domingo, 18 de outubro de 2020

Haja formicida!


Pouca saúde e muita saúva os males do Brasil são
Mário de Andrade - Macunaíma

Os despudorados

Tem tudo para figurar em lugar de destaque da antologia política nacional a história do senador Chico Rodrigues (DEM-RR), flagrado pela Polícia Federal (PF) com dinheiro vivo na cueca durante uma batida. Se serve para alimentar a conversa de bar e as piadas de duplo sentido nas redes sociais, o episódio deveria na verdade envergonhar todos os brasileiros, a começar pelo presidente da República, Jair Bolsonaro, não somente pelo contexto constrangedor do flagrante em si, mas principalmente por envolver um parlamentar que era um dos líderes do governo no Congresso e por integrar um escândalo de desvio de dinheiro destinado ao combate à pandemia de covid-19.

Contudo, o presidente Bolsonaro limitou-se a dizer: “Aconteceu esse caso, lamento”.

Bolsonaro dedicou-se muito mais a tentar se desvencilhar do escândalo. “O que dói é você trabalhar igual a um desgraçado e uns idiotas te acusarem de corrupção”, declarou o presidente a simpatizantes. Em outra oportunidade, disse: “Esse caso não tem nada a ver com o meu governo. Meu governo são os ministros, as estatais e os bancos oficiais”. Atribuiu a escolha do senador Chico Rodrigues como vice-líder do governo no Senado a “líderes partidários”.


Não se sabe a que “idiotas” o presidente fez referência, mas o fato é que ninguém sério acusou o governo de corrupção, ao menos por ora. Contudo, também é fato que o presidente precisa escolher melhor suas companhias, especialmente aquelas que representarão o governo em posições de destaque, como era o caso do senador Chico Rodrigues.

De nada adianta Bolsonaro dizer que a ação da polícia contra o senador “é a comprovação da continuidade do governo no combate à corrupção em todos os setores da sociedade brasileira, sem distinção ou privilégios”, como ressaltou a Presidência em nota oficial.

Por essa lógica, as administrações petistas também teriam que ser louvadas por “combater” a corrupção, em vista das inúmeras diligências da PF contra corruptos que integravam ou orbitavam o governo na época. Aliás, até o discurso é o mesmo. Em 2015, quando o País começou a tomar conhecimento da extensão do petrolão, esquema bilionário de desvios da Petrobrás em favor do PT e de partidos governistas, a então presidente Dilma Rousseff disse que seu governo tinha a “coragem” de enfrentar a corrupção, ao promover uma legislação para endurecer penas e combater a impunidade de quem embolsa recursos públicos.

Trata-se, obviamente, de uma retórica mambembe. Se o presidente Bolsonaro está mesmo interessado em combater a corrupção e de não se ver identificado com o que há de pior na política brasileira, então deve começar a se cercar de gente mais qualificada.

O senador Chico Rodrigues é amigo de Bolsonaro há duas décadas. O presidente já chegou a dizer que mantinha com o parlamentar “quase uma união estável”, e o senador emprega em seu gabinete um primo dos filhos de Bolsonaro, para fazer sabe-se lá o quê. É desses parlamentares inexpressivos que se tornam mais conhecidos pelos escândalos em que se envolvem do que pelos serviços prestados.

Enquanto aceitar alegremente a companhia de políticos desse naipe, dos quais o Centrão está cheio, o presidente Bolsonaro continuará a ver seu governo sob suspeita, e suas juras de combate à corrupção serão consideradas tão autênticas quanto as dos petistas quando se emporcalhavam em traficâncias.

O problema é de origem. Bolsonaro é egresso do mesmo baixo clero que produz os tipos que se contentam com rachadinhas e quejandos. Rebaixou a Presidência ao nível dessa ralé política, que nem escândalos dignos do nome conseguem produzir – em vez de roubalheira na maior estatal do País, como fizeram os sofisticados petistas, entregam-se a afanar salários de funcionários fantasmas e a guardar dinheiro nas partes íntimas.

O aviltamento da política, que sob o petismo causou revolta, sob o bolsonarismo causa profunda vergonha. O episódio do dinheiro na cueca de um senador amigo do presidente e vice-líder do governo é, em muitos aspectos, uma ilustração adequada disso.

O risco pós-covid

O governo está encrencado, com dinheiro curto, grandes empréstimos perto de vencer, Orçamento emperrado e dívida pública batendo em 100% do PIB. Os credores sabem disso, quem empresta ao Tesouro exige prêmios maiores e há fortes sinais de inquietação no mercado. Mas o presidente, seus ministros “políticos” e os aliados presidenciais parecem surdos e olham para outro lado, como se finanças públicas fossem um assunto abstruso, abstrato e muito distante do dia a dia. Pior para o Brasil, esse enorme país em torno do Distrito Federal. Quando um governo quebra, a conta mais pesada – com desemprego e outros apertos – vai para quem batalha duramente para garantir o feijão com arroz, o aluguel, os cadernos das crianças e algumas prestações.

Dívidas de R$ 643 bilhões, mais que o dobro da média dos últimos cinco anos, devem vencer entre janeiro e abril. Em quatro meses será preciso pagar 15,4% da dívida interna. Com gastos muito maiores por causa da pandemia, o Executivo precisou buscar mais empréstimos e preferiu operações com prazos mais curtos, para evitar juros maiores. Mas prazos mais curtos – e muito curtos, no caso brasileiro – tornam a dívida mais perigosa. Em 2021 a economia avançará em marcha lenta e isso limitará a arrecadação, mas os gastos obrigatórios continuarão em alta.



Para enfrentar o aperto o Tesouro terá de ir ao mercado, mas as condições para rolar a dívida e conseguir mais empréstimos poderão ser piores, se os financiadores tiverem menos confiança na solvência do setor público. Sinais de insegurança quanto à evolução das contas oficiais têm sido fortes há alguns meses. São perceptíveis nas oscilações do mercado financeiro, nas advertências de investidores e analistas e na dificuldade crescente para colocação de títulos federais. O Banco Central (BC) tem dirigido alertas frequentes ao Executivo, até agora sem resultado.

As condições de financiamento poderão piorar se as notas de crédito do Brasil forem rebaixadas. Uma advertência ainda suave partiu há poucos dias da Moody’s, uma das principais agências de classificação. Ao decidir manter a nota, há alguns meses, a agência levou em conta as necessidades de maiores gastos e mais empréstimos neste ano, mas com a condição de um esforço de ajuste logo em seguida, disse na quarta-feira a vice-presidente e analista da Moody’s, Samar Maziad.

O Brasil está dois níveis abaixo do grau de investimento. As três maiores agências – Moody’s, Fitch e Standard & Poor’s – tiraram o chamado selo de bom pagador no fim do governo da presidente Dilma Rousseff e depois ainda voltaram a rebaixar a classificação do País. O Executivo deveria levar a sério o risco de um novo rebaixamento.

Medidas eleitoreiras, voltadas para a disputa de 2022, estão entre as preocupações apontadas por analistas e investidores. A evidente concentração do presidente na busca da reeleição justifica o temor. Além disso, a equipe econômica se limita a reafirmar a promessa de retomar o ajuste fiscal e manter a pauta de reformas, sem apresentar um programa de ação. Não há plano de sustentação da economia nem sinais de como se pretende arrumar as finanças públicas.

A dívida oficial, com maior peso e menor prazo, é, no entanto, só uma parte dos problemas. O teto de gastos para 2021 deve ser baseado na inflação de 2,13% correspondente aos 12 meses até junho. Mas a alta de preços ganhou impulso e chegou a 3,14% no período terminado em setembro. Isso afetará, entre outras variáveis, a correção do salário mínimo e aumentará as pressões sobre os gastos públicos. Segundo relatório do BTG Pactual obtido pelo Estadão/Broadcast, será preciso cortar R$ 20 bilhões do gasto federal para evitar o estouro do teto.

Parte do aumento da inflação é atribuível ao dólar. Também isso remete à insegurança em relação às contas públicas e à solvência do Tesouro, temas obviamente ligados à campanha presidencial pela reeleição. Passado o choque da pandemia, os objetivos pessoais do presidente são a maior ameaça às contas públicas do Brasil.

Pensamento do Dia

 


Bolsonaro propõe corte de um bilhão de reais em compra de livros e reforma escolar para turbinar obras

Menos educação, mais obras. Esta é tendência sinalizada pelo Governo de Jair Bolsonaro, que oficializou no final da semana passada sua intenção de cortar 1,4 bilhão de reais do orçamento do Ministério da Educação e destinar parte deste dinheiro para bancar obras ainda em 2020. Cerca de 70% deste valor, 1 bilhão de reais, seriam retirados da educação básica, para o ensino de crianças. Estão sob risco a reforma ou construção de escolas, a compra de livros didáticos, os programas de educação em tempo integral e de inovação tecnológica. São alguns dos pontos que haviam sido alvo de promessas de mais recursos durante a campanha presidencial de Bolsonaro em 2018. 

Anualmente, o Governo compra cerca de 130 milhões de livros e, conforme o último planejamento, havia a previsão de implantar a escola em tempo integral em ao menos 102 novas unidades de ensino pelos próximos quatro anos. 



Os detalhes sobre os cortes dos recursos constam de um projeto de lei em que o Executivo pede aos congressistas autorização para abrir créditos suplementares de 6,1 bilhões de reais. Recém-chegada ao Legislativo, a proposta ainda pode ser modificada pelos parlamentares, mas já indica qual é o rumo que o presidente quer dar para o fim deste ano, quando pretende anunciar uma série de obras de infraestrutura de olho na segunda metade de seu mandato e, consecutivamente, na campanha à reeleição em 2022. 

Com o futuro remanejamento destes recursos, os ministérios que mais se beneficiariam seriam o do Desenvolvimento Regional, que receberia 2,3 bilhões de reais, e o da Infraestrutura, 1,05 bilhão de reais. E o que mais perderia, seria exatamente o da Educação. As alterações orçamentárias têm sido discutidas há pelo menos 40 dias em Brasília. 

Quando soube da possibilidade de ter seu orçamento para educação básica retalhado, o ministro Milton Ribeiro procurou o Palácio do Planalto para tentar impedir. Não teve sucesso. O corte nesta área já vinha sendo monitorado por especialistas e ONGs que atuam no setor. Ao longo de 2020, a organização Todos Pela Educação vinha notando uma baixa execução orçamentária do MEC, ou seja, que a pasta segurava os recursos que já tinha autorização para gastar. Na prática, isso sinalizava que, quando o Governo tivesse necessidade de readequar custos, esta área poderia ser uma das mais afetadas. O que agora se confirmou. 

Antes mesmo dos cortes se configurarem, o orçamento do MEC hoje é o menor desde 2012. No mês passado, durante audiência em uma comissão parlamentar no Congresso, Ribeiro disse que o corte lhe “entristeceu”. Sem dar nomes, afirmou que seus antecessores não empenharam nem executaram os valores como deveriam para garantir os recursos e que o Governo faria as mudanças porque era necessário honrar emendas feitas pelos parlamentares no Orçamento Geral da União. 

Antes de Ribeiro, passaram pela pasta Abraham Weintraub e Ricardo Velez. “O povo da economia, que quer economizar de todo jeito, viu que tinha um valor considerável praticamente parado no segundo semestre e simplesmente estendeu a mão, mudou a rubrica e tirou da gente”, explicou. Questionado pelo EL PAÍS sobre como pretendia garantir os pagamentos previstos na área de educação básica, o MEC não se manifestou. 

Os cortes foram sugeridos pela Junta de Execução Orçamentária, um colegiado composto por três ministros: Paulo Guedes (Economia), o general Walter Braga Netto (Casa Civil) e o general Luiz Eduardo Ramos (Governo). Os dois militares são defensores do maior gasto público para estimular a economia. Tem como seu principal aliado interno, o ministro Rogério Marinho (Desenvolvimento Social). 

Conforme a proposta, além da Educação, os outros órgãos que mais perdem recursos são: a Economia (615,6 milhões de reais), a Cidadania (385,2 milhões), a Defesa (330 milhões), a Justiça e Segurança Pública (300 milhões) e o Turismo (148,7 milhões). Por outro lado, os ministérios que mais receberiam essa redistribuição de valores, além do Desenvolvimento Regional e da Infraestrutura seriam: Minas e Energia (286,6 milhões); Saúde (243,6 milhões) e Agricultura (50,5 milhões). 

O pano de fundo destes cortes é a briga entre dois grupos do Governo Bolsonaro. Um, liderado pelo ministro do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho, que com apoio da ala militar quer estimular a economia com grandes obras - e dando força ao projeto que realoca recursos de áreas como a educação para essas obras públicas. O outro, que tem como seu principal representante o ministro da Economia, Paulo Guedes. Este entende que o correto é manter a austeridade e, portanto, o teto de gastos públicos. 

Na sexta-feira passada, os conflitos entre os grupos foram a público. Com acusações de parte a parte. Marinho disse que Guedes o surpreendeu negativamente, enquanto que o chefe da Economia afirmou que seu colega de esplanada era desleal. Antes, o embate de Guedes era com o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ). Eles estavam rompidos há pelo menos três meses. Mas, como ambos são defensores do teto de gastos e não receberam nenhuma sinalização de Bolsonaro sobre este tema, decidiram se reconciliar. O risco que corriam era que, em confronto, dificilmente conseguiriam manter o mecanismo, que tem como objetivo evitar que o gasto público seja maior do que o do ano anterior. 

Entre assessores do Palácio do Planalto, a expectativa é que o presidente se manifeste sobre a questão econômica nesta semana. A ideia é dar uma sinalização ao mercado financeiro que tem notado uma falta de credibilidade de Guedes e que ele estaria sendo abandonado por Bolsonaro.

Programa Nacional de Extermínio

O governo atual incentiva o ingresso em terras indígenas, a ocupação ilegal de terras, e a Funai não faz nada. E não adianta os indígenas correrem para a Funai porque a Funai "corre com eles”.
(...) O governo não está falhando, está intencionalmente tentando destruir os povos indígenas. E isso é genocídio. 

Entre a obrigação e a devoção

Sou grata ao presidente Fernando Henrique Cardoso por ele ter sabido escolher um time de primeira linha para dar ao Brasil o que nunca tivemos: o real, enfim uma moeda.

Acabar com a inflação indecente e cruel de tantos anos foi, depois das leis sociais de Getúlio Vargas, o melhor que nos aconteceu.

Sou grata a ele por ter escolhido um excelente ministério, formado por pessoas de qualidade. Sou grata a ele pelos celulares e telefones que hoje são arroz de festa na casa dos brasileiros. Sou grata a ele pela demonstração que deu ao passar a faixa ao Lula e pelo respeito ao processo democrático, coisa ainda rara entre nós.

Assim como não posso deixar de ser grata aos militares por terem nos proporcionado a possibilidade de falar ao telefone entre os estados sem ter que marcar dia e hora, pegar o telefone e discar do Rio para São Paulo ou Recife assim como quem ligava do Centro para Copacabana, só quem experimentou o drama que eram as comunicações nas décadas anteriores, pode compreender.

Ou como deixar de ser grata ao governador Carlos Lacerda por ter resolvido o gravíssimo problema da falta d’ água no Rio? Ou por ter ligado a Zona Norte à Zona Sul? Só quem viveu no Rio onde de dia faltava água e de noite luz e onde, para ir do Maracanã ao Leblon, era uma longa excursão, pode compreender.

Todos esses foram perfeitos estadistas? Não, longe disso. Alguns até pelo contrário, como os militares ou Lacerda, francamente, que Deus os tenha em sua santa misericórdia.

Como em tudo mais, no comando da nação nem todos foram inteiramente maus, nem inteiramente bons. Todos fizeram algum bem e algum mal ao Brasil. Houve erros e acertos. Outro exemplo: a um grande democrata que nos governou, Juscelino, devemos Brasília. Pois é.



O presidente Lula, por sua vez, acertou ao manter a política econômica do governo anterior. Foi bem sucedido ao adotar os programas sociais que encontrou e dar força e amplitude a eles. Foi parte do que prometeu, e cumpriu. Mas, e as outras promessas? O tal país do futuro? Cadê?

Em seu governo camadas inteiras da sociedade brasileira, antes excluídas do mercado consumidor, passaram a ter acesso a bens de consumo como equipamentos eletrônicos, TVs de alta tecnologia, carros, viagens, etc.

Através da concessão de linhas de crédito e de programas sociais que ele só fez ampliar, mas não controlou, o governo Lula criou também uma ilusão coletiva de falsa prosperidade.

Com isso, a nova classe média, a quem falta o principal, educação, passou a acreditar que ascendeu socialmente. A casa pode não ter esgoto, a rua estar um caco, a escola não ensinar, o hospital, quando existe, pode não ter médicos, “mas eu posso entrar nas Casas Trololó e comprar uma TV de 42 polegadas".

O mais grave é que a nenhuma dessas pessoas, nessas condições, ocorre que, de uma maneira geral, sem saneamento básico, saúde e educação, sua vida não melhorou de forma substantiva.

A ninguém parece ocorrer, também, que um dia a conta disso tudo vai chegar. A herança maldita que o Brasil começa a receber é essa: o simulacro de prosperidade, sem lastro em um verdadeiro progresso.

Fui reler os artigos que tenho enviado ao Blog do Noblat desde 2005. E dei de cara com esse de 2013. Pois é. A conta chegou. E veio com juros estratosféricos. Dinheiro temos. E muito. Onde está? Na vida do povo? Em seu bem estar, em sua saúde? Não, caro Leitor, está nas rachadinhas. Nas das Assembleias Legislativas e, mais recentemente, nas verdadeiras, as que se escondem entre as nádegas de alguns.

Conselho de amiga: use luvas ao manusear seu dinheiro. Cuide-se!

Lições sobre a fome

Caros brasileiros,

quando o Programa Alimentar Mundial da ONU foi agraciado com o Prêmio Nobel da Paz na semana passada, fiquei realmente contente. E, imediatamente, pensei no Brasil.

Pensei num Brasil que, junto com outros 12 países, foi premiado pela Organização das Nações Unidas para Alimentação e a Agricultura (FAO) em dezembro de 2014 pelo seu êxito do combate à fome. Num Brasil que conseguiu sair do vergonhoso Mapa da Fome da ONU.

Pensei em José Francisco Graziano da Silva, ex-ministro de desenvolvimento social e combate à fome. Graziano ficou mundialmente conhecido pelo programa Fome Zero e, em consequência disso, foi nomeado diretor executivo da FAO em 2011 e reeleito para o cargo em junho de 2015.

Pensei também no médico Josué de Castro. Em 1946, ele publicou o livro Geografia da fome, que mostrou as razões da fome epidêmica naquela época em Recife. E claro, pensei no ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que foi o primeiro presidente no Brasil a ter passado fome e que fez da luta contra esse flagelo um programa de governo.

Mas justamente num momento de crise econômica e no meio de uma pandemia, esse Brasil se despediu do combate global à fome. É difícil acreditar que o país, um dos maiores produtores de alimentos no mundo, seja agora um dos menores doadores na luta contra a fome.


Conforme mostra o ranking das contribuições ao WFP, a maior agência humanitária do mundo, as doações do Brasil entre 2016 e 2020 somam apenas 18,94 milhões de dólares. Com isso, o Brasil ocupa somente o 44º lugar entre os 134 países do ranking. Pior: ele fica atrás de países pobres, como Burundi (19 milhões de dólares), Moçambique (40 milhões), Bangladesh (57 milhões) Colômbia (60 milhões) e Malawi (116 milhões).

Confesso que só durante o tempo que vivi no Brasil me deparei com as implicações gigantes e o sofrimento causados pela fome. Numa visita a um hospital de Recife em 1992, aprendi que, naquele tempo, 15% das crianças que nasciam em hospitais públicos tinham peso abaixo do normal. Aprendi também que, por causa da fome epidêmica, tinha surgido uma "geração de nanicos" em várias regiões do Nordeste.

Mas foi no Brasil também que aprendi que o combate à fome não é somente uma questão de dinheiro, mas sim de vontade política. Nos tempos de Josué de Castro, as populações periféricas de Recife, por exemplo, usavam 70% de sua renda para alimentação. Por causa dos programas de transferência de renda e de cisternas no sertão, a situação foi aliviada.

Justamente um dos estados mais pobres do Brasil, o Ceará conseguiu reduzir a mortalidade infantil em mais de 30% nos anos 90. O segredo desse sucesso foi a transformação de mais de 4 mil mulheres do interior em agentes de saúde.

Essas mulheres visitaram, de bicicleta ou a pé, todas as grávidas e mães nas suas regiões e as ensinaram os primeiros cuidados com higiene e alimentação. Incentivaram-nas a amamentar e vacinar as suas crianças. Com isso, a subnutrição e a mortalidade infantil caíram. O programa, chamado "Viva Criança", foi premiado pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef).

O ex-arcebispo emérito de Recife e Olinda Dom Hélder Câmara (1909-1999) considerou a fome uma "ofensa a Deus". "Quando dou comida aos pobres chamam-me de santo. Quando pergunto por que eles são pobres chamam-me de comunista" é uma de suas frases mais famosas. Eu me pergunto então: por que continuamos ofendendo Deus?
Astrid Prange de Oliveira