O dicionário de expressões indesejáveis foi compilado a partir da consulta de documentos que ordenam sua remoção de sites do governo e de outros materiais, como currículos escolares. Quando não há proibição explícita, recomenda-se cautela do uso de certas palavras. O NYT supõe que a lista de palavras banidas seja ainda maior. A presença desses termos pode resultar na revisão de contratos e na reprovação do financiamento de pesquisas científicas, afirmou o jornal.
Mas, afinal, pode um governante legislar sobre a linguagem? O filósofo inglês Thomas Hobbes (1588-1679) acreditava que sim. Em “O cidadão”, ele afirma que cabe ao soberano impor o significado das palavras, pois “uma denominação incorreta pode levar à revolta e à sedição”, ou seja, a divisões sociais que abalem o poder político. Hobbes é um teórico da soberania e, embora admita leituras mais democráticas, sua obra é mais comumente associada a uma defesa do poder ilimitado do monarca. Leitor de Hobbes, o professor de filosofia e ex-ministro da Educação Renato Janine Ribeiro explica que o problema não é os governantes criarem um vocabulário próprio, mas como eles definem certos conceitos.
— A palavra “povo” é outro exemplo. “Povo” é o conjunto da população ou são só aqueles que apoiam determinado político? Essa definição tem consequências — afirma o presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, acrescentando que “o significado das palavras está sempre em disputa”.
No dicionário trumpista, termos como “homem” e “mulher” se referem ao “gênero atribuído a uma pessoa ao nascer”, o que exclui homens e mulheres trans. Há uma semana, um repórter perguntou a Trump: “O que é uma mulher?” “É alguém que pode ter um bebê”, ele respondeu. A expressão “Pessoas gestantes”, que inclui homens trans que engravidam, também foi banida.
Em “Eles em nós: retórica e antagonismo político no Brasil do século XXI” (Record), Idelber Avelar analisa diferentes forças políticas e adoção de figuras de linguagem. A hipérbole (exagero), por exemplo, é usada para fomentar o nacionalismo e a fé no desenvolvimento econômico. Já o oxímoro (contradição insolúvel, como um círculo quadrado) aparece nos discursos de políticos que tentam unir forças sociais opostas, ignorando de propósito as diferenças inconciliáveis. Em alguns casos, nota o autor, algumas palavras desparecem paulatinamente do discurso público, como “latifundiário”, substituído nas últimas décadas por “ruralista”.
— A concentração de terras no Brasil não diminuiu, ainda existem latifúndios, mas o termo para designar essa realidade mudou de tal forma que o abismo social entre ricos e pobres no país ficou menos visível. A substituição de “latifundiário”, um termo essencial da historiografia e da sociologia brasileira, por “ruralista” amaciou nossa percepção da desigualdade — diz o professor da Universidade de Tulane, nos Estados Unidos.
O abandono de determinados termos, diz Avelar, aponta para tentativas de apagar a realidade que eles nomeiam. A linguista Jana Viscardi concorda:
— Se não é mais possível nomear a existência de uma pessoa transexual, como pensar em políticas públicas para essa população? — questiona ela.
Autora de “Escrever sem medo” (Planeta), Viscardi diferencia o que considera propostas “autoritárias” da linguagem que é cunhada por militâncias progressistas e de tentativas de banir estrangeirismos (como a encampada pelo ex-deputado Aldo Rebelo no fim do século passado), que estão fadadas ao fracasso dada à própria dinâmica da língua.
— Uma coisa é questionar como o preconceito se dá por meio do uso da língua. Outra é proibir palavras que incluem a descrição de seres humanos com o intuito de apagar um conjunto de existências e práticas — diz ela.
Para o historiador americano Robert Darnton, o objetivo de Trump é atacar o vocabulário de uma certa elite ligada a universidades de prestígio e à militância progressista. Estudioso do Século das Luzes, ele lembra que a Revolução Francesa também ousou intervir diretamente na linguagem: mudou os nomes dos meses do ano e incentivou a adoção de “citoyen” (cidadão) no lugar de “monsieur” (senhor) e “madame” (senhora) para solidificar a identidade da nação sob os princípios da liberdade, da igualdade e da fraternidade.
No livro “Censores em ação: como os estados influenciaram a literatura” (Companhia das Letras), Robert Darnton conta que, na Alemanha Oriental, a repressão às ideias era tamanha que, no limite, a fiscalização se tornou desnecessária, pois os próprios intelectuais internalizaram as restrições. Ele não descarta que algo ocorra nos EUA. Acadêmicos talvez pensem duas vezes (ou mais) antes de escrever e submeter projetos que contemplem iniciativas de diversidade, equidade e inclusão (DEI, na sigla em inglês).
— Um amigo matemático brincou que não sabe mais se vai poder usar a palavra “igual” — diz ele. — Acho que vai haver muita autocensura. Tenho editores na China e na Rússia e sempre sou muito cuidadoso nos e-mails, não escrevo nada que eu imagino que possa causar problemas para eles. Talvez eu comece a tomar esse cuidado aqui também.
O escritor, tradutor e linguista Caetano Galindo lembra que são raríssimos os casos em que governantes de fato conseguem alterar um idioma. Uma exceção é Mustafa Kemal Atatürk (1881-1938), o pai da Turquia moderna, que impôs reformas para expurgar a influência do árabe e do persa na língua pátria. O alfabeto árabe foi substituído pelo latino. Em vez de proibir vocábulos estrangeiros, Atatürk patrocinou a criação de novas palavras, legitimamente turcas, que eram publicadas no jornal para o conhecimento dos falantes. Deu certo, mas o caso turco é quase a exceção que confirma a regra.
— A tentativa de intervir sobre o vocabulário só toca a superfície da superfície da língua. O idioma é muito maior do que isso. Se você proíbe um termo, em dois dias a sociedade começa a usar outro que cumpre um papel parecido — afirma o autor do recém-lançado “Na ponta da língua: o nosso português da cabeça aos pés” (Companhia das Letras). — O idioma é a nossa realidade mais premente, mais constante, ele é comum a todos e impossível de controlar. Ninguém legisla sobre um idioma. Quem determina como ele vai ser é o coletivo dos falantes, que vive num permanente cabo de guerra.
Em “Latim em pó: um passeio pela formação do nosso português” (Companhia das Letras), Galindo escreve que a maneira própria como se dá a “mudança linguística”, alterando implacavelmente idiomas impostos de cima, “pode ser uma curiosa lição de democracia”.
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