quinta-feira, 20 de setembro de 2018

Medo e indignação

Está bem claro que nesta eleição vai se decidir contra alguma coisa, e não por alguma coisa. A maioria do eleitorado é a cara do fenômeno dos dispostos a romper “com o que está aí”. Provavelmente, encerra-se o período histórico iniciado com a saída do regime autoritário e a promulgação da Constituição de 1988. As grandes forças e o sentido político que se sobressaem nesta reta final da eleição claramente consideram obsoletos os sistemas político e boa parte das instituições que ali se consolidaram.


Alguns elementos que indicam o futuro próximo são bastante óbvios. A tendência do eleitorado em direção a figuras autoritárias é o mais notável desses elementos. O líder das pesquisas, Jair Bolsonaro, diz que resolve tudo praticamente no tapa, enquanto a agremiação política que parece, no momento, a que vai disputar o segundo turno com ele, o PT da corrupção, é o símbolo perfeito para a constatação de que enorme número de brasileiros não entende quais ideias erradas, entre elas a de que vontade política tudo resolve, levaram o País ao desastre. Estamos presenciando o enterro do “sonho” social-democrata tipo punho de renda do tucanato. O que havia de social-democracia no PT já havia sido sepultado pela avalanche de corrupção, cinismo e mentira.
Não existe neste momento um “centro”. O eleitorado raivoso clama por uma solução rápida – que a magnitude dos problemas enfrentados sugere ser impossível, mas não importa. Esse mesmo espírito do “vamos chutar o pau da barraca” prefere sonhar com passos para conter a crise que venham de fora da política, ou que sejam anunciados como soluções vindas de “fora do sistema”. Em outras palavras, e isso é bastante preocupante, há uma enorme aceitação da promessa de se resolver questões (como o déficit fiscal, que criaria perdedores por toda parte) sem considerar a necessidade de compromissos e de articulação política muito mais abrangentes do que conseguir 308 votos para maiorias na Câmara dos Deputados.

Há uma imensa desconfiança em relação às instituições e uma das mais recentes a serem devastadoramente atingidas é a da imprensa em geral, e dos grandes grupos de comunicação televisiva em especial. É assombroso como o jogo se inverteu, e em que velocidade: atacar esses colossos que antes eram capazes de determinar o futuro de políticos é o que hoje confere estatura a políticos, e vários se dedicam com êxito a lucrar em prestígio e simpatia no eleitorado fazendo uso em causa própria dessa espantosa perda de credibilidade (em boa medida, por cegueira política e covardia de dirigentes).

Numa sociedade com índices espantosos de violência, e alguns sinais graves de anomia (como na greve dos caminhoneiros), não deveria causar espanto algum a força com que medo e indignação empurram a candidatura de Jair Bolsonaro – e um atentado ter influenciado tanto a disputa.

Não me parece que o ex-capitão seja o criador da onda que está surfando – até agora com boa vantagem sobre os rivais. Talvez ele seja a expressão acabada de que o bom mocismo, o politicamente correto tivessem sido apenas delírios de elites dedicadas a si mesmas e vivendo em bolhas confortáveis em meio a um país pobre, desigual, ignorante e atrasado (basicamente as mesmas mazelas enfrentadas pela geração que escreveu a Constituição de 88). 

O atraso, o retrocesso, o desastre e os malefícios trazidos durante os 13 anos de populismo irresponsável do lulopetismo já conhecemos bastante bem. Para onde vamos agora é uma completa incógnita. O que sairá do que acredito ser a destruição da política brasileira tal como a conhecemos por mais de 30 anos ninguém sabe.

Brasil do eterno condenado


O PT e os outros

O Brasil está dividido entre o PT e os demais partidos. Desde 1989, quando Lula foi para o segundo turno na primeira eleição direta depois da ditadura de 1964, o PT consegue ser majoritário na captação dos votos da esquerda. Foi assim nas duas eleições seguintes, quando Lula perdeu no primeiro turno para Fernando Henrique Cardoso mas chegou em segundo lugar, e depois nas quatro que o PT ganhou. O Brasil é PT ou não é. Nos últimos 16 anos tem sido.

No começo, quando perdia eleições, o PT ainda não havia conseguido pintar sua imagem como a do partido da inclusão social, era apenas de esquerda. Na primeira eleição este papel coube ao caçador de marajás, e nas outras duas foi cumprido pelo criador do Real. Somente depois de Collor e FHC, o PT conseguiria somar ao seu eleitorado de esquerda aqueles que queriam e os que precisavam de um Brasil mais justo.


O PSDB, que havia conduzido com sucesso um dos mais importantes programas de distribuição de renda do mundo, não conseguiu capitalizar o Plano Real e deixou-se transformar aos olhos dos eleitores num partido da elite branca. Cometeu muitos erros, como o da polêmica emenda da reeleição, que contribuíram para que a sigla que construiu a estabilidade da economia acabasse com a imagem de partido paulista.

O “nós contra eles” não foi uma invenção de Lula, existe desde a primeira eleição presidencial. O que Lula fez foi dar uma coloração de classe ao termo. O “nós” são os pobres e as minorias, e o “eles” são os ricos. Discurso simples para um eleitor majoritariamente simples. Discurso que funciona. Embora não seja o único, claro que o PT é um partido preocupado com os mais pobres. O programa Bolsa Família foi o mais inclusivo da história do país, e o PT soube se valer dele politicamente.

Os demais partidos de esquerda viraram satélites. O PSDB, que depois de FHC perdeu quatro vezes para Lula, conseguiu atrair alguns partidos de centro, não todos. O maior deles, o MDB, ficou com o PT nas duas últimas eleições. Outros partidos de centro e de direita transitaram entre PSDB e PT ao longo dos últimos 16 anos. O PT foi mais competente. Apesar dessa miscigenação ideológica, os militantes orgânicos só enxergam o espectro de esquerda, e os eleitores não militantes só veem Luiz Inácio Lula da Silva quando miram o PT.

A campanha deste ano, ao que tudo indica agora, seguirá o mesmo roteiro, com a diferença que o PSDB perdeu seu protagonismo para Jair Bolsonaro. Dois episódios fundamentais da campanha ajudaram a impulsionar o capitão e o petista indicado por Lula. Bolsonaro foi esfaqueado enquanto era carregado nos ombros por eleitores, e Fernando Haddad recebeu a bênção de um ex-presidente preso que reconstruiu sua imagem de corrupto em mártir, injustiçado e perseguido.

É isso o que temos e com isso precisamos nos habituar. Resta saber se a habilidade política do PT será suficiente para ganhar a eleição no segundo turno. É verdade que a subida de Haddad nas pesquisas só ocorreu agora porque antes o candidato era Lula. Tem que se levar isso sempre em conta, mas é fato também que nunca, desde 2002, o PT esteve tão mal nesta fase da campanha. A corrupção ainda pode cobrar sua conta.

Nos quatro pleitos que ganhou, Lula e Dilma lideravam a corrida a esta altura da campanha. Em 2002, na pesquisa Ibope de 17 de setembro, Lula tinha 48% das intenções de voto. Em 2006, no dia 16 de setembro, Lula alcançava 42%. Na eleição de 2010, Dilma tinha 51% da preferência em 17 de setembro. Na sua reeleição, no dia 16 de setembro de 2014, a liderança de Dilma era mais apertada, com 36%, mas ainda assim quase o dobro do que Haddad tem agora.

O PT provou amplamente sua competência, tem seus principais líderes condenados e presos por corrupção, inclusive Lula, mas segue vivo na campanha. O PSDB, por sua vez, comprovou sua fama de incompetente político. Perdeu para Lula quando ele estava nas cordas do mensalão. Perdeu de Dilma quando seus sinais de fadiga já eram evidentes. E agora perde seu lugar na disputa para um novato em eleições presidenciais. E talvez perca também sua hegemonia paulista.

O PT continua, não se sabe até onde. O PSDB acabou de desembarcar.

Polarização acentua trinca que divide o Brasil

Juntos, o líder e o vice-líder da corrida presidencial somaram 47% das intenções de voto no Ibope mais recente —Bolsonaro com 28%, Haddad com 19%. Cristalizou-se a polarização: o anti-PT contra o petista. Somando-se as taxas atribuídas aos outros presidenciáveis e o índice dos sem candidato, verifica-se que 52% dos eleitores estão, por enquanto, fora da polarização. Esse é o retrato de uma sociedade trincada.

O Brasil a ser administrado pelo presidente que tomará posse em 1º de janeiro de 2019 é um país de ponta-cabeça. O Executivo está quebrado. O Legislativo, pulverizado. O Judiciário, abarrotado de escândalos por julgar. Esse já não é um cenário de fundo do poço. O Brasil se encontra num poço sem fundo.

Mantido o Fla-Flu, quem não morre de amores pelo capitão nem sonha com a volta da turma do presidiário terá de se posicionar. Muita gente votará em Haddad para evitar Bolsonaro. Outra parte optará pelo anti-PT para esconjurar o preposto de Lula. A preferência será substituída pela exclusão.

O Brasil é, hoje, um belo ponto no mapa, ideal para reerguer uma nação. Isso exige união. O problema é que a polarização deve produzir não um presidente, mas um herói vingador que os pára-choques de caminhão xingarão 15 dias depois da posse.

Inundações no rio Amazonas pioram nos últimos 30 anos

As inundações no rio Amazonas se tornaram mais frequentes e graves nos últimos 30 anos, segundo com um estudo realizado por cientistas brasileiros, chilenos e britânicos. Os pesquisadores apontam o aquecimento global como uma das causas deste fenômeno.

Para o estudo publicado nesta quarta-feira na revista especializada Science Advances, os pesquisadores analisaram os registros diários do nível do leito do Amazonas feitos no porto de Manaus há 113 anos.


Os dados mostram que enchentes acima de 29 metros, valor de referência para que as autoridades decretassem estado de emergência, ocorriam uma vez a cada 20 anos na primeira metade do século 20. Atualmente, esse tipo de inundação ocorre a cada quatro anos.

"O que realmente chama a atenção no histórico de registros é a gravidade e a frequência de inundações. Com poucas exceções, houve inundações extremas na bacia do Amazonas todos os anos entre 2009 e 2015", disse o autor da pesquisa Jonathan Barichivich, da Universidade Austral do Chile.

Segundo o estudo, o aumento das enchentes está relacionado a mudanças no sistema de circulação do ar movido pelo oceano, que influencia o clima e a quantidade de chuvas na região dos trópicos. Essa mudança foi causada pelo forte aquecimento do Oceano Atlântico e o resfriamento do Pacífico, o que aumentou a precipitação na bacia Amazônica.

"O efeito é mais ou menos o oposto do que acontece durante o El Niño. Ao invés de causar seca, resulta numa maior convecção e precipitação intensa nas regiões central e norte da bacia Amazônica", afirmou Manuel Gloor, da Escola de Geografia da Universidade de Leeds, no Reino Unido, coautor do estudo.

As causas do aquecimento do Atlântico não estão totalmente esclarecidas, porém, além da variabilidade natural, as mudanças climáticas influenciam esse fenômeno. Como resultado do aquecimento global, os cinturões de vento de média e alta latitudes no Hemisfério Sul têm se deslocado mais para o sul, o que abriu espaço para que as águas quentes do Oceano Índico sejam transportadas da ponta da África, através da corrente das Agulhas, para o Atlântico tropical.

Os cientistas indicam que as mudanças nos ciclos da água na bacia do Amazonas tiveram sérias consequências para os moradores de Brasil, Peru e outros países da região. O estudo aponta ainda que as inundações devem continuar ocorrendo nos próximos anos.

De acordo com o coautor do estudo Jochen Schöngart, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), as enchentes podem prejudicar o abastecimento de água, espalhar doenças, além de destruir casas e meios de subsistência.

O pesquisador destacou que com esses dados é possível aperfeiçoar os modelos de previsão de cheias na Amazônia Central e elaborar políticas públicas para mitigar os impactos das enchentes em regiões urbanas e rurais.
Deutsche Welle

Imagem do Dia

Cido Oliveira

O rancor petista virou veneno

Para quem joga numa eleição radicalizada, Fernando Haddad foi um colaborador impecável ao deixar a carceragem de Curitiba depois de visitar Lula. Ele definiu o papel do ex-presidente no governo que pretende fazer:

“Temos total comunhão de propósitos em relação a ele e o diagnóstico de que o Brasil precisa do nosso governo e precisa do Lula orientando como um grande conselheiro. Ele é um interlocutor permanente de todos os dirigentes do partido e nunca deixará de ser. Não temos nenhum problema com isso. Enquanto os outros partidos escondem os seus dirigentes, nós temos muito orgulho de ter o Lula como dirigente.”

Essa declaração poderia ter sido planejada pelo estado-maior de Jair Bolsonaro ou pelos urubus golpistas que pretendem deslegitimar uma eventual vitória da chapa petista.

Horas antes, em São Paulo, durante a sabatina da Folha/SBT/UOL, Haddad dissera algo racional, sem a soberba do comissariado:

“O presidente Lula, sem sombra de dúvida, na opinião da maioria dos brasileiros, foi o maior presidente da história deste país. Ele é um grande conselheiro e terá um papel destacado em aconselhamento, em falar de sua experiência. Jamais dispensaria a experiência do presidente Lula.”

Uma coisa é elogiar Lula e seus oito anos de governo. Bem outra é dizer que “não temos problema com isso”. Deviam ter, pois Lula está na cadeia, condenado por corrupção.

Milhões de eleitores estão dispostos a votar em Haddad porque ele é o candidato de Lula, mas quando se dá a um detento a condição de pai da pátria, estimula-se a dúvida em quem espera de uma vitória de Haddad a volta dos “bons tempos”, mas também teme que ela traga de volta o que há de pior no comissariado.
O consulado petista teve duas faces, a do progresso com Lula, e a do regresso com Dilma Rousseff, a da atenção para o andar de baixo e a das roubalheiras com o andar de cima. Oferecer as duas ao eleitorado num combo rancoroso é soberba.

Não se pode saber de onde está saindo o rancor petista. Pode ser que venha da inconformidade de Lula, ou ainda do interesse radical de uma parte do PT. Venha de onde vier, tornou-se um veneno que produz dois efeitos. O primeiro é o estreitamento da base eleitoral de Haddad, mas sempre se poderá dizer que uma eventual vitória transformará esse erro em asterisco. No seu segundo efeito, o modelo do “conselheiro” reforça as ameaças à sobrevivência das instituições democráticas. Não é preciso ser um gênio para se perceber que há um farfalhar golpista no ar. Bolsonaro, como Donald Trump, diz que teme uma fraude na contagem eletrônica dos votos. (Trump ganhou e não tocou mais no assunto.) O general Hamilton Mourão sonha com uma nova Constituição, redigida por sábios e sagrada num plebiscito. Coisa parecida, recente e próxima, só em 2007, na Venezuela.

Se houver um segundo turno entre Haddad e Bolsonaro, e o capitão reformado vier a prevalecer, será o jogo jogado. Se Haddad sair vencedor, a tese da vitória sem legitimidade irá para a mesa. A teoria do “conselheiro” serve à sua retórica.

As vivandeiras civis associadas à anarquia militar contestaram a legitimidade eleitoral em 1889 e em 1930 (com sucesso), em 1950 (fracassando até 1954, quando Getúlio Vargas matou-se) e em 1955 (com a teoria da falta de maioria absoluta de Juscelino Kubitschek). Coisa do século passado? Em 2014, Aécio Neves contestou a vitória de Dilma Rousseff. Depois, contou que a iniciativa foi uma “molecagem”, para “encher o saco”. Vá lá.

Que se recupere a dignidade

Precisamos de uma carta digital que recupere a dignidade humana e pensar em uma renda básica para as profissões que serão devoradas pelas novas tecnologias
Byung-Chul Han

O irredutível

Mesmo tendo a consciência de que vou entrar num terreno movediço, a conjuntura me leva a abordar o irredutível.

O inarredável é a porta fechada à tranca. É o que não tem jeito ou remédio. O “The End” que nos obriga a sair do escurinho do cinema para a clareza cruel da vida. Como dizia Tia Amália para quatro meninos ouvintes nas tardes de chuva nas quais eram reduzidos a ficar em casa para não pegar pneumonia: “Acabou-se a história!”.

O irredutível fala de intenções e tentações. Ele também é uma óbvia ou oculta baliza social. O irredutível quarto escuro cheio de fantasmas volta a ser um rotineiro aposento quando a luz se acende! O pesadelo no qual o diabo surge em todo o seu poder simplesmente desaparece quando acordamos. Viver o “noves fora, zero!” ou perder uma eleição é passar pelo irredutível.

Reduzir faz parte do vezo ocidental. A água é redutível à combinação de moléculas de hidrogênio e oxigênio. Mas a liquidez ultrapassa o materialismo molecular. Basta recordar, com o antropólogo Leslie White, como um gesto transforma o líquido definido pela química numa alegórica e possante “água benta”. Por outro lado, um filtro a transforma em “água potável”; ao passo que o fogo produz “água destilada”. Colocado diante de copos com água benta, potável e destilada, beberíamos, com toda a certeza, o da água potável. A água assentada para beber que, mais além, não se confunde com a famosa “água que passarinho não bebe”...

Isso nos remete à variedade dos irredutíveis. Seria possível dizer que “cada sociedade tem o irredutível que merece?” — e que esse limite é o que produz sua singularidade ou colorido? E que quase sempre é reduzido a um estereótipo, tipo: os ingleses são fleumáticos; os franceses são refinados, e os americanos são chatos porque não mentem? Enquanto nós somos avessos ao trabalho porque fomos fabricados por “raças inferiores”?

O irredutível é o tido como natural — os homens são de Marte; as mulheres, de Vênus —; ele é o ponto, o dogma e o tabu. Em muitos casos, é o impensável e o antilógico cimentador do senso comum. Não brinque com fogo! Respeite a mulher alheia! Não beba demais!

Antes do advento da antropologia social (quando o mundo era grande), os irredutíveis dos outros eram tidos como heréticos, atrasados e primitivos. Talvez nem existissem...

Mas, na verdade, todo mundo tem seus irredutíveis. Decifrá-los é traduzi-los. Mas tome cuidado porque quando se questiona um irredutível, ele pode virar tabu; pode reafirmar-se como um dogma ou surgir na forma de uma crença. Antigamente, a crença e a fé surgiam no campo religioso. Num mundo sem Deus, porém, elas viram radicalismos que exigem fidelidade absoluta. Morrer por alguma coisa faz suspeitar que essa coisa seja um irredutível.

Todo radicalismo é irremível ou um resistente a outra linguagem. Seu absolutismo recusa a possibilidade de ele ser expresso num outro código. O irredutível recusa traduções.

Conhecer uma pessoa é ter acesso aos seus irredutíveis. Saber do que ela gosta, conhecer seus hábitos e valores.

Quais seriam os irredutíveis do Brasil lido como sociedade e cultura? A falta de gestão eficiente, privilégios além da conta, desperdícios de toda ordem, mentiras como credo, total ausência de senso de realidade, gastos excessivos e, por fim, mas não por último, o flagelo da corrupção que substituiu o dragão inflacionário. No espaço de uma croniqueta, esses são alguns irredutíveis conscientes.

Mas e os que nem são percebidos? Como o viés hierárquico que nos torna alérgicos a toda norma igualitária ou meritocrática e faz com que tenhamos duas faces? Uma para os nossos e outra para os outros? Afinal, como dizia um grande ator político, temos todas as coragens, menos a coragem de recusar o pedido de um amigo. Estaria nesse jogo contraditório o nosso irredutível?

Esse triste silêncio dos 50 milhões de jovens brasileiros

Há 50 milhões de jovens no Brasil, e seu silêncio é triste e assustador. O país atravessa uma crise grave, que ameaça seus princípios democráticos e as liberdades conquistadas com duros sacrifícios, e esse sangue jovem parece adormecido. Uivam as sirenes dos alarmes do ódio, e na rua emudecem as vozes dos jovens que deveriam querer um Brasil que ouça sua voz, com maior espaço para seus sonhos, que sempre são os de liberdade e de felicidade.


O paradoxo é que, segundo um estudo da Secretaria Nacional da Juventude (SNJ) da Presidência da República, 9 de cada 10 jovens brasileiros “acreditam ter capacidade de mudar o mundo”. E gostariam de mudá-lo. Sabem, entretanto, que não conseguirão fazer isso sozinhos, e sim pelas mãos de quem ponha fé neles, sem vontade de manipulá-los nem intoxicá-los, deixando que expressem o melhor de si mesmos.

Talvez os jovens se calem porque sabem que os mais velhos, que são os que deveriam aproveitar sua capacidade de querer melhorar o mundo, perderam a fé neles. Quando se acredita neles, esses jovens se entregam e respondem com o entusiasmo dos que ainda não foram poluídos pelo veneno do pessimismo.

Pôde-se ver isso, por exemplo, dias atrás, na Sicília, onde milhares de jovens, crentes e agnósticos, se entusiasmaram com um discurso do papa Francisco, que aos seus 80 anos soube tocar as melhores fibras dessa multidão à qual o futuro pertence. “Não olhem a vida pela janela. Não se coloquem na rabeira da História. Sejam os protagonistas”, disse-lhes, eletrizando-os.

Alertou a não ficarem parados nem mudos, a “sujar as mãos”, já que, citando Pirandello, recordou-lhes que “a vida não se explica, vive-se”. E é justamente em tempos de crise, observou Francisco, que os jovens “não devem se resignar e devem empreender o caminho”.

Por que não se veem no Brasil líderes capazes de dizer a esses milhões de jovens, com autoridade e credibilidade, que deixem de olhar a vida pela janela? Que saiam à rua para oferecer o que eles ainda não perderam, como sua fé no futuro, sua convicção de que são capazes de mudar o mundo, se os deixarem, se tiverem espaço, se forem ouvidos, respeitados, amados?

Leio que muitos desses jovens brasileiros se preparam para votar no mês que vem em candidatos a presidente que colocam sua fé na violência das armas, que querem amordaçar os direitos e as liberdades que os jovens cultivam mais que os mais velhos, porque fazem parte da sua essência. Os jovens deveriam, no entanto, abominar as correntes com as quais a intolerância das ideologias pretende atá-los.

Não por caso, segundo o relatório do SNJ, o conceito mais valorizado pelos jovens brasileiros, depois do estudo, é a “liberdade de expressão”, a possibilidade de poder manifestar o que sentem e amam, assim como o que condenam e desprezam. Se é assustador saber que há jovens dispostos a votar em candidatos alérgicos aos valores que eles mais amam, é também que não haja líderes capazes de entusiasmar esses milhões de jovens, reconhecendo seu direito, como fez o papa Francisco, de “sujar as mãos”, de perder o medo de errar, desde que sendo fiéis ao que acreditam e amam.

Ao Brasil, neste momento crítico para sua democracia e seu futuro, não faltam jovens com vontade de abrir novos espaços de liberdade, de semear nos caminhos do país mais marcos de diálogo que cadáveres de desilusão e de medo. O que falta são líderes que não os condenem a serem abandonados. Falta-lhes quem faça profissão de fé no que o coração de todo jovem ama antes de ser envenenado pelo cansaço dos que perderam a fé em si mesmos.

Esses líderes que preferem os jovens “olhando a vida pela janela” acreditam só na caricatura do medo com a qual se disfarçaram. Tomara que os jovens, sobretudo os que irão pela primeira vez exercer seu direito democrático nas urnas, saibam distinguir o trigo do joio. Saibam desmascarar esses falsos profetas da violência e do pessimismo, que são mais um tropeço que um impulso em suas vidas ainda por escrever.

A esses jovens, que são maioria entre os leitores deste jornal, e muitos leem espanhol, estes versos do grande poeta uruguaio Mario Benedetti que revela suas angústias e seus desejos:
No te rindas, por favor, no cedas.
Aunque el frío queme, aunque el miedo muerda, aunque el sol se ponga y se acalle el viento, aún hay fuego en tu alma, aún hay vida en tu seno…
Abrir las puertas, quitar los cerrojos, bajar el puente y cruzar el foso, abandonar las murallas que te protegieron, volver a la vida y aceptar el reto.
[Não se renda, por favor, não ceda.
Mesmo que o frio queime, mesmo que o medo morda, mesmo que o sol se ponha e se acalme o vento, ainda há fogo em sua alma, ainda há vida em seu seio…
Abrir as portas, tirar os ferrolhos, baixar a ponte e cruzar o fosso, abandonar as muralhas que lhe protegeram, voltar à vida e aceitar o desafio.]
Juan Arias