domingo, 23 de outubro de 2016

Internet e populismo mataram a verdade

A mentira e a falácia são os dois grandes inimigos da política, do jornalismo e, em geral, da convivência humana. E de um tempo para cá a Internet, as redes sociais e o populismo mataram a verdade, criando uma sociedade na qual qualquer afirmação se torna realidade, mesmo sendo falsa; qualquer acusação repercute, mesmo caluniosa; e as meias-verdades e meias-mentiras se tornaram os eixos do debate público, agitadas pela maior maquinaria de propaganda já conhecida: a Rede.

A scuola di populismo : IL Magazine:

O candidato à presidência dos Estados Unidos, Donald Trump, pode dizer que o atual presidente, Barack Obama, nasceu fora do país e não acontece nada? Pode o presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, afirmar descaradamente que há uma conspiração mundial contra ele sem que sua cara caia de vergonha? Pode Mariano Rajoy negar uma e outra vez a existência do resgate europeu para a Espanha? Pode o ex-líder do Podemos Juan Carlos Monedero dizer que a ascensão de seu partido nas eleições europeias de 2014 forçou a abdicação do rei Juan Carlos e tudo bem? Os líderes do independentismo catalão podem afirmar que fora da Espanha permaneceriam na União Europeia sem que ninguém os coloque em seus devidos lugares? Podem os partidos de extrema direita europeus afirmar que os refugiados que fogem das guerras da Síria e do Afeganistão são terroristas emboscados e seus seguidores acreditam neles? Infelizmente, sim.

O populismo, de direita, de esquerda ou puramente nacionalista, começou há muito a faltar com o respeito à realidade e conseguiu crescer na base de falácias que servem para cumprir seu objetivo de chegar ao poder ou permanecer nele. De nada vale que Obama apresente sua certidão de nascimento, que os venezuelanos expressem seu desejo de liberdade, que as contas do Estado incluam o resgate financeiro da Espanha, que a história demonstre que a preparação da abdicação do Rei começou meses antes de o Podemos se apresentasse às eleições, que Bruxelas afirme que a Catalunha fora da Espanha será excluída da EU, ou que as fotos da tragédia e da indignidade demonstrem que as centenas de milhares de refugiados não vêm para a Europa para matar, mas para evitar morrer.

A verdade é incompatível com o populismo, que floresce ajudado pelos novos canais criados em torno da Internet. Centenas, milhares de ativistas, lançam suas mensagens em jornais digitais, blogs e, acima de tudo, contas em redes sociais como uma marreta batendo uma e outra vez contra a realidade, até que conseguem destruí-la.

A intimidação digital é, hoje, uma profissão de futuro intimamente ligada aos movimentos populistas de um lado e de outro. As hostes do Podemos, ou dos independentistas, partem para o combate nas redes sociais quando recebem o mandato para atacar impiedosamente um político, um jornalista, um líder de opinião ou um cidadão comum que ousou criticar um dos seus líderes, ou que simplesmente pensa de forma diferente do que eles. O insulto, a calúnia e a mentira são as armas usadas para destruir o contrário, na maioria das vezes a partir de um anonimato covarde no qual vale tudo.


A mentira não é patrimônio exclusivo da política. Os meios de comunicação também sucumbiram à sedução

Por outro lado, o nacionalismo espanhol mais rançoso também aderiu à difamação nas redes sociais. Já na campanha para as eleições municipais distribuíram documentos falsos sobre as intenções de alguns dos candidatos às principais prefeituras da Espanha. Falou-se de transformar clubes esportivos em fazendas-escola ou bobagem semelhante. E, recentemente, ativistas da mais antiga caverna lançaram a mentira descarada de que o jogador de futebol catalão Gerard Piqué tinha cortado as mangas da camisa da seleção nacional para remover a bandeira da Espanha. De nada serviram as explicações e as fotos que mostram que a camisa de manga comprida não tem a bandeira. O mal já estava feito. Mais uma vez, uma mentira repetida muitas vezes (infinitas, com a ajuda das redes sociais) se transformou em verdade e em arma a ser lançada contra seu inimigo.

Mas a mentira não é patrimônio exclusivo da política. Muitos meios de comunicação também sucumbiram à sedução de criar uma realidade que sirva aos seus interesses. Não todos, é claro; como nem todos os políticos, sociólogos e historiadores se deixaram levar pela atração fatal da falácia (argumento que parece válido, mas não é).

A irrupção da Internet no jornalismo provocou danos irreparáveis a uma profissão já duramente atingida pela crise econômica e pelas pressões dos poderes públicos e econômicos. A essência de um bom jornalista pode ser definida como buscar uma notícia, comprová-la, avaliar se é relevante e torná-la uma história bem contada. Embora nesses quatro passos que parecem simples seja muito fácil desrespeitar a verdade, que é o princípio fundamental de um bom informador.

A Rede é um canal infinito e histérico que submete o jornalista a uma pressão infernal. Trabalhei alguns anos em agências de informação onde se dizia que as notícias queimavam nas mãos e que deviam ser divulgadas o mais rapidamente possível; mas isso nunca era feito sem antes comprová-las com as três fontes obrigatórias. No mundo da Internet, as notícias não queimam, explodem. E muitas vezes, demasiadas, são publicadas sem o nível de comprovação suficiente: ou seja, sem confiabilidade (isso, sem contar as notícias publicadas com a ciência de que não são verdadeiras). Do jornal digital passam às redes sociais e, destas, a outros meios de comunicação que as retroalimentam como se as tivessem comprovado.

Ninguém está isento dessa febre provocada pelos acessos, pelos usuários únicos e pela dura concorrência. Assim, muitas vezes as manchetes são distorcidas para obter mais leitores, convertendo-as numa paródia do que realmente diz a notícia. Depois são tuitadas, retuitadas, os comunicadores de rádio e televisão as comentam, os debatedores tiram proveito, e colunistas a invertem... No final, a verdade, se é que houve algo em sua origem, vai se esmigalhando pouco a pouco, transformando a notícia num quebra-cabeça mal montado com figuras disformes.

Infelizmente, a cotação do quilo de verdade está em baixa no mercado.

A esquerda de bandeiras enroladas

Onde estão as bandeiras da esquerda? O que pode ser ainda eixo do discurso da esquerda no Brasil?

Depois da estrondosa derrota do PT e da pequena movimentação que eleva em alguns pontos a posição do PSOL no espectro ideológico, torna-se bastante difícil enxergar colheitas vermelhas (identificadas nas roças da esquerda) no território.

É claro que não se pode afirmar que a cor vermelha se apagará na paisagem, eis que grupamentos como MST, CUT, MTST e outros minúsculos enclaves ainda se vestirão com o manto cor de sangue. Mas as bandeiras da esquerda, no sentido do discurso, estas, sim, passarão um bom tempo esquecidas no baú.

Nesses tempos de alta tensão política, com o desdobramento do processo de investigação pela Operação Lava Jato, a preocupação central dos atores políticos é a de sobreviver aos sobressaltos.

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Se os inputs ideológicos sofrem refluxo na esteira das crises econômicas que têm abalado as Nações, imagine-se o que se infere sobre a esquerda brasileira quando sua fortaleza avançada – o PT – é derrubada por bombardeios devastadores. E mais: quando o país ingressa na maior recessão de sua história.

Desde os tempos do mensalão, o Partido dos Trabalhadores tem sido considerado o eixo central da engrenagem de corrupção que consome os recursos do Estado. Logo, seu discurso de “esquerda” deixou de receber endosso. Passou a ser mentiroso.

Afinal, o que seria de esquerda para os ideólogos petistas? Dar ao Estado uma conformação paquidérmica; locupletar a máquina administrativa com milhões de militantes; fechar as empresas do Estado para qualquer iniciativa que implique abertura de programas e compartilhamento de ações com a iniciativa privada; e promover uma gastança sem fim, na crença de que os recursos do Tesouro são infinitos. Por aí se mede o tamanho do legado esquerdista que o arquipélago petista gostaria de imprimir ao país.

O fato é que nem aqui nem alhures a esquerda consegue expandir seu roçado. Ao contrário, o que tem ocorrido é uma ligeira inclinação à direita, sob o empuxo de forças do mercado, que tentam buscar alternativas para os gargalos das economias em todos os recantos.

É evidente que o Estado deverá continuar a deter seu papel de controle e intervenção quando as crises assim o exigirem. Isso foi o que aconteceu na crise de 2008, quando a maior democracia ocidental, os Estados Unidos, se obrigou a intervir no mercado e a controlar os rumos da economia.

Mas o fato é que o Estado não tem cumprido suas tarefas e funções, ante a inexorável pressão de populações desassistidas e carentes. Os serviços públicos têm entrado em situação de penúria. Os equipamentos das estruturas de saúde, educação e mobilidade são precários e defasados.

Ante as demandas crescentes, por parte de conjuntos cada vez mais críticos e exigentes, o Estado só tem uma alternativa: repartir suas funções com a iniciativa privada.

Essa é a radiografia que remanescentes da ortodoxa esquerda não querem enxergar. Por isso, abrem suas tubas de ressonância para deflagrar campanhas negativas contra gestores e representantes que pregam o avanço e jogam suas fichas no tabuleiro da modernidade.

O presidente Macri, na Argentina, tenta viabilizar uma administração voltada para salvar a economia do país. Por aqui, é visível o esforço do governo Temer para tirar o país do buraco mais fundo de sua história econômica. A economia é o foco da administração.

Azeitada, a locomotiva econômica puxará os carros do trem para os trilhos, garantindo recursos para pagar os aposentados, expandindo o mercado de trabalho, consolidando os eixos da educação de qualidade, garantindo investimentos na infraestrutura.

Na maior metrópole do país, São Paulo, o prefeito eleito, João Doria, promete agir sob o mesmo espírito de modernização das estruturas. Teremos uma máquina menor, mais funcional, mais ágil, tocada por quadros qualificados.

Em muitos municípios, entre os 5.668, o discurso de avanços poderá dar o tom do novo ciclo político-administrativo que se inicia.

Não há mais condições para que velhas práticas da administração e da política continuem a ser usadas. Daí a necessidade de um choque de cultura. Os grupos que agem no entorno do Estado precisam mudar comportamentos.

As Centrais Sindicais constituem um exemplo. Parecem arremedos do sindicalismo de proveta. Lutam para receber contribuições cada vez mais gordas do sistema confederativo. E usam recursos para aumentar ricos patrimônios com imóveis e instalações suntuosas.

Os partidos políticos, por sua vez, haverão de ganhar escopos conceituais, de forma a criar e a preservar uma identidade.

Não são necessários mais que 10 a 15 partidos. Cláusulas de desempenho – votação acima de um teto em um determinado grupo de Estados - condicionarão sua existência. Sua participação nas administrações se faz necessária, até porque a meta de um partido é alcançar o poder. Mas os entes devem fazer indicações meritórias, quadros preparados e tecnicamente capacitados para exercer os cargos.

A responsabilidade no campo da administração pública se fará absolutamente necessária. De forma que serviços malfeitos, desleixo, apatia, desorganização, falta de zelo por parte dos gestores implicará seu imediato afastamento das estruturas públicas nos três níveis da administração – União, Estados e Municípios.

Transparência e controle – eis dois valores que haverão de ganhar força nos próximos tempos. A abertura dos canais da administração dará clareza aos contratos, propiciando disputas ordenadas por critérios de justiça. Controlar o fluxo e o cronograma de obras será fundamental para dar eficiência à administração pública, ao mesmo tempo em que aumentará o grau de confiança dos cidadãos em seus gestores.

Não há como inserir a tecla da “esquerda” nessa planilha de conceitos e valores. Por isso mesmo, sugere-se aos retardatários que ainda não chegaram ao século XXI, que despertem de seus sonhos. Parecem ter adormecido antes da queda do Muro de Berlim e ainda não despertaram. Abram os olhos antes que sejam jogados no monturo das coisas rotas e sem uso.

Nova era à vista

Anular o voto, segundo o meu amigo, é terceirizar a inteligência, “tem sempre algo de menos dramático a preferir entre um e outro”, e nesse sentido a escolha se faz um dever.

É nítido, neste momento histórico, que onde existe uma possibilidade eleitoral a favor da “novidade” e da capacidade de gestão, em contraposição à política que levou o Brasil à “falência”, o eleitor tende a embarcar na primeira. Foram poucas as candidaturas em 2016 com esse apelo, mas tiveram um elevado índice de sucesso.

Caso mais meridiano é o de João Doria, em São Paulo. Pegou o pouco de bom da tradição e se fartou de muita mudança e capacidade de gestão.

A ilustração de Emma Hanquist You've really taken my heart on a trip. Can I have it back now?:
Nunca foi tão difícil para políticos requentar as velhas propostas e discursos; os comícios foram ultrapassados em importância pelo Facebook, mais barato, de maior e mais contundente alcance.

Quem deixou de fazer carreatas economizou gasolina sem perder um voto, os candidatos mais atentos se esquivaram dessas e se deram bem. Quem usou a roupagem a rigor da política enfrentou desconforto.

O eleitor de 2016 é o mais revoltado das últimas décadas. Parece estar sofrendo na pele a catástrofe que assola o país e enxerga a razão disso na corrupção em suas multíplices formas adotadas pelos políticos.

O desemprego e a falta de atenção a educação, saúde e segurança devastaram o conceito de quem está nas proximidades do “poder”. E com razão! O povo sofre. Sofre muito e culpa quem está no poder.

Os partidos historicamente antagônicos nunca foram tão nivelados em mediocridade. Mais ou menos culpados, mais ou menos coniventes, os navegantes do poder estão ardendo na mesma frigideira e, autopsiados, revelam as mesmas causas internas de falência generalizada.

No debate da RedeTV! aqui, em BH, um deplorável encontro de “vale-tudo”, o candidato do PSDB negou seu padrinho, não respondeu às perguntas que afirmariam o apoio dele. Parecia como são Pedro na Quinta-Feira Santa ao ser interrogado pelos soldados romanos antes que o galo cantasse na madrugada. A expressão dele era aquela imortalizada no quadro “A Negação de Pedro”.

Nessa obra exibe-se o apóstolo com trepidação em sua expressão insegura. Seus olhos buscam – sem encontrar – a firmeza para se desvencilhar do que o levaria à desgraça. Provavelmente, no caso de João Leite, não seria uma perda, mas nitidamente estava temeroso e preparado para sair de uma ligação que até ontem era sua maior bandeira. Alexandre Kalil deu um “coice” no presidente de seu partido, PHS, “nunca o vi”, e ainda afirmou que se filiou a um partido porque de outra forma não poderia ser legalmente candidato.

Para atento observador, essas manifestações consolidam os fantasmas que aparecem no horizonte verde-amarelo. Nos últimos dias, a ficha caiu, e ninguém quer ser apadrinhado por quem quer que seja.

Repete-se o fenômeno que se seguiu à operação Mani Pulite, na Itália, e poderá ocorrer aqui, no Brasil, em decorrência da Lava Jato. Os partidos foram varridos lá, porque na Itália o sistema, que funcionava num clima saturado de corrupção, foi condenado como um todo.

A mudança é politicamente progressiva e sequencial. Previsível, apesar de incerto ser o prazo de execução do destino.

A eleição de 2018 ocorrerá à luz da legislação atual, a não ser que movimentos de ruas, empurrados por redes sociais, antecipem a ruptura do velho modelo, mas até lá muitos desaparecerão de cena.

A transição da velha para a nova política está para acontecer e se precipitar com a prisão de Eduardo Cunha, um meteorito que extinguirá o sistema jurássico.

João Doria, em São Paulo, antecipa a solidificação do magma que escorre da erupção em curso. Outra era está nascendo.

Os catedráticos em bandalheiras

Com a pretensão de ensinar aos brasileiros como devemos nos comportar diante da corrupção, esses catedráticos em bandalheira deram declarações esclarecedoras – e estarrecedoras – nos últimos dias. O ex-presidente Lula da Silva, por exemplo, assinou artigo no jornal Folha de S.Paulo no qual diz perceber “uma perigosa ignorância de agentes da lei quanto ao funcionamento do governo e das instituições”. Para o chefão petista, os delegados e promotores “não sabiam como funciona um governo de coalizão”. Infelizmente, a aula do mestre Lula terminou aí, mas os bons alunos haverão de entender a lição: a julgar pela experiência petista, um governo de coalizão funciona na base da compra, de preferência em dinheiro vivo, de apoio parlamentar, razão pela qual não é possível pensar num governo que arregimente apoio apenas na base de afinidade de ideias. Para Lula, é evidente que os agentes da lei tinham de saber disso.

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Movido pelo mesmo espírito didático, Eugênio Aragão, que foi ministro da Justiça do governo de Dilma Rousseff até o impeachment da presidente, deu uma entrevista à revista Carta Capital na qual se propôs a explicar aos cidadãos por que a corrupção não apenas é “tolerável”, segundo suas próprias palavras, como também, em certos aspectos, é positiva.

Como Lula, Aragão tratou de desqualificar os procuradores da República porque, segundo ele, desconhecem como funciona a corrupção. “Essa garotada do Ministério Público não tem a mínima noção de economia”, disse Aragão. Para ele, empresas pilhadas em corrupção, como aconteceu na Lava Jato, não deveriam ser punidas, porque, nesse caso, empresas estrangeiras tomariam seu lugar, roubando empregos dos brasileiros. “Aqui no Brasil a gente entrega nossos ativos com uma facilidade impressionante”, protestou Aragão. Os procuradores “não sabem como isso funciona” e “simplesmente botaram na cabeça uma ideia falso-moralista de que o País tem de ser limpo”, argumentou ele. Ora, diz o ex-ministro, “corrupção existe em todas as parte dos mundo” e “não é um problema moral, é sobretudo um problema estrutural simples”.

E a aula prosseguiu. A corrupção acontece, explicou Aragão, “quando os processos administrativos de decisão são bloqueados” e, para desbloqueá-los, “a empresa distribui dinheiro”. Ao “molhar a mão dos fiscais para isso ir mais rápido”, conforme argumentou o ex-ministro, a empresa consegue superar a burocracia “e entrar mais cedo como concorrente no mercado”, razão pela qual – atenção – “do ponto de vista econômico isso não é ruim, não”. Para Aragão, “a corrupção que, na verdade, serve como uma graxa na engrenagem da máquina, essa, do ponto de vista econômico, é tolerável”. E ele arremata: “A Lava Jato gaba-se de ter devolvido ao País R$ 2 bilhões. E quantos bilhões a gente gastou para isso? Do ponto de vista econômico, a conta não fecha”.

Portanto, não se trata de entender a corrupção como parte de um mundo naturalmente imperfeito. O que se tem aqui está em outro patamar: para essa turma, temos que aceitar que o combate à corrupção é indesejável e prejudica o País. Felizmente, os brasileiros estão a dizer claramente para esse pessoal, nas urnas e nos tribunais, o que pensam disso.

Impunidade de Renan consegue desmoralizar Executivo, Legislativo e Judiciário

O senador Renan Calheiros é o mais perfeito exemplo da desmoralização simultânea dos três Poderes da República. Sua inexplicável impunidade é uma afronta à cidadania e depõe contra o funcionamento das instituições brasileiras. A trajetória política dele mais parece uma folha corrida. Como conseguiu ser eleito senador após ter renunciado à presidência da Mesa Diretora para evitar cassação? Somente esse fato já mostra a falência da política nacional. E logo depois ele conseguiu voltar a ser presidente do Senado e entrou de novo na linha sucessória da República, vejam a que ponto de esculhambação chegamos.


Renan foi um dos homens de ouro do então presidente Fernando Collor e desde sempre esteve envolvido em corrupção. Em 2006, ficou provado que recebia mesada da empreiteira Mendes Júnior para sustentar uma filha fora do casamento, cuja mãe virou capa da Playboy. Para se defender, o senador então apresentou notas frias de falsas venda de gado. Nada, absolutamente nada, aconteceu a Renan, e o processo está prestes a prescrever no Supremo, que coleciona inquéritos e ações contra ele.

A impunidade de Renan Calheiros é imponderável, inaceitável e inacreditável. Não há explicação. E devemos lembrar que esse personagem marginal até chegou a ser ministro da Justiça no governo de Fernando Henrique Cardoso, que até hoje alimenta o sonho de voltar ao poder, era só o que faltava.

E agora a Folha de S. Paulo noticia que “após irritação de Renan, Temer discute operação com ministro da Justiça”, referindo-se à prisão do diretor da Polícia do Senado, Pedro Ricardo Araújo. Protegido de José Sarney e de Renan Calheiros, este servidor da República funciona como uma espécie de leão-de-chácara dos caciques do PMDB e de outros políticos de idêntica ideologia, digamos assim, como Gleisi Hoffmann (PT-PR), Fernando Collor (PTC-AL) e José Sarney (PMDB-AP).

Quer dizer que o presidente Michel Temer se reuniu com Alexandre de Moraes, ministro da Justiça, para criticar a operação da Polícia Federal no Senado e depois telefonar e se desculpar com Renan, que considerou abusiva a operação policial? Será que entendi bem a reportagem de Gustavo Uribe e Daniel Carvalho?
Os excelentes jornalistas da Folha revelaram também que na sexta-feira, horas depois da operação da Polícia Federal, o ministro Geddel Vieira Lima (Secretaria de Governo) foi um dos primeiros a entrar em contato com Renan.

Noticiaram também que a reação do presidente do Senado será abrir espaço para aprovar o projeto que estabelece punições a autoridades policiais e judiciais que cometerem abusos.

Quer dizer que é assim que funcionam as instituições? O presidente do Senado protege acintosamente notórios corruptos, como Collor, Sarney e Gleisi, mas o ministro Geddel e o presidente Temer consideram que isso é normal e até dão força ao meliante?
A incompreensível impunidade de Renan e seu prestígio na política conduzem a algumas conclusões:

1) O governo de Michel Temer continua refém dos caciques do PMDB, conforme temos noticiado aqui na Tribuna da Internet;

2) O Supremo não tem a menor condição de processar parlamentares e ministros corruptos, porque é conivente, omisso ou incapaz;

3) O foro privilegiado precisa acabar, o mais rápido possível, para deixar a primeira instância florescer;

4) Os três Poderes estão apodrecidos, como diz Caetano Veloso, e precisam ser lavados e enxaguados, como diria Odorico Paraguaçu, o genial personagem da peça “O Bem Amado”, que virou uma das melhores produções da TV Globo.

5) Tentar abafar a Lava Jato não passa de ilusão, porque é mais fácil o governo ser derrubado do que parar a nova geração que toca a Justiça Federal, a Procuradoria-Geral da República e a Polícia Federal.

6) Alguém tem alguma dúvida a respeito?

Piano no domingo

Tributo de Jon England tocando  os sucessos 
de Eddy Duchin e Carmen Cavallaro

Temer alista seu governo na infantaria de Renan

Às favas a lógica com o caso da Polícia Legislativa do Senado. Sob Renan Calheiros, montou-se nos porões do Poder Legislativo um departamento de bisbilhotagem. Com verba pública, adquiriram-se equipamentos de inteligência capazes de fazer e desfazer grampos e escutas ambientais. Às custas do contribuinte, policiais legislativos foram mobilizados para proteger senadores suspeitos de assaltar o Estado. Realizaram-se varreduras de escutas em gabinetes, residências funcionais e imóveis particulares —em Brasília e alhures. E Renan, em vez de ficar constrangido, está irritado.

Pilhado numa investigação de mostruário —nascida de uma delação, executada pela Polícia Federal, sob supervisão do Ministério Público Federal e com a anuência do Poder Judiciário—, o Senado reagiu com uma nota oficial assinada por seu presidente. Nela, Renan Calheiros defende as ações de quatro policiais legislativos presos e demarca o seu terreno: “As instituições, assim como o Senado Federal, devem guardar os limites de suas atribuições legais.” Beleza. Mas faltou responder: quem zelará pelo interesse público quando o Senado for utilizado como biombo para ilegalidades?

Depois de emitir a nota, Renan dedicou-se a uma de suas especialidades: a retaliação. Borrifou ameaças no ar. Fez saber ao Planalto que não gostou da entrevista na qual o ministro Alexandre Moraes (Justiça) justificou a operação montada para deter as extrapolações dos policiais legislativos. E voltou a brandir o projeto que pune os chamados abusos de autoridade. Renan faz dessa proposta uma espécie espada multiuso. Ora espeta os procuradores da força-tarefa da Lava Jato ora cutuca Sergio Moro. Revela-se capaz de tudo, menos de um autoexame que o faça enxergar seus próprios abusos.

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De repente, numa subversão da lógica, o Planalto deflagrou uma articulação para acalmar Renan. Coordenador político do governo, o ministro Geddel Vieira Lima tocou o telefone para o senador. O próprio Michel Temer adulou Renan com um telefonema. Antes, enquadrou o ministro da Justiça, convocando-o em pleno sábado para prestar informações sobre a operação em que a Polícia Federal, munida de cinco mandados judiciais de busca e apreensão e quatro ordens de prisão, recolheu equipamentos de espionagem do Senado e prendeu quatro policiais legislativos, entre eles o diretor da Polícia do Senado, Paulo Ivo Bosco Silva, homem de confiança de Renan.

Num par de telefonemas, o governo Michel Temer atravessou a Praça dos Três Poderes para se alistar na infantaria que, sob Renan Calheiros, é acusada de obstruir investigações que alvejam personagens como Fernando Collor, José Sarney, Edison Lobão Filho e Gleisi Hoffmann. O Planalto reforça seu alinhamento com Renan num instante em que a Lava Jato arromba o principal armário do imperador de Alagoas: a Transpetro.

O delator Felipe Rocha Parente, que se apresenta como entregador de propinas, revela aos investigadores os caminhos que a verba suja percorreu para migrar da subsidiária da Petrobras para os bolsos de pajés do PMDB. Estima-se que escoaram por esse duto pelo menos R$ 100 milhões em 12 anos. Desse total, Renam apropriou-se R$ 32 milhões, informou outro delator, o ex-presidente da Transpetro Sérgio Machado.

Compreende-se a irritação de Renan. Ele tem 32 milhões de motivos para espumar de raiva. Que conhece o senador sabe: é nos instantes em que está for a de si que ele mostra o que tem por dentro. O que parece incompreensível é o esforço que o governo empreende para demonstrar que é parte do problema. Não há governabilidade que justifique o erro político de reforçar a impressão de que Renan manda porque pode e o presidente da República obedece porque tem juízo. Dilma Rousseff mantinha com Lula um relacionamento do mesmo tipo. Deu em Michel Temer.

Quando se proibirá?

Toda miséria, toda brutalidade deviam ser proibidas como outros tantos insultos ao belo corpo da humanidade
Marguerite Yourcenar, "Memórias de Adriano"
Sebastiao Salgado - Workers:
Serra Pelada,Sebastião Salgado

O projeto das 10 Medidas, Moro e a trincheira da cidadania

A ministra Cármen Lúcia, em entrevista ao programa Roda viva desta semana, entre várias questões importantes de uma extensa pauta, declarou seu apoio ao projeto das 10 Medidas contra a corrupção, ainda que com ressalvas à viabilidade de algumas delas, que devem ser aperfeiçoadas pelos deputados da comissão, nesta próxima semana. Depois de mais de 60 convidados das mais diferentes áreas chamados a contribuir em audiências públicas, o relator da matéria, deputado Onyx Lorenzoni, formulará o relatório final que será lido entre os dias 1° e 7 de novembro. Isto se o grande inimigo da Lava Jato, o senador Renan Calheiros, não arranjar um meio de boicotar o projeto, como vem tentando. Ao ser perguntada, a ministra Cármen Lúcia questionou a oportunidade do projeto de lei sobre o abuso de autoridade contra promotores, juízes e demais agentes públicos patrocinado pelo senador, que quer votar essa lei como meio de engessar a Lava Jato ainda no mês de novembro. É uma corrida contra o tempo. E o senador quer juntar tudo no mesmo balaio: as 10 Medidas, o abuso de autoridade e a reforma política, sabe-se lá com que malévola intenção. Mas a ministra já se antecipou a esta contradança entre Legislativo e Judiciário: “O que se precisa perguntar é se há legitimidade nesta mudança ou se passa por análise de oportunidade e conveniência”, disse. “Precisa ser agora? O que motiva que tenha de ser agora?”, questionou. Numa entrevista ao Estadão, Deltan Dallagnol, autor do projeto das 10 Medidas, comentou ser “favorável à modernização da lei de abuso de autoridade, mas que as regras do projeto permitem que sejam interpretadas para punir policiais, procuradores, promotores e juízes que desempenham seu trabalho de modo legítimo”. Cabe lembrar que ainda em maio deste ano, Renan Calheiros e Romero Jucá foram flagrados em grampos telefônicos com o ex-presidente da Transpetro, Sérgio Machado, no que parecia ser uma conspiração para barrar a Operação Lava Jato.

Mas abençoado país que tem um Sergio Moro na trincheira da cidadania! Ainda nesta semana, depois de já ter participado de uma das audiências públicas na comissão especial das 10 Medidas, o juiz fez uma palestra definitiva no Congresso Brasileiro de Radiologia, com uma extensa exposição da Operação Lava Jato, frisando apenas os casos julgados, e de sua importância para a mudança de cultura política brasileira. Lembrou que, assim como na Operação Mãos Limpas da Itália da década de 1990, a investigação da Lava Jato começa em março de 2014 visando apurar nada além do que mais uma denúncia de lavagem de dinheiro, quando a PF tropeçou com a relação de um dos doleiros investigados com um alto diretor da Petrobras. Contas de empresas de fachadas recebiam volumosos depósitos de grandes fornecedores da estatal. Daí, para se chegar à corrupção política, foi uma mera questão do método adotado “siga o dinheiro”, quando o Ministério Público suíço resolveu abrir as contas e o diretor da Petrobras Paulo Roberto Costa colaborar. Moro lembra que corrupção política ocorre em qualquer país do mundo, mas não a corrupção sistêmica, quando era regra do jogo o pagamento de propinas de 1% a 3% do valor dos contratos, o que levou, já em 2015, a Petrobras a reconhecer R$ 6 bilhões de prejuízos em seu balanço oficial!

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Pawla Kuczynski
O que começa a fazer nexo para a maioria dos cidadãos é que a crise fiscal que culmina com 12 milhões de desempregados resulta também em péssimos serviços públicos nas áreas de seu interesse imediato, como educação, saúde, saneamento e segurança, e provém exatamente da corrupção sistêmica da política brasileira. Daí, a urgência das reformas política, da Previdência, trabalhista, da administração pública, e não apenas a da chamada PEC do teto de gastos. A corrupção sistêmica consiste no exercício da política como organização criminosa, uma Orcrim, como se passou a chamar a associação para o crime entre políticos e operadores, intermediários e empresários fornecedores do Estado, onde metade das comissões era pró “pessoal de casa”, metade era pró-políticos. E dos que não tinham foro privilegiado e foram sentenciados pelo juiz Moro, cinco eram ex-parlamentares, dos quais três já haviam sido condenados pelo STF desde o mensalão, e continuavam a receber propina do petrolão, mesmo depois de condenados. Daí a definição do juiz Moro como um caso de corrupção sistêmica. Para além, inclusive da Petrobras, alcançando outras empresas e autarquias que estão sendo investigadas em larga extensão da administração pública. Além dos custos sociais da depressão econômica, da fuga de investidores, da destruição do patrimônio público e da degradação da cultura política, temos a perda de confiança na democracia e na própria autoestima cívica do povo brasileiro. Já no fim de seu importante depoimento, o juiz Sergio Moro faz uma bela profissão de fé na democracia brasileira. Afirma que as coisas estão mudando e o mérito não é seu pessoal nem do seu juízo, mas institucional como do MPF, da PF, da Receita e outros órgãos que resolveram dar um basta e pagar para ver contra a cultura de impunidade dos detentores de poder. Para isto, a pressão da cidadania e o apoio das instâncias recursais superiores do Judiciário, como o Tribunal Federal da 4ª Região, o STJ e o próprio STF foram essenciais. Mais do que as campanhas das Diretas-já, o apoio das megamanifestações da sociedade desde 2013, foi essencial pra evitar a obstrução da justiça pelos poderosos. No caso da operação italiana Mãos Limpas, os políticos contra-atacaram com as mesmas leis sobre abuso de autoridade, da mesma forma como está acontecendo agora com as iniciativas de Renan e Jucá.

Essa é a tarefa dos cidadãos e da mídia. E que não é impossível de sucesso. O juiz Moro relembra do exemplo dos EUA no início do século passado, quando Theodore Roosevelt faz seu discurso de posse já em 1903, comparando o agente público corrupto ao pior dos delinquentes, pois prejudica toda a sociedade. E defende que a exposição e a punição pública, longe de abalar a confiança da sociedade, são uma honra para uma nação e não uma desgraça. Neste momento, Sergio Moro é aplaudido intensamente, o que dá a medida de que a cidadania tem, enfim, uma figura pública com quem se identificar. Embora lamente que as 10 Medidas infelizmente não tenham vindo do Legislativo, e sim do Judiciário com apoio da cidadania, Moro elogia com habilidade a instância maior do Judiciário quando o STF proíbe as doações eleitorais de empresas. E quando define a execução da pena em segunda instância ainda na semana passada, cuja regra passa a ser a execução e não a suspenção da pena. Pois o princípio da presunção de inocência não impede que nos EUA e na França, inclusive, se execute pena de prisão até mesmo na primeira instância. O que faz Moro é nos devolver o ânimo cívico com a convicção de que as 10 Medidas estão para ser aprovadas na comissão parlamentar. Até mesmo por que o Congresso Nacional precisa ser mais responsivo e recuperar seu prestígio social. Assegura sua esperança de que a corrupção sistêmica não pode ser encarada como uma fatalidade de nosso subdesenvolvimento político, como “uma doença tropical”. E faz uma vigorosa defesa da vitalidade da democracia brasileira que venceu, inclusive, a ditadura militar mostrando que o povo sabe, sim, votar. Como no caso da inflação que todos acreditamos poder superar e superamos. E o próprio enfrentamento da pobreza nos últimos anos. Portanto, chegou a hora de nossa quarta superação civilizatória que é de dar cabo à corrupção sistêmica da política nacional. E o papel da cidadania neste embate entre políticos investigados, de um lado, e agentes públicos empenhados na aprovação do projeto das 10 Medidas, ainda que com modificações, é que pode fazer a diferença. Nesse sentido é de registrar a intensificação das campanhas nas redes sociais de organizações e movimentos da sociedade civil mobilizando os cidadãos para monitorar e cobrar de seus representantes no Congresso Nacional uma clara posição de apoio ao projeto. Basta dar uma busca na internet sobre as “10 Medidas” e se verá o tamanho do “clamor das ruas”.

Jorge Maranhão

Imagem do Dia

Life on Earth on:
Vermont (Estado Unidos)

O sonho (errado) acabou

A prisão do companheiro Eduardo Cunha deixou aturdidos os heróis da resistência democrática. Como vão explicar isso em casa? Cunha era o grande vilão do golpe, a mente perversa que arquitetou a destituição da mulher honesta para entregar o poder aos brancos, velhos, recatados e do lar. A impunidade do Darth Vader do PMDB era o lastro da lenda, a prova de que estava tudo armado para arrancar do governo os quadrilheiros do bem.

Mas eis que Sérgio Moro, esse fascista que só persegue os bonzinhos, prende Cunha. E agora? É grave a crise. Eduardo Cunha era a reserva moral do PT. E do PSOL, da Rede e seus genéricos. Com a impunidade dele, você podia até defender Lula e Dilma numa boa, por mais que eles roubassem o Brasil na sua cara: bastava dizer que era contra o Cunha — o fiador do golpe, o homem do sistema. Mas que sistema é esse que põe seu articulador no xadrez?

Ficou confuso. Melhor tomar uma água de coco, que o sol está forte. Os juros começaram a cair depois de quatro anos. A inflação de outubro é a menor em sete anos, e ano que vem o desemprego começa a baixar. Isso não é mágica, é governo.

Temer faz parte da mobília antiga do PMDB, e não tem nenhuma bandeirinha simpática para acenar. Se aparecer em alguma negociata, adeus. Mas, ao assumir o Planalto, resolveu escalar os melhores para tomar conta do dinheiro. Banco Central, Tesouro, Fazenda, BNDES, Petrobras — todos sendo desinfetados pelos melhores cérebros, mundialmente reconhecidos.

Por que Michel Temer fez isso, e não simplesmente substituiu os parasitas esganados do PT pelos velhacos do PMDB? Não interessa, perguntem a ele. A vida no Brasil vai melhorar, e isso é muito grave. O que será daquelas almas puras que gritam “fora Te-er” e se tornam instantaneamente grandiosas?

O que será dos corações valentes que ficam bem na foto denunciando a entrega do país ao bando do Cunha? Talvez só uma Bolsa Psicanálise para fazer frente a tanto sofrimento. Na época do Plano Real foi igualzinho.

Na privatização da telefonia, que libertou a população dos progressistas retrógrados de sempre, esses mesmos que gritam contra o golpe (ou seus ancestrais) estavam lá nas barricadas — apedrejando quem chegava para os leilões. Eram os heróis da resistência democrática contra a ganância capitalista.

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Aí a privatização se consumou, a vida de todo mundo melhorou, e os heróis foram combinar a próxima narrativa — pelo celular. A eleição no Rio de Janeiro, terra de Eduardo Cunha, apresenta um fenômeno surpreendente. No primeiro turno, a cidade confirmou a sua vocação de oposição a si mesma. No segundo turno, Marcelo Crivella disparou. Como pode?

Gente esclarecida, eleitores de candidatos respeitáveis como Fernando Gabeira e que jamais votariam num bispo da Igreja Universal, cogitando votar em Crivella? Talvez a resposta seja simples: Marcelo Freixo é o candidato contra o golpe. O bom entendedor fez suas contas: o discurso que cultiva a mística de esquerda, à prova de vida real, é exatamente o que destruiu o país nos últimos 13 anos.

Freixo surgiu muito bem na vida pública. Fez um trabalho corajoso de denúncia das milícias, num tempo em que muitos as viam como justiceiras contra os traficantes. Se tornou personagem real de “Tropa de elite”, clássico extraído do trabalho excepcional de Luiz Eduardo Soares — acadêmico de esquerda que jamais sujeitou sua honestidade intelectual às místicas lucrativas. Já Freixo preferiu se tornar o personagem de si mesmo. Seria ótimo, se fosse de verdade. Falar a verdade dá trabalho.

O próprio Gabeira correu o risco do suicídio político algumas vezes, para não trair suas convicções. Primeiro a fazer a crítica da luta armada ainda em plena ditadura, apoiou a privatização da telefonia pelo governo FH — e na época era difícil ao eleitorado de esquerda ver aquilo como o melhor para a coletividade, e não uma traição neoliberal.

Depois desembarcou da base de Lula no auge, ao enxergar a putrefação do governo pré-mensalão: “sonhei o sonho errado”. As viúvas do governo que caiu de podre 13 anos depois disso ainda tentam ver em Dilma (se lembram dela?) uma vítima inocente da direita: preferem embelezar o pesadelo a parar de sonhar.

No Rio, o sonho errado ainda rende um bom mercado eleitoral. Na ânsia de cultivar essa mística revolucionária, Freixo estimulou protestos violentos (nega, mas estimulou) — logo ele, que denunciou as milícias sanguinárias. Apoiou sindicalistas que bloquearam o trânsito e engessaram a cidade.

Para vender o seu peixe humanista, ele prende e arrebenta — como diria o general Figueiredo. Infelizmente, ainda há quem escolha candidato pelo crachá de progressista ou conservador (no sentido de moderno ou retrógrado).

Então vamos lá, sem crachá: quem põe em risco seus votos para defender o bem comum, como fez Gabeira, é progressista; quem põe em risco o bem comum para defender seus votos, como faz Freixo, é conservador. E não adianta botar o Cunha no meio, porque agora ele está ocupado.

O anel de Cabral e o teleférico

A ruína do Rio de Janeiro deveria colocar o governo federal em estado de alerta. A cidade vive o colapso de seu aparelho de Segurança e do sistema público de Saúde. Só um milagre fiscal permitirá o pagamento do 13º salário aos servidores, e há escolas fechadas, hospitais mutilados e delegacias sem luz elétrica. O teleférico do Alemão está parado. Era o símbolo do Brasil de Lula e da gestão modernizadora de Sérgio Cabral.

As barcas cortaram viagens e a plutocracia dos ônibus não paga as multas que recebe. No meio desse caos, o empreiteiro Fernando Cavendish, queridinho do governo do estado e da prefeitura, contou que em 2009 pagou o equivalente a R$ 800 mil na joalheria Van Cleef de Mônaco para enfeitar Madame Sérgio Cabral (Madame Eduardo Cunha comprava seus enfeites na Tiffany de Nova York).

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O Rio sofre os efeitos de pelo menos cinco pragas. Os dois governos de Sérgio Cabral e a chegada de Pezão. O PMDB do Rio de Janeiro, partido de Cabral, Pezão, do prefeito Eduardo Paes, do deputado Jorge Picciani e de seu filho Leonardo, ministro de Michel Temer. Todos foram fiéis aliados de Eduardo Cunha. A gastança irresponsável e clientelista que expandiu em 50% as despesas com servidores em apenas cinco anos.

Gastaram o que não tinham e venderam a doce ilusão da Olimpíada do Rio. Da sua pira haveria de sair a candidatura de Eduardo Paes a governador ou, quem sabe, presidente da República. A roubalheira nas licitações de obras públicas foi tamanha que só em 2011, dois anos depois da compra do mimo para Madame Cabral, a Delta de Fernando Cavendish ganhou R$ 137 milhões em obras, sem o estorvo das licita ções. Sua carteira de negócios com o governo ia a R$ 1 bilhão.

A quinta praga chamou-se privataria. Cabral e Paes venderam a ideia de que uma nova forma de gestão mudaria a cara do Rio. Transferiram serviços públicos para empresas privadas. A opera- ção do teleférico do Alemão ficou com a Odebrecht e acabou na empresa do filho do presidente do Tribunal de Contas da União. Privatizações não levam necessariamente a desastres, mas a gestão privatista do PMDB do Rio não podia acabar em outra coisa.

Da Praça do Cassino, onde fica a Van Cleef de Monte Carlo, à Praça das Nações, em Bonsucesso, onde fica a estação de partida do teleférico do Alemão, viaja-se num bondinho que mostra a mistificação e as roubalheiras que infelicitam a cidade.

Éramos mais unidos aos domingos

As senhoras chegavam primeiro porque vinham diretas da missa para o café da manhã. Assim era que, mal davam as 10, se tanto, vinham chegando de conversa, abancando-se na grande mesa do caramanchão. Naquele tempo pecava-se menos, mas nem por isso elas se descuidavam. Iam em jejum para a missa, confessavam lá os seus pequeninos pecados, comungavam e depois vinham para o café. Daí chegarem mais cedo.

Os homens, sempre mais dispostos ao pecado, já não se cuidavam tanto. Ou antes, cuidavam mais do corpo do que da alma. Iam para a praia, para o banho de sol, os mergulhos, o jogo de bola. Só chegavam mesmo — e invariavelmente atrasados na hora do almoço. Vinham ainda úmidos do mar e passavam a correr pelo lado da casa, rumo ao grande banheiro dos fundos, para lavar o sal, refrescarem-se no chuveiro frio, excelente chuveiro, que só começou a negar água do Prefeito Henrique Dodsworth pra cá.
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O casarão, aí por volta das 2 horas, estava apinhado. Primos, primas, tios, tias, tias-avós e netos, pais e filhos, todos na expectativa, aguardando aquela que seria mais uma obra-mestra da lustrosa negra Eulália. Os homens beliscavam pinga, as mulheres falando, contando casos, sempre com muito assunto. Quem as ouvisse não diria que estiveram juntas no domingo anterior, nem imaginaria que estariam juntas no domingo seguinte. As moças, geralmente, na varanda da frente, cochichando bobagens. Os rapazes no jardim, se mostrando. E a meninada, mais afoita, rondando a cozinha, a roubar pastéis, se fosse o caso de domingo de pastéis.

De repente aquilo que Vovô chamava de “ouviram do Ipiranga as margens plácidas”. Era o grito de Eulália, que passava da copa para o caramanchão, sobraçando uma fumegante tigela, primeiro e único aviso de que o almoço estava servido. E então todos se misturavam para distribuição de lugares, ocasião em que pais repreendiam filhos, primos obsequiavam primas e o barulho crescia com o arrastar de cadeiras, só terminando com o início da farta distribuição de calorias.

Impossível descrever os pratos nascidos da imaginação da gorda e simpática negra Eulália. Hoje faltam-me palavras, mas naquele tempo nunca me faltou apetite. Nem a mim nem a ninguém na mesa, onde todos comiam a conversar em altas vozes, regando o repasto com cerveja e guaraná, distribuídos por ordem de idade. Havia sempre um adulto que preferia guaraná, havia sempre uma criança teimando em tomar cerveja. Um olhar repreensivo do pai e aderia logo ao refresco, esquecido da vontade. Mauricinho não conversava, mas em compensação comia mais do que os outros.

Moças e rapazes muitas vezes dispensavam a sobremesa, na ânsia de não chegarem atrasados na sessão dos cinemas, que eram dois e, tal como no poema de Drummond, deixavam sempre dúvidas na escolha.

A tarde descia mais calma sobre nossas cabeças, naqueles longos domingos de Copacabana. O mormaço da varanda envolvia tudo, entrava pela sala onde alguns ouviam o futebol pelo rádio, um futebol mais disputado, porque amador, irradiado por locutores menos frenéticos. Lá, nos fundos os bem-aventurados dormiam em redes. Era grande a família e poucas as redes, daí o revezamento tácito de todos os domingos, que ninguém ousava infringir.

E quando já era de noitinha, quando o último rapaz deixava sua namorada no portão de casa e vinha chegando de volta, então começavam as despedidas no jardim, com promessas de encontros durante a semana, coisa que poucas vezes acontecia porque era nos domingos que nos reuníamos.

Depois, quando éramos só nós — os de casa — a negra Eulália entrava mais uma vez em cena, com bolinhos, leite, biscoitos e café. Todos fazíamos aquele lanche, antes de ir dormir. Aliás, todos não. Mauricinho sempre arranjava um jeito de jantar o que sobrara do almoço.
Sérgio Porto (Stanislaw Ponte Preta)