Foi em agosto de 2024 que se ouviu a primeira referência ao termo shawish, empregado no contexto da guerra desencadeada por Benjamin Netanyahu em retaliação ao atentado terrorista do Hamas de outubro de 2023. A palavra de origem turca significa “sargento”, mas, segundo revelou à época o jornalista investigativo Yaniv Kubovich, passou a ser usada como sinônimo de “escravo” ou “escudo humano” pelas Forças de Defesa de Israel (FDI). A longa reportagem de Kubovich publicada no jornal de oposição Haaretz causou incômodo. Ela deu voz a soldados e oficiais da frente de combate que denunciaram o uso de civis palestinos como cobaias em operações militares.
A prática, também conhecida como Protocolo Mosquito, consiste em pinçar algum jovem ou idoso entre civis palestinos, vesti-lo com uniforme das FDI, amarrar-lhe as mãos pelas costas, afixar uma câmera ao colete à prova de balas e obrigá-lo a entrar em túneis do Hamas ou imóveis semidestruídos. Com dez minutos de antecedência em relação à tropa. Se o local estiver minado, o “escudo” civil explode primeiro. Caso contrário, ele tem a promessa de ser libertado uma vez cumprida a missão. Em tese, são recrutados à força por apenas 24 horas, mas há relatos de shawishes sendo usados ao longo de uma semana inteira. Para tanto, recebem rações militares e água.
Segundo a reportagem original, houve instâncias em que unidades de combate chegaram a questionar seus superiores sobre a legalidade do procedimento, inquiriram sobre a origem e a necessidade da ordem recebida. Recebiam respostas impacientes:
— Você concorda que é melhor seus amigos continuarem vivos e não estraçalhados por algum explosivo, e que eles ‘se explodam’ no nosso lugar, certo?
— Um soldado não deve se interessar por leis de guerra. Vocês precisam pensar nos valores da nossa defesa.
A proteção à unidade canina militar Oketz também era ressaltada — vários cães farejadores haviam morrido ou saído horrendamente feridos desse tipo de incursão, enquanto outros, apesar de sobreviver, perdiam seus sentidos operacionais. Era preciso protegê-los. Melhor, portanto, usar cobaias humanas. Leia-se, palestinos inocentes.
Dias atrás, foi a vez de um oficial israelense (não identificado nominalmente, por motivos óbvios) publicar seu desabafo diante da normalização do procedimento. Entre as primeiras denúncias e hoje, a Divisão de Investigações Criminais das FDI abriu apenas seis inquéritos referentes ao uso de palestinos como escudos.
— Hoje, praticamente todo pelotão mantém um shawish de prontidão. Isso significa quatro escudos palestinos por companhia, 12 por batalhão e pelo menos 36 numa brigada. Estamos operando com um subexército de escravos — escreveu o militar.
O signatário do desabafo serviu por nove meses no inferno de Gaza e testemunhou várias ações do gênero. O procedimento não exige tecnologia — é mais barato e simples que o uso de robôs ou drones. Relatos de combatentes coletados pela ONG Breaking the Silence (Quebrando o Silêncio) sustentam que pelo menos dois oficiais do mais alto escalão das FDI tinham conhecimento da prática ilegal.
— Não sei o que é pior — escreve o autor da denúncia — Se os comandantes não saberem o que ocorre nas fileiras subalternas ou saberem e ignorarem.
Ele acredita que os seis inquéritos em curso visam somente a aplacar a consciência nacional e mundial pinçando alguns bodes expiatórios.
Enquanto isso, prosseguem o fatiamento e a ocupação de Gaza, a expansão da operação militar, a criação de mais “zonas de segurança” para as FDI, o enxotamento de mais de 140 mil para a nova “zona humanitária”. Ganho territorial parece ter se tornado a prioridade única de Netanyahu. O cessar-fogo inicial de 42 dias expirou em fevereiro e, desde então, vigora a suspensão de qualquer ajuda humanitária para o enclave. Um diretório especial israelense já começou a ser formado para supervisionar a “saída voluntária” de palestinos do enclave e, segundo revelou o site Axios, agentes do Mossad iniciaram o trabalho de “convencimento” de países africanos como Somália e Sudão do Sul para que aceitem receber esses excluídos à força.
Quantos shawishes mais precisarão ser usados para limpar Gaza de sua vida palestina?
— Estremeço ao pensar no dano causado à psique de quem é obrigado a entrar numa casa como cobaia, sozinho, desarmado e aterrorizado. Também estremeço ao pensar no dano que isso causa a nossos jovens soldados israelenses que prepararam a vítima — escreveu o oficial no Haaretz. — Não apenas falhamos na proteção de nossas tropas, como também corrompemos suas almas. Não há como saber o que será de nós, como sociedade, quando eles retornarem da linha de frente.
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