domingo, 23 de outubro de 2016

O projeto das 10 Medidas, Moro e a trincheira da cidadania

A ministra Cármen Lúcia, em entrevista ao programa Roda viva desta semana, entre várias questões importantes de uma extensa pauta, declarou seu apoio ao projeto das 10 Medidas contra a corrupção, ainda que com ressalvas à viabilidade de algumas delas, que devem ser aperfeiçoadas pelos deputados da comissão, nesta próxima semana. Depois de mais de 60 convidados das mais diferentes áreas chamados a contribuir em audiências públicas, o relator da matéria, deputado Onyx Lorenzoni, formulará o relatório final que será lido entre os dias 1° e 7 de novembro. Isto se o grande inimigo da Lava Jato, o senador Renan Calheiros, não arranjar um meio de boicotar o projeto, como vem tentando. Ao ser perguntada, a ministra Cármen Lúcia questionou a oportunidade do projeto de lei sobre o abuso de autoridade contra promotores, juízes e demais agentes públicos patrocinado pelo senador, que quer votar essa lei como meio de engessar a Lava Jato ainda no mês de novembro. É uma corrida contra o tempo. E o senador quer juntar tudo no mesmo balaio: as 10 Medidas, o abuso de autoridade e a reforma política, sabe-se lá com que malévola intenção. Mas a ministra já se antecipou a esta contradança entre Legislativo e Judiciário: “O que se precisa perguntar é se há legitimidade nesta mudança ou se passa por análise de oportunidade e conveniência”, disse. “Precisa ser agora? O que motiva que tenha de ser agora?”, questionou. Numa entrevista ao Estadão, Deltan Dallagnol, autor do projeto das 10 Medidas, comentou ser “favorável à modernização da lei de abuso de autoridade, mas que as regras do projeto permitem que sejam interpretadas para punir policiais, procuradores, promotores e juízes que desempenham seu trabalho de modo legítimo”. Cabe lembrar que ainda em maio deste ano, Renan Calheiros e Romero Jucá foram flagrados em grampos telefônicos com o ex-presidente da Transpetro, Sérgio Machado, no que parecia ser uma conspiração para barrar a Operação Lava Jato.

Mas abençoado país que tem um Sergio Moro na trincheira da cidadania! Ainda nesta semana, depois de já ter participado de uma das audiências públicas na comissão especial das 10 Medidas, o juiz fez uma palestra definitiva no Congresso Brasileiro de Radiologia, com uma extensa exposição da Operação Lava Jato, frisando apenas os casos julgados, e de sua importância para a mudança de cultura política brasileira. Lembrou que, assim como na Operação Mãos Limpas da Itália da década de 1990, a investigação da Lava Jato começa em março de 2014 visando apurar nada além do que mais uma denúncia de lavagem de dinheiro, quando a PF tropeçou com a relação de um dos doleiros investigados com um alto diretor da Petrobras. Contas de empresas de fachadas recebiam volumosos depósitos de grandes fornecedores da estatal. Daí, para se chegar à corrupção política, foi uma mera questão do método adotado “siga o dinheiro”, quando o Ministério Público suíço resolveu abrir as contas e o diretor da Petrobras Paulo Roberto Costa colaborar. Moro lembra que corrupção política ocorre em qualquer país do mundo, mas não a corrupção sistêmica, quando era regra do jogo o pagamento de propinas de 1% a 3% do valor dos contratos, o que levou, já em 2015, a Petrobras a reconhecer R$ 6 bilhões de prejuízos em seu balanço oficial!

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Pawla Kuczynski
O que começa a fazer nexo para a maioria dos cidadãos é que a crise fiscal que culmina com 12 milhões de desempregados resulta também em péssimos serviços públicos nas áreas de seu interesse imediato, como educação, saúde, saneamento e segurança, e provém exatamente da corrupção sistêmica da política brasileira. Daí, a urgência das reformas política, da Previdência, trabalhista, da administração pública, e não apenas a da chamada PEC do teto de gastos. A corrupção sistêmica consiste no exercício da política como organização criminosa, uma Orcrim, como se passou a chamar a associação para o crime entre políticos e operadores, intermediários e empresários fornecedores do Estado, onde metade das comissões era pró “pessoal de casa”, metade era pró-políticos. E dos que não tinham foro privilegiado e foram sentenciados pelo juiz Moro, cinco eram ex-parlamentares, dos quais três já haviam sido condenados pelo STF desde o mensalão, e continuavam a receber propina do petrolão, mesmo depois de condenados. Daí a definição do juiz Moro como um caso de corrupção sistêmica. Para além, inclusive da Petrobras, alcançando outras empresas e autarquias que estão sendo investigadas em larga extensão da administração pública. Além dos custos sociais da depressão econômica, da fuga de investidores, da destruição do patrimônio público e da degradação da cultura política, temos a perda de confiança na democracia e na própria autoestima cívica do povo brasileiro. Já no fim de seu importante depoimento, o juiz Sergio Moro faz uma bela profissão de fé na democracia brasileira. Afirma que as coisas estão mudando e o mérito não é seu pessoal nem do seu juízo, mas institucional como do MPF, da PF, da Receita e outros órgãos que resolveram dar um basta e pagar para ver contra a cultura de impunidade dos detentores de poder. Para isto, a pressão da cidadania e o apoio das instâncias recursais superiores do Judiciário, como o Tribunal Federal da 4ª Região, o STJ e o próprio STF foram essenciais. Mais do que as campanhas das Diretas-já, o apoio das megamanifestações da sociedade desde 2013, foi essencial pra evitar a obstrução da justiça pelos poderosos. No caso da operação italiana Mãos Limpas, os políticos contra-atacaram com as mesmas leis sobre abuso de autoridade, da mesma forma como está acontecendo agora com as iniciativas de Renan e Jucá.

Essa é a tarefa dos cidadãos e da mídia. E que não é impossível de sucesso. O juiz Moro relembra do exemplo dos EUA no início do século passado, quando Theodore Roosevelt faz seu discurso de posse já em 1903, comparando o agente público corrupto ao pior dos delinquentes, pois prejudica toda a sociedade. E defende que a exposição e a punição pública, longe de abalar a confiança da sociedade, são uma honra para uma nação e não uma desgraça. Neste momento, Sergio Moro é aplaudido intensamente, o que dá a medida de que a cidadania tem, enfim, uma figura pública com quem se identificar. Embora lamente que as 10 Medidas infelizmente não tenham vindo do Legislativo, e sim do Judiciário com apoio da cidadania, Moro elogia com habilidade a instância maior do Judiciário quando o STF proíbe as doações eleitorais de empresas. E quando define a execução da pena em segunda instância ainda na semana passada, cuja regra passa a ser a execução e não a suspenção da pena. Pois o princípio da presunção de inocência não impede que nos EUA e na França, inclusive, se execute pena de prisão até mesmo na primeira instância. O que faz Moro é nos devolver o ânimo cívico com a convicção de que as 10 Medidas estão para ser aprovadas na comissão parlamentar. Até mesmo por que o Congresso Nacional precisa ser mais responsivo e recuperar seu prestígio social. Assegura sua esperança de que a corrupção sistêmica não pode ser encarada como uma fatalidade de nosso subdesenvolvimento político, como “uma doença tropical”. E faz uma vigorosa defesa da vitalidade da democracia brasileira que venceu, inclusive, a ditadura militar mostrando que o povo sabe, sim, votar. Como no caso da inflação que todos acreditamos poder superar e superamos. E o próprio enfrentamento da pobreza nos últimos anos. Portanto, chegou a hora de nossa quarta superação civilizatória que é de dar cabo à corrupção sistêmica da política nacional. E o papel da cidadania neste embate entre políticos investigados, de um lado, e agentes públicos empenhados na aprovação do projeto das 10 Medidas, ainda que com modificações, é que pode fazer a diferença. Nesse sentido é de registrar a intensificação das campanhas nas redes sociais de organizações e movimentos da sociedade civil mobilizando os cidadãos para monitorar e cobrar de seus representantes no Congresso Nacional uma clara posição de apoio ao projeto. Basta dar uma busca na internet sobre as “10 Medidas” e se verá o tamanho do “clamor das ruas”.

Jorge Maranhão

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