riscos que essa perda acarreta. É inegável que sem o Plano Marshall e a Otan a Europa ocidental teria enfrentado dificuldades muito maiores, talvez intransponíveis, para consolidar regimes democráticos avançados, na segunda metade do século 20. Mais provável teria sido o domínio soviético se estender para além da Cortina de Ferro (contido, paradoxalmente, facilitou a formação dos Estados de bem-estar na Europa ocidental). Vale lembrar que a Europa do leste só se livrou de regimes autocráticos e Estados policiais pouco antes do colapso final da União Soviética, quase 50 anos depois do fim do conflito mundial.
No mesmo período, em outras regiões do mundo, os Estados Unidos apoiaram golpes de Estado e ditaduras amigas, enquanto durou a guerra fria.
Porém, junto com a Europa, eles desempenham papel importante na chamada “terceira onda democrática”, iniciada ao fim da década de 1970, seja por não interferir, como no caso da América Latina, seja por apoiar, como no caso do leste da Ásia e da Europa do leste, processos de transição para a democracia.
Em resumo, em matéria de democracia e direitos humanos, o mundo que conhecemos nos últimos 80 anos teria sido bem pior se o desprezo pelas instituições multilaterais e pelos valores democráticos, típicos do que Trump representa, tivesse orientado a política externa americana.
A ruptura interna e externa dos Estados Unidos com a chamada ordem liberal se dá num momento em que ela já se encontrava gravemente enfraquecida. O espectro de um sistema internacional dividido em esferas de influência dominadas por grandes potências autocráticas (Estados Unidos, China e Rússia) ronda o mundo.
Engana-se quem acredita que, com Trump, os Estados Unidos serão menos intervencionistas. Ele e seus aliados se mexem para apoiar forças de extrema direita na Europa e na América Latina, valendo-se do governo americano e de grandes oligarcas, como Elon Musk, uma fusão entre poder político e econômico que ameaça a democracia e a economia de mercado nos Estados Unidos e em outros países.
O pesadelo de uma ordem global autocrática despertou a Europa da sua letargia. O fortalecimento da União Europeia é indispensável para reverter a maré montante da autocracia. O desafio do Velho Continente está em compatibilizar o aumento dos gastos em defesa e a adoção de políticas de competitividade, tais como as recomendadas pelo Relatório Draghi, com a preservação/atualização do Estado de bem-estar social. Para vencer esse desafio, os membros da União Europeia precisam agir em conjunto, com objetivos e mecanismos de financiamento comuns. O que era muito difícil antes de Trump se tornou mais provável em resposta ao abandono da aliança atlântica pelo novo ocupante da Casa Branca. As forças democráticas da centro-direita à centroesquerda europeia parecem dispostas à convergência.
Para a América Latina, em geral, e para o Brasil, em particular, interessa o fortalecimento da União Europeia. Temos atritos comerciais, mas temos complementaridade econômica e, não menos importante, um lastro comum no compromisso com a defesa da democracia e a proteção dos direitos humanos. Cá, como lá, as lideranças políticas democráticas, da centro-direita à centro-esquerda, precisam entender o que está em jogo. Na política interna, é preciso isolar a extrema direita. Na externa, o indispensável pragmatismo deve se aliar a uma orientação valorativa que reforce a nossa identidade democrática.
Sergio Fausto
A decisão de Erdogan de dar um passo decisivo na direção da autocracia é parte do novo contexto global que se vai delineando com rapidez desde a posse de Donald Trump. Mais um sinal claro de que as transformações das políticas interna e externa dos Estados Unidos terão graves consequências para a democracia no plano internacional. A erosão deliberada dos pilares da democracia norte-americana caminha de mãos dadas com o completo abandono pelos Estados Unidos da ordem liberal cuja construção o país liderou após a Segunda Guerra Mundial.
Nem a democracia americana nem a chamada ordem liberal podem ser idealizadas. Entre outros defeitos, a primeira ainda hoje preserva uma relíquia do século 18, o Colégio Eleitoral, que impede a eleição direta do presidente da república. Já a ordem internacional erguida depois de 1945, seja na sua concepção, seja na sua aplicação, jamais representou um obstáculo suficiente para que os Estados Unidos exercitassem o seu poder de potência dominante ou hegemônica, à sua conveniência.
Ainda assim, quando essa ordem desmorona, importa reconhecer o que estamos perdendo e os imensos riscos que essa perda acarreta. É inegável que sem o Plano Marshall e a Otan a Europa ocidental teria enfrentado dificuldades muito maiores, talvez intransponíveis, para consolidar regimes democráticos avançados, na segunda metade do século 20. Mais provável teria sido o domínio soviético se estender para além da Cortina de Ferro (contido, paradoxalmente, facilitou a formação dos Estados de bem-estar na Europa ocidental). Vale lembrar que a Europa do leste só se livrou de regimes autocráticos e Estados policiais pouco antes do colapso final da União Soviética, quase 50 anos depois do fim do conflito mundial.
No mesmo período, em outras regiões do mundo, os Estados Unidos apoiaram golpes de Estado e ditaduras amigas, enquanto durou a guerra fria.
Porém, junto com a Europa, eles desempenham papel importante na chamada “terceira onda democrática”, iniciada ao fim da década de 1970, seja por não interferir, como no caso da América Latina, seja por apoiar, como no caso do leste da Ásia e da Europa do leste, processos de transição para a democracia.
Em resumo, em matéria de democracia e direitos humanos, o mundo que conhecemos nos últimos 80 anos teria sido bem pior se o desprezo pelas instituições multilaterais e pelos valores democráticos, típicos do que Trump representa, tivesse orientado a política externa americana.
A ruptura interna e externa dos Estados Unidos com a chamada ordem liberal se dá num momento em que ela já se encontrava gravemente enfraquecida. O espectro de um sistema internacional dividido em esferas de influência dominadas por grandes potências autocráticas (Estados Unidos, China e Rússia) ronda o mundo.
Engana-se quem acredita que, com Trump, os Estados Unidos serão menos intervencionistas. Ele e seus aliados se mexem para apoiar forças de extrema direita na Europa e na América Latina, valendo-se do governo americano e de grandes oligarcas, como Elon Musk, uma fusão entre poder político e econômico que ameaça a democracia e a economia de mercado nos Estados Unidos e em outros países.
O pesadelo de uma ordem global autocrática despertou a Europa da sua letargia. O fortalecimento da União Europeia é indispensável para reverter a maré montante da autocracia. O desafio do Velho Continente está em compatibilizar o aumento dos gastos em defesa e a adoção de políticas de competitividade, tais como as recomendadas pelo Relatório Draghi, com a preservação/atualização do Estado de bem-estar social. Para vencer esse desafio, os membros da União Europeia precisam agir em conjunto, com objetivos e mecanismos de financiamento comuns. O que era muito difícil antes de Trump se tornou mais provável em resposta ao abandono da aliança atlântica pelo novo ocupante da Casa Branca. As forças democráticas da centro-direita à centroesquerda europeia parecem dispostas à convergência.
Para a América Latina, em geral, e para o Brasil, em particular, interessa o fortalecimento da União Europeia. Temos atritos comerciais, mas temos complementaridade econômica e, não menos importante, um lastro comum no compromisso com a defesa da democracia e a proteção dos direitos humanos. Cá, como lá, as lideranças políticas democráticas, da centro-direita à centro-esquerda, precisam entender o que está em jogo. Na política interna, é preciso isolar a extrema direita. Na externa, o indispensável pragmatismo deve se aliar a uma orientação valorativa que reforce a nossa identidade democrática.
Sergio Fausto
Trump tenta coibir uso de quase 200 palavras. Pode um governante legislar sobre a linguagem?
No começo de março, deu no New York Times que 197 palavras e expressões vêm sendo excluídas do léxico do governo americano e devem ser evitadas em documentos e na comunicação oficial. Entre elas: “antirracismo”, “energia limpa”, “orientação”, “historicamente”, “mulheres”, “transexual”, “pronomes”, “trauma”, e até “Golfo do México”. Todas pertencem ao vocabulário “woke”, isto é, são utilizadas por determinada militância progressista deplorada pelo presidente Donald Trump. Ou se referem a obsessões do republicano, como renomear o Golfo do México como Golfo da América (nos Estados Unidos, mapas do Google e da Apple já adotaram o topônimo trumpista).
O dicionário de expressões indesejáveis foi compilado a partir da consulta de documentos que ordenam sua remoção de sites do governo e de outros materiais, como currículos escolares. Quando não há proibição explícita, recomenda-se cautela do uso de certas palavras. O NYT supõe que a lista de palavras banidas seja ainda maior. A presença desses termos pode resultar na revisão de contratos e na reprovação do financiamento de pesquisas científicas, afirmou o jornal.
Mas, afinal, pode um governante legislar sobre a linguagem? O filósofo inglês Thomas Hobbes (1588-1679) acreditava que sim. Em “O cidadão”, ele afirma que cabe ao soberano impor o significado das palavras, pois “uma denominação incorreta pode levar à revolta e à sedição”, ou seja, a divisões sociais que abalem o poder político. Hobbes é um teórico da soberania e, embora admita leituras mais democráticas, sua obra é mais comumente associada a uma defesa do poder ilimitado do monarca. Leitor de Hobbes, o professor de filosofia e ex-ministro da Educação Renato Janine Ribeiro explica que o problema não é os governantes criarem um vocabulário próprio, mas como eles definem certos conceitos.
— A palavra “povo” é outro exemplo. “Povo” é o conjunto da população ou são só aqueles que apoiam determinado político? Essa definição tem consequências — afirma o presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, acrescentando que “o significado das palavras está sempre em disputa”.
No dicionário trumpista, termos como “homem” e “mulher” se referem ao “gênero atribuído a uma pessoa ao nascer”, o que exclui homens e mulheres trans. Há uma semana, um repórter perguntou a Trump: “O que é uma mulher?” “É alguém que pode ter um bebê”, ele respondeu. A expressão “Pessoas gestantes”, que inclui homens trans que engravidam, também foi banida.
Em “Eles em nós: retórica e antagonismo político no Brasil do século XXI” (Record), Idelber Avelar analisa diferentes forças políticas e adoção de figuras de linguagem. A hipérbole (exagero), por exemplo, é usada para fomentar o nacionalismo e a fé no desenvolvimento econômico. Já o oxímoro (contradição insolúvel, como um círculo quadrado) aparece nos discursos de políticos que tentam unir forças sociais opostas, ignorando de propósito as diferenças inconciliáveis. Em alguns casos, nota o autor, algumas palavras desparecem paulatinamente do discurso público, como “latifundiário”, substituído nas últimas décadas por “ruralista”.
— A concentração de terras no Brasil não diminuiu, ainda existem latifúndios, mas o termo para designar essa realidade mudou de tal forma que o abismo social entre ricos e pobres no país ficou menos visível. A substituição de “latifundiário”, um termo essencial da historiografia e da sociologia brasileira, por “ruralista” amaciou nossa percepção da desigualdade — diz o professor da Universidade de Tulane, nos Estados Unidos.
O abandono de determinados termos, diz Avelar, aponta para tentativas de apagar a realidade que eles nomeiam. A linguista Jana Viscardi concorda:
— Se não é mais possível nomear a existência de uma pessoa transexual, como pensar em políticas públicas para essa população? — questiona ela.
Autora de “Escrever sem medo” (Planeta), Viscardi diferencia o que considera propostas “autoritárias” da linguagem que é cunhada por militâncias progressistas e de tentativas de banir estrangeirismos (como a encampada pelo ex-deputado Aldo Rebelo no fim do século passado), que estão fadadas ao fracasso dada à própria dinâmica da língua.
— Uma coisa é questionar como o preconceito se dá por meio do uso da língua. Outra é proibir palavras que incluem a descrição de seres humanos com o intuito de apagar um conjunto de existências e práticas — diz ela.
Para o historiador americano Robert Darnton, o objetivo de Trump é atacar o vocabulário de uma certa elite ligada a universidades de prestígio e à militância progressista. Estudioso do Século das Luzes, ele lembra que a Revolução Francesa também ousou intervir diretamente na linguagem: mudou os nomes dos meses do ano e incentivou a adoção de “citoyen” (cidadão) no lugar de “monsieur” (senhor) e “madame” (senhora) para solidificar a identidade da nação sob os princípios da liberdade, da igualdade e da fraternidade.
No livro “Censores em ação: como os estados influenciaram a literatura” (Companhia das Letras), Robert Darnton conta que, na Alemanha Oriental, a repressão às ideias era tamanha que, no limite, a fiscalização se tornou desnecessária, pois os próprios intelectuais internalizaram as restrições. Ele não descarta que algo ocorra nos EUA. Acadêmicos talvez pensem duas vezes (ou mais) antes de escrever e submeter projetos que contemplem iniciativas de diversidade, equidade e inclusão (DEI, na sigla em inglês).
— Um amigo matemático brincou que não sabe mais se vai poder usar a palavra “igual” — diz ele. — Acho que vai haver muita autocensura. Tenho editores na China e na Rússia e sempre sou muito cuidadoso nos e-mails, não escrevo nada que eu imagino que possa causar problemas para eles. Talvez eu comece a tomar esse cuidado aqui também.
O escritor, tradutor e linguista Caetano Galindo lembra que são raríssimos os casos em que governantes de fato conseguem alterar um idioma. Uma exceção é Mustafa Kemal Atatürk (1881-1938), o pai da Turquia moderna, que impôs reformas para expurgar a influência do árabe e do persa na língua pátria. O alfabeto árabe foi substituído pelo latino. Em vez de proibir vocábulos estrangeiros, Atatürk patrocinou a criação de novas palavras, legitimamente turcas, que eram publicadas no jornal para o conhecimento dos falantes. Deu certo, mas o caso turco é quase a exceção que confirma a regra.
— A tentativa de intervir sobre o vocabulário só toca a superfície da superfície da língua. O idioma é muito maior do que isso. Se você proíbe um termo, em dois dias a sociedade começa a usar outro que cumpre um papel parecido — afirma o autor do recém-lançado “Na ponta da língua: o nosso português da cabeça aos pés” (Companhia das Letras). — O idioma é a nossa realidade mais premente, mais constante, ele é comum a todos e impossível de controlar. Ninguém legisla sobre um idioma. Quem determina como ele vai ser é o coletivo dos falantes, que vive num permanente cabo de guerra.
Em “Latim em pó: um passeio pela formação do nosso português” (Companhia das Letras), Galindo escreve que a maneira própria como se dá a “mudança linguística”, alterando implacavelmente idiomas impostos de cima, “pode ser uma curiosa lição de democracia”.
O dicionário de expressões indesejáveis foi compilado a partir da consulta de documentos que ordenam sua remoção de sites do governo e de outros materiais, como currículos escolares. Quando não há proibição explícita, recomenda-se cautela do uso de certas palavras. O NYT supõe que a lista de palavras banidas seja ainda maior. A presença desses termos pode resultar na revisão de contratos e na reprovação do financiamento de pesquisas científicas, afirmou o jornal.
Mas, afinal, pode um governante legislar sobre a linguagem? O filósofo inglês Thomas Hobbes (1588-1679) acreditava que sim. Em “O cidadão”, ele afirma que cabe ao soberano impor o significado das palavras, pois “uma denominação incorreta pode levar à revolta e à sedição”, ou seja, a divisões sociais que abalem o poder político. Hobbes é um teórico da soberania e, embora admita leituras mais democráticas, sua obra é mais comumente associada a uma defesa do poder ilimitado do monarca. Leitor de Hobbes, o professor de filosofia e ex-ministro da Educação Renato Janine Ribeiro explica que o problema não é os governantes criarem um vocabulário próprio, mas como eles definem certos conceitos.
— A palavra “povo” é outro exemplo. “Povo” é o conjunto da população ou são só aqueles que apoiam determinado político? Essa definição tem consequências — afirma o presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, acrescentando que “o significado das palavras está sempre em disputa”.
No dicionário trumpista, termos como “homem” e “mulher” se referem ao “gênero atribuído a uma pessoa ao nascer”, o que exclui homens e mulheres trans. Há uma semana, um repórter perguntou a Trump: “O que é uma mulher?” “É alguém que pode ter um bebê”, ele respondeu. A expressão “Pessoas gestantes”, que inclui homens trans que engravidam, também foi banida.
Em “Eles em nós: retórica e antagonismo político no Brasil do século XXI” (Record), Idelber Avelar analisa diferentes forças políticas e adoção de figuras de linguagem. A hipérbole (exagero), por exemplo, é usada para fomentar o nacionalismo e a fé no desenvolvimento econômico. Já o oxímoro (contradição insolúvel, como um círculo quadrado) aparece nos discursos de políticos que tentam unir forças sociais opostas, ignorando de propósito as diferenças inconciliáveis. Em alguns casos, nota o autor, algumas palavras desparecem paulatinamente do discurso público, como “latifundiário”, substituído nas últimas décadas por “ruralista”.
— A concentração de terras no Brasil não diminuiu, ainda existem latifúndios, mas o termo para designar essa realidade mudou de tal forma que o abismo social entre ricos e pobres no país ficou menos visível. A substituição de “latifundiário”, um termo essencial da historiografia e da sociologia brasileira, por “ruralista” amaciou nossa percepção da desigualdade — diz o professor da Universidade de Tulane, nos Estados Unidos.
O abandono de determinados termos, diz Avelar, aponta para tentativas de apagar a realidade que eles nomeiam. A linguista Jana Viscardi concorda:
— Se não é mais possível nomear a existência de uma pessoa transexual, como pensar em políticas públicas para essa população? — questiona ela.
Autora de “Escrever sem medo” (Planeta), Viscardi diferencia o que considera propostas “autoritárias” da linguagem que é cunhada por militâncias progressistas e de tentativas de banir estrangeirismos (como a encampada pelo ex-deputado Aldo Rebelo no fim do século passado), que estão fadadas ao fracasso dada à própria dinâmica da língua.
— Uma coisa é questionar como o preconceito se dá por meio do uso da língua. Outra é proibir palavras que incluem a descrição de seres humanos com o intuito de apagar um conjunto de existências e práticas — diz ela.
Para o historiador americano Robert Darnton, o objetivo de Trump é atacar o vocabulário de uma certa elite ligada a universidades de prestígio e à militância progressista. Estudioso do Século das Luzes, ele lembra que a Revolução Francesa também ousou intervir diretamente na linguagem: mudou os nomes dos meses do ano e incentivou a adoção de “citoyen” (cidadão) no lugar de “monsieur” (senhor) e “madame” (senhora) para solidificar a identidade da nação sob os princípios da liberdade, da igualdade e da fraternidade.
No livro “Censores em ação: como os estados influenciaram a literatura” (Companhia das Letras), Robert Darnton conta que, na Alemanha Oriental, a repressão às ideias era tamanha que, no limite, a fiscalização se tornou desnecessária, pois os próprios intelectuais internalizaram as restrições. Ele não descarta que algo ocorra nos EUA. Acadêmicos talvez pensem duas vezes (ou mais) antes de escrever e submeter projetos que contemplem iniciativas de diversidade, equidade e inclusão (DEI, na sigla em inglês).
— Um amigo matemático brincou que não sabe mais se vai poder usar a palavra “igual” — diz ele. — Acho que vai haver muita autocensura. Tenho editores na China e na Rússia e sempre sou muito cuidadoso nos e-mails, não escrevo nada que eu imagino que possa causar problemas para eles. Talvez eu comece a tomar esse cuidado aqui também.
O escritor, tradutor e linguista Caetano Galindo lembra que são raríssimos os casos em que governantes de fato conseguem alterar um idioma. Uma exceção é Mustafa Kemal Atatürk (1881-1938), o pai da Turquia moderna, que impôs reformas para expurgar a influência do árabe e do persa na língua pátria. O alfabeto árabe foi substituído pelo latino. Em vez de proibir vocábulos estrangeiros, Atatürk patrocinou a criação de novas palavras, legitimamente turcas, que eram publicadas no jornal para o conhecimento dos falantes. Deu certo, mas o caso turco é quase a exceção que confirma a regra.
— A tentativa de intervir sobre o vocabulário só toca a superfície da superfície da língua. O idioma é muito maior do que isso. Se você proíbe um termo, em dois dias a sociedade começa a usar outro que cumpre um papel parecido — afirma o autor do recém-lançado “Na ponta da língua: o nosso português da cabeça aos pés” (Companhia das Letras). — O idioma é a nossa realidade mais premente, mais constante, ele é comum a todos e impossível de controlar. Ninguém legisla sobre um idioma. Quem determina como ele vai ser é o coletivo dos falantes, que vive num permanente cabo de guerra.
Em “Latim em pó: um passeio pela formação do nosso português” (Companhia das Letras), Galindo escreve que a maneira própria como se dá a “mudança linguística”, alterando implacavelmente idiomas impostos de cima, “pode ser uma curiosa lição de democracia”.
O drama das cobaias humanas em Gaza
Na semana passada, mais que em qualquer momento anterior, nosso planeta viu-se forçado a mudar de órbita e girar em torno de Donald Trump, autoproclamado rei-sol do desvario tarifário em curso. Consequências e reverberações da medida têm sido dissecadas em todos os quadrantes, exceto na estreita faixa de terra, sangue e história chamada Gaza. Ali não há o que taxar. Ali uma vida humana vale menos que a de um cachorro.
Foi em agosto de 2024 que se ouviu a primeira referência ao termo shawish, empregado no contexto da guerra desencadeada por Benjamin Netanyahu em retaliação ao atentado terrorista do Hamas de outubro de 2023. A palavra de origem turca significa “sargento”, mas, segundo revelou à época o jornalista investigativo Yaniv Kubovich, passou a ser usada como sinônimo de “escravo” ou “escudo humano” pelas Forças de Defesa de Israel (FDI). A longa reportagem de Kubovich publicada no jornal de oposição Haaretz causou incômodo. Ela deu voz a soldados e oficiais da frente de combate que denunciaram o uso de civis palestinos como cobaias em operações militares.
A prática, também conhecida como Protocolo Mosquito, consiste em pinçar algum jovem ou idoso entre civis palestinos, vesti-lo com uniforme das FDI, amarrar-lhe as mãos pelas costas, afixar uma câmera ao colete à prova de balas e obrigá-lo a entrar em túneis do Hamas ou imóveis semidestruídos. Com dez minutos de antecedência em relação à tropa. Se o local estiver minado, o “escudo” civil explode primeiro. Caso contrário, ele tem a promessa de ser libertado uma vez cumprida a missão. Em tese, são recrutados à força por apenas 24 horas, mas há relatos de shawishes sendo usados ao longo de uma semana inteira. Para tanto, recebem rações militares e água.
Segundo a reportagem original, houve instâncias em que unidades de combate chegaram a questionar seus superiores sobre a legalidade do procedimento, inquiriram sobre a origem e a necessidade da ordem recebida. Recebiam respostas impacientes:
— Você concorda que é melhor seus amigos continuarem vivos e não estraçalhados por algum explosivo, e que eles ‘se explodam’ no nosso lugar, certo?
— Um soldado não deve se interessar por leis de guerra. Vocês precisam pensar nos valores da nossa defesa.
A proteção à unidade canina militar Oketz também era ressaltada — vários cães farejadores haviam morrido ou saído horrendamente feridos desse tipo de incursão, enquanto outros, apesar de sobreviver, perdiam seus sentidos operacionais. Era preciso protegê-los. Melhor, portanto, usar cobaias humanas. Leia-se, palestinos inocentes.
Dias atrás, foi a vez de um oficial israelense (não identificado nominalmente, por motivos óbvios) publicar seu desabafo diante da normalização do procedimento. Entre as primeiras denúncias e hoje, a Divisão de Investigações Criminais das FDI abriu apenas seis inquéritos referentes ao uso de palestinos como escudos.
— Hoje, praticamente todo pelotão mantém um shawish de prontidão. Isso significa quatro escudos palestinos por companhia, 12 por batalhão e pelo menos 36 numa brigada. Estamos operando com um subexército de escravos — escreveu o militar.
O signatário do desabafo serviu por nove meses no inferno de Gaza e testemunhou várias ações do gênero. O procedimento não exige tecnologia — é mais barato e simples que o uso de robôs ou drones. Relatos de combatentes coletados pela ONG Breaking the Silence (Quebrando o Silêncio) sustentam que pelo menos dois oficiais do mais alto escalão das FDI tinham conhecimento da prática ilegal.
— Não sei o que é pior — escreve o autor da denúncia — Se os comandantes não saberem o que ocorre nas fileiras subalternas ou saberem e ignorarem.
Ele acredita que os seis inquéritos em curso visam somente a aplacar a consciência nacional e mundial pinçando alguns bodes expiatórios.
Enquanto isso, prosseguem o fatiamento e a ocupação de Gaza, a expansão da operação militar, a criação de mais “zonas de segurança” para as FDI, o enxotamento de mais de 140 mil para a nova “zona humanitária”. Ganho territorial parece ter se tornado a prioridade única de Netanyahu. O cessar-fogo inicial de 42 dias expirou em fevereiro e, desde então, vigora a suspensão de qualquer ajuda humanitária para o enclave. Um diretório especial israelense já começou a ser formado para supervisionar a “saída voluntária” de palestinos do enclave e, segundo revelou o site Axios, agentes do Mossad iniciaram o trabalho de “convencimento” de países africanos como Somália e Sudão do Sul para que aceitem receber esses excluídos à força.
Quantos shawishes mais precisarão ser usados para limpar Gaza de sua vida palestina?
— Estremeço ao pensar no dano causado à psique de quem é obrigado a entrar numa casa como cobaia, sozinho, desarmado e aterrorizado. Também estremeço ao pensar no dano que isso causa a nossos jovens soldados israelenses que prepararam a vítima — escreveu o oficial no Haaretz. — Não apenas falhamos na proteção de nossas tropas, como também corrompemos suas almas. Não há como saber o que será de nós, como sociedade, quando eles retornarem da linha de frente.
Foi em agosto de 2024 que se ouviu a primeira referência ao termo shawish, empregado no contexto da guerra desencadeada por Benjamin Netanyahu em retaliação ao atentado terrorista do Hamas de outubro de 2023. A palavra de origem turca significa “sargento”, mas, segundo revelou à época o jornalista investigativo Yaniv Kubovich, passou a ser usada como sinônimo de “escravo” ou “escudo humano” pelas Forças de Defesa de Israel (FDI). A longa reportagem de Kubovich publicada no jornal de oposição Haaretz causou incômodo. Ela deu voz a soldados e oficiais da frente de combate que denunciaram o uso de civis palestinos como cobaias em operações militares.
A prática, também conhecida como Protocolo Mosquito, consiste em pinçar algum jovem ou idoso entre civis palestinos, vesti-lo com uniforme das FDI, amarrar-lhe as mãos pelas costas, afixar uma câmera ao colete à prova de balas e obrigá-lo a entrar em túneis do Hamas ou imóveis semidestruídos. Com dez minutos de antecedência em relação à tropa. Se o local estiver minado, o “escudo” civil explode primeiro. Caso contrário, ele tem a promessa de ser libertado uma vez cumprida a missão. Em tese, são recrutados à força por apenas 24 horas, mas há relatos de shawishes sendo usados ao longo de uma semana inteira. Para tanto, recebem rações militares e água.
Segundo a reportagem original, houve instâncias em que unidades de combate chegaram a questionar seus superiores sobre a legalidade do procedimento, inquiriram sobre a origem e a necessidade da ordem recebida. Recebiam respostas impacientes:
— Você concorda que é melhor seus amigos continuarem vivos e não estraçalhados por algum explosivo, e que eles ‘se explodam’ no nosso lugar, certo?
— Um soldado não deve se interessar por leis de guerra. Vocês precisam pensar nos valores da nossa defesa.
A proteção à unidade canina militar Oketz também era ressaltada — vários cães farejadores haviam morrido ou saído horrendamente feridos desse tipo de incursão, enquanto outros, apesar de sobreviver, perdiam seus sentidos operacionais. Era preciso protegê-los. Melhor, portanto, usar cobaias humanas. Leia-se, palestinos inocentes.
Dias atrás, foi a vez de um oficial israelense (não identificado nominalmente, por motivos óbvios) publicar seu desabafo diante da normalização do procedimento. Entre as primeiras denúncias e hoje, a Divisão de Investigações Criminais das FDI abriu apenas seis inquéritos referentes ao uso de palestinos como escudos.
— Hoje, praticamente todo pelotão mantém um shawish de prontidão. Isso significa quatro escudos palestinos por companhia, 12 por batalhão e pelo menos 36 numa brigada. Estamos operando com um subexército de escravos — escreveu o militar.
O signatário do desabafo serviu por nove meses no inferno de Gaza e testemunhou várias ações do gênero. O procedimento não exige tecnologia — é mais barato e simples que o uso de robôs ou drones. Relatos de combatentes coletados pela ONG Breaking the Silence (Quebrando o Silêncio) sustentam que pelo menos dois oficiais do mais alto escalão das FDI tinham conhecimento da prática ilegal.
— Não sei o que é pior — escreve o autor da denúncia — Se os comandantes não saberem o que ocorre nas fileiras subalternas ou saberem e ignorarem.
Ele acredita que os seis inquéritos em curso visam somente a aplacar a consciência nacional e mundial pinçando alguns bodes expiatórios.
Enquanto isso, prosseguem o fatiamento e a ocupação de Gaza, a expansão da operação militar, a criação de mais “zonas de segurança” para as FDI, o enxotamento de mais de 140 mil para a nova “zona humanitária”. Ganho territorial parece ter se tornado a prioridade única de Netanyahu. O cessar-fogo inicial de 42 dias expirou em fevereiro e, desde então, vigora a suspensão de qualquer ajuda humanitária para o enclave. Um diretório especial israelense já começou a ser formado para supervisionar a “saída voluntária” de palestinos do enclave e, segundo revelou o site Axios, agentes do Mossad iniciaram o trabalho de “convencimento” de países africanos como Somália e Sudão do Sul para que aceitem receber esses excluídos à força.
Quantos shawishes mais precisarão ser usados para limpar Gaza de sua vida palestina?
— Estremeço ao pensar no dano causado à psique de quem é obrigado a entrar numa casa como cobaia, sozinho, desarmado e aterrorizado. Também estremeço ao pensar no dano que isso causa a nossos jovens soldados israelenses que prepararam a vítima — escreveu o oficial no Haaretz. — Não apenas falhamos na proteção de nossas tropas, como também corrompemos suas almas. Não há como saber o que será de nós, como sociedade, quando eles retornarem da linha de frente.
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