quarta-feira, 11 de outubro de 2017


Adoradores do infortúnio

O Supremo e o Congresso transbordam contradição. Poderiam ser dois Poderes essenciais à renovação da vida democrática se deixassem o País suspender a credulidade pelo período fracassado. Há uma impressão de que o discernimento da sociedade não interessa quando a autoridade gasta seus defeitos supondo ter qualidades superiores às de quem critica. O Brasil não pode sucumbir ao sintoma de transtorno patriótico que a influência desses dois maus terapeutas institucionais anda favorecendo. Um Poder que não se arrepende de falar não sabe a hora de calar. A metáfora negativa de segredo e vaidade domina. Nem na guerra a ira no ofício se aconselha.

Será que chegamos ao vaticínio do presidente Harry Truman: “Quer um amigo em Washington? Arranje um cachorro”?

O modelo econômico ainda não domina, mas se recompõe. Se, por um lado, diminuiu a percepção de risco na atividade econômica – a convergência de inflação e juros baixos pontifica, os fluxos de capital internacional retomam sua rotina em direção ao País, os níveis de inadimplência estão estáveis, o consumidor recupera sua confiança e volta ao mercado, a incerteza empresarial quanto a investimento arrefece, o índice de desemprego começa a recuar, na vida de quem trabalha e produz riqueza os pepinos estão sendo provisionados; por outro, o modelo político é o velho que não mais predomina, inapto para a responsabilidade coletiva. O descontrole da voracidade está levando muito tempo a passar porque o Supremo escolheu o governo para pôr canga e, assim, esfregar urtiga na mudança.

Charge O Tempo 11/10/2017

Essa acentuada intensidade para influenciar errado, e a superstição jurídica que a alimenta, submete a vida a uma hierarquia de interesses oficiais que não dá folga aos brasileiros. Estamos presos a uma teia de aranha nascida da falta de ordem do Estado, que age como se fosse diretor de teatro, distribuísse os papéis e a posição de cada um no espetáculo. Quem se queixa da intenção excessiva é informado de que aderiu inconscientemente ao script. Ninguém é o que é. Cumpre ter paciência e agradecer. Como espectador desprezível de tempo passado que não passa, o povo é da peça a aflição.

O esforço da maioria dos brasileiros em manter sua independência, ser dono do próprio negócio, ter autonomia, esbarra sempre na conspiração da autoridade para se oferecer como refúgio de amigos. Perdão, Marx, mas aqui o ópio do povo é o Estado.

Todos os que brincavam de ser justos, imersos em seu cânone de sucesso, deveriam recear o incômodo que causam à Justiça. Os erros se acumularam e suas falanges se infiltraram na alma das decisões. Em que esferas invisíveis andam formando opinião nossos juízes? Quem cava o poço profundo do subterrâneo de onde saem as atitudes de nossos políticos?

A amizade de muitos membros do Legislativo e do Judiciário por si mesmo tem levado a Constituição a viver essa vida melancólica de rainha desrespeitada. Nunca foi possível dizer “a Constituição é”. Na cultura jurídica atual ninguém é seu filho. Nossas autoridades preferem ser descendentes de quem as nomeou e, talvez sem se dar conta, aplicam os arquétipos da amizade às suas decisões. Esse sentimento preexiste às normas. O afeto que serve de escada ao poder, a circunstância que produz simpatia/antipatia, é tutelar, mais do que as leis estáveis. Sua consciência é inapreensível. Aquoso e verboso, o ministro conjuntural é um escavador de temporais. Seu compromisso com o passado preenche o presente e o definha.

Onze juízes nomeados, vitalícios, recebem, de 50 senadores eleitos, amedrontados, o engano lícito que enterra numa noite dois Poderes entupidos de apetite avinagrado. A primeira turma de um deles, fanáticos para equilibrar o jogo político usando o erro do senador caído, contorna a lei com a matemática. Servem aos seus fantasmas e, como se fosse um deles o porteiro, abriu a Corte a fatalidade de negar sua condição de poder superior. Usando ferramenta de casa já quebrada, conscientes de que o medo de políticos processados oferece imensidades à visão ilimitada de poder, empilham réus ao deus-dará.

A função do conhecimento é diminuir a força da opinião. É preciso superar o governo improvisador, considerado genial, ousado, carismático. Bravata é ranço e o ranço se acumula e logo se revela.

Seguimos confortáveis e desatentos ao que acontece. A política, como está, não é mais a corneteira da alvorada. Fizeram-se a vã-guarda do passado. Seu escombro serve a dois líderes da tropa dos improvisadores, desbocados e caluniosos que só crescem se cresce a violência. Um criou do outro a moldura, são estatistas fanáticos, esquerda/direita. A cara do conflito mais velho da política, o fundo do poço. E como em todo fundo, sempre existe um fundo mais baixo assim. Não sendo líderes livres de preconceito, não querem que ninguém seja. Freiam a mudança, são espora no cavalo de raça que é a razão. Seguram a rédea do senso comum, tiram a grandeza da Justiça para não deixar o passado clarear. Quarados ao sol, passarão. Pois um se decapitou, mas ainda não lhe cortaram a cabeça. O outro pede para ser degolado, fantasma de uniforme que usa de tempos em tempos o corpo de alguma mula sem cabeça.

Um êxito errado, festejado como humanitário, prejudica a análise do período. O alívio temporário do sofrimento e a devoção excessiva ao arranjo político sem princípio agravou a injustiça estrutural e produziu consequências funestas na análise política de longo prazo. Foi um tempo em que predominou o tratamento errado de erros, levando a sociedade a demorar a notar que sem amparar economicamente ninguém será soerguido socialmente.

Se alguém chega ao poder é porque existe algo... algo de bom, algo de podre. Quando sai, pela forma como sai, os fatos nos comunicam alguma coisa, feridas curadas, sintomas de doenças represadas ou silenciosamente alimentadas. Se o STF, o Poder que decifra a Constituição, por motivos políticos não consegue fazer a coisa certa, que ao menos procure errar melhor.

Onde está a saída?

Em qualquer sociedade honesta para com os seus valores, a saída reside na neutralização dos males que a afligem. Todos os coletivos têm coisas em comum. Em nenhum, estimula-se o assassinato, a doença ou a evasão de regras gerais em benefício exclusivo de alguma família, etnia ou classe social.

Todo sistema discerne que mazelas como a morte, a doença, a loucura, a corrupção, o fanatismo ou o crime – embora inevitáveis – não podem ser transformadas em valores. Reconhecer o mal não significa a ele render-se. O crime, conforme aprendi com Durkheim, é lamentavelmente normal; mas só é normal se for combatido e evitado!

Essa velha lição parece ter sido esquecida no Brasil. Um sintoma disso é quando se tem dúvidas do remédio; ou quando os remédios aprofundam ainda mais o crime, fazendo com que vício e virtude se confundam a ponto de se perder o fio da meada. Daquilo que em qualquer grupo constitui sua fidelidade a si mesmo como grupo.

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Quando os indivíduos se associam, eles deixam de ser exclusivamente motivados por seus interesses particulares. A teia de relações estabelecidas entre os membros de um coletivo passa a ser fundamental nas suas decisões. Em todo elo há no mínimo dois egoísmos, mas não se pode esquecer que o elo é, ele próprio, um ator. Toda relação tem, como diria o grande Pascal, razões que os seus atores desconhecem. Ou, como estamos testemunhando com vergonha no caso brasileiro, fingem cínica e paradoxalmente em nome da lei, desconhecer.

Os atores podem ter intuitos egoístas, mas as suas relações, paradoxalmente, fazem surgir dimensões que vão além desses propósitos já que elas têm também suas finalidades. Uma relação comercial só atende bem os seus atores na medida em que satisfaz sua finalidade de criar riqueza. Do mesmo modo, o amor é usado, mas ele também usa – quando não mata – seus amantes, como ocorreu com Romeu e Julieta.

Quando falamos que existe honra entre ladrões, apontamos para uma ironia. Como pode existir honra num grupo de marginais pergunta o nosso lado individualista, invocando sem saber um elemento coletivo. Ora, diz o nosso lado sociológico, a honra entre ladrões, pervertidos e marginais, é justamente aquilo que suas ações revelam sobre os seus sistemas. A honra entre ladrões – tal como as compulsões dos pervertidos do marquês de Sade, de Freud e do diabo de Machado de Assis – é o testemunho daquilo que precisa ser investigado e compreendido.

Nem sempre, como descobriram Mandeville e Maquiavel, o egoísmo produz egoísmo. Mais das vezes, o vicio produz virtude e até mesmo santidade ou riqueza, como constatou o diabo brasileiro de Machado de Assis. Pelo mesmo paradoxo, nem sempre a benevolência engendra equidade. O nosso velho populismo não produziu igualdade, mas corrupção, traição, desmoralização e plutocracia.

Nas chamadas ciências sociais, o progresso consiste, como acentuou Albert Hirschman, numa emancipação das convenções. Não se pode aplicar ao estado a mesma moralidade requerida para as pessoas. Esse paradoxo de Maquiavel não é muito diferente daquele que ensina como bons sentimentos não fazem boa poesia ou ser amigo do cara garante administração pública honesta.

O grande ensinamento dessa brutal crise brasileira é que ela nos leva para uma viagem para dentro de nós mesmos. Não há mais no mundo em que vivemos a possibilidade de “consertarmos” o Brasil por meio de um modelo externo ou de um salvador vindo de fora (do sul ou de baixo). Não há mais nada que não tenha sido sugado pelo sistema que, globalizado, permite contar até as barras de ouro de gatunos olímpicos nessa olimpíada de ladroeiras na qual ganhamos todas as medalhas e batemos todos os recordes

Quero, pois, imaginar que a investigação e o julgamento das imoralidades que testemunhamos não vão liquidar a política, mas a politicalha que a desmoraliza. Estou igualmente convencido de que não liquidamos nenhuma das utopias – liberdade sem censura, igualdade com meritocracia e oportunidade para os desvalidos – da minha juventude. Se o paradoxo dos fundadores do pensamento social estava correto, uma abusiva imoralidade tem nos conduzido a uma não prevista atitude mais realista relativamente à necessidade de termos um código moral e um credo político do qual devemos nos orgulhar. Revolução não combina com malandragem e hipocrisia.

Se o vício particular engendra virtude coletiva, porque o familismo domesticado não engendraria uma administração pública competente? Não é justamente a roubalheira que nos tem trazido um agudo sentimento de justiça e de honestidade?

Os dias são assim

Sebastiao Salgado grande como fotógrafo e implicado socialmente...
Sebastião Salgado
O que é característico da vida atual não são a insegurança e a crueldade, mas sim a inquietação e a pobreza
George Orwell

No fim, vence o bandido!

E assim, tão logo encerrada a sessão da Câmara com o arquivamento da denúncia, os líderes de partidos que apoiam o governo sairão em desembalada carreira ao encontro do presidente Michel Temer, à espera deles no Palácio do Jaburu.

Todos brindarão a vitória com espumante nacional, uma vez que a crise reclama um comportamento patriótico. E, é claro, alguns deputados mais afoitos ainda tentarão arrancar de Temer favores de última hora para além dos que ele havia se comprometido a conceder.


Spoiler não é uma das palavras da moda, junto, por exemplo, com empoderamento? Por empoderado, acabei de cometer um spoiler ao antecipar o desfecho do caso da segunda denúncia de corrupção contra Temer. Nada demais para quem já assistiu o filme agora reprisado pela televisão país a fora.

No final, embora todos torçam pela vitória do mocinho, quem ganha é o bandido. Não ganha propriamente dito, escapa de morrer – o que na situação dele, e na contramão da vontade do espectador, significa ganhar.

Não cabe na cabeça de ninguém, a não ser na dos muitos cínicos, que Temer tenha entrado limpo e saído limpo da conversa com o empresário Joesley Batista no escurinho do porão do Jaburu.

Foi uma conversa onde o sugerido, o murmurado, a frase incompleta, a intenção por trás de cada palavra prevaleceu sobre o que foi dito de fato. “Mantenha isso, viu?” – é algo que poderia se aplicar à sentença passada ou à futura. Ou ao conjunto de obra. Linguagem só perfeitamente inteligível para os que a dominam e que sabem do que falam.

O encontro mais famoso da Era Temer quase obrigou o presidente a renunciar ao mandato. Não o derrubou simplesmente porque a ninguém interessava na época – e a cada dia interessa menos – que Temer fosse embora. Para pôr quem no lugar? Faltando pouco tempo para que ele vá embora de uma vez?

Enquanto Temer permanecer no poder haverá esperança para muita gente - dos que suplicam proteção contra os rigores da lei àqueles que carecem de mais tempo para se acertar melhor com os eleitores.

Pouco se lhes dá que a segunda denúncia confirme e seja capaz de provocar mais estragos à imagem de Temer do que a primeira. As condições objetivas não mudaram de modo a permitir um desenlace diferente. Fica, Temer! E é por isso que ele ficará.

Na vida real, fora das nuances da política, quem seguirá pagando a conta de tudo somos nós – eles, nunca. Contas de verdade, de doer nos bolsos. Prejuízos que se acumulam e só fazem crescer graças ao adiamento de medidas para corrigir os rumos do país.

Imagem do Dia

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Ponte do Templo da Lua (China)

Gastos federais com infraestrutura correspondem a menos de 1% do PIB

O novo relatório de acompanhamento fiscal da Instituição Fiscal Independente (IFI) mostra que de 2007 a 2016, os gastos federais com infraestrutura corresponderam a 0,9% do PIB, em média. Em relação ao gasto total, o percentual é próximo a 4%.

A área concentra boa parte dos investimentos da União com recursos orçamentários. A maior parcela se destina à função Transporte e entre os maiores gastos estão o programa Minha Casa Minha Vida, projetos relacionados a transporte rodoviário e financiamentos à marinha mercante.

Ainda assim, nos últimos anos tem se mantido pouco relevante em termos orçamentários. Em 2016, as despesas federais com infraestrutura somaram R$ 49,3 bilhões, ou 0,8% do PIB. Entre 2007 e 2016, a média foi de 0,9% do PIB e o maior nível foi alcançado em 2014, pouco mais de 1% do PIB.

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A função Transporte responde por cerca de 37,7% do total, segundo dados de 2016. A segunda maior despesa é com Ciência e Tecnologia (17,9%), seguida de Habitação (16,9%), Gestão Ambiental (11,1%), Urbanismo (9,5%), Saneamento (3,7%) e Comunicações (3,1%).

“Embora a participação do gasto com infraestrutura no total do orçamento federal não tenha variado de forma significativa nos últimos dez anos, observa-se, em termos absolutos, um crescimento real de 55% nas despesas. Esse aumento é percebido em todas as áreas de infraestrutura, especialmente em Habitação (+328%), por sua vez muito impactado pelo advento do MCMV em 2009”, explica o documento.

A publicação ainda mostra que a função Transporte, embora tenha perdido importância relativa dentro dos gastos com infraestrutura, teve crescimento real de 24% no período.

O aumento dos gastos com infraestrutura, de 2007 a 2016, ocorreu mesmo a despeito do recuo no período mais recente. Entre 2014 e 2016, a queda real chegou a 32% e atingiu todas as funções, com exceção de Urbanismo.

A redução nos últimos dois anos da série está relacionada à natureza dos gastos com infraestrutura, compostos predominantemente por despesas primárias de execução discricionária, a maior parte delas investimentos. Em contexto de dificuldade para cumprimento das metas de resultado primário, como se observa nos últimos exercícios, os gastos com infraestrutura se tornam candidatos naturais a compor o esforço de ajuste pelo lado da despesa.

“A função Transporte é a que concentra a maior parte das despesas orçamentárias em infraestrutura. Em particular, destacam-se, nos últimos anos, os gastos com transporte rodoviário e os financiamentos no âmbito do Fundo da Marinha Mercante (FMM). Os gastos com transporte rodoviário correspondem, em sua maioria, a investimentos diretos realizados pelo Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes – DNIT e estão relacionados à manutenção, adequação ou construção de rodovias federais”, aponta o IFI.

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A sobrevivência da espécie

O gene egoísta, de Richard Dawkins (o autor de Deus, um delírio), é considerado o livro científico mais influente de todos os tempos, batendo, inclusive, sua fonte de inspiração, o seminal Origem das espécies, de Charles Darwin, segundo pesquisa da Royal Society, que comemorou 30 anos de sua premiação de livros em junho passado. Dawkins é considerado “reducionista” pelos cientistas criacionistas, mas sua tese faz sucesso entre os neodarwinistas: para ele, somos uma “máquina de sobrevivência” de um gene cujo objetivo é a autorreplicação, isto é, a perpetuação da espécie.

Analisando a reprodução sexuada dos animais, Dawkins busca uma explicação para a convivência entre o egoísmo dos genes e o altruísmo das espécies, que seriam uma espécie de “cluster” biológico que garantiria a sobrevivência e replicação de ambos. Para isso, tem papel decisivo a “meme”, conceito que ele utiliza para explicar como o gene transmite de uma geração para outra a memória ou o conhecimento nato de cada espécie, a começar pelo chamado instinto de sobrevivência.


Por exemplo, o cuco é uma das espécies mais egoístas que existem: procria, mas não educa os filhos; põe os ovos no ninho de outras aves, aproveitando sua ausência. Quando o danado do cuco nasce, joga os demais ovos fora do ninho, matando os filhotes legítimos para ser criado no lugar deles. Só mesmo a “meme” explicaria o fenômeno. O conceito é adotado por antropólogos no estudo das religiões e sociólogos no estudo de sistemas políticos, utilizando modelos matemáticos, para explicar certos comportamentos e a disseminação de ideias.

Ninguém sabe direito o que vai acontecer nas eleições de 2018, tamanho o desprestígio ou desconhecimento em relação aos partidos. Segundo as pesquisas, o eleitor “fulanizará” as eleições em todos os níveis e haverá um Deus nos acuda nos partidos. A tese de Dawkins se aplica, por analogia, aos nossos políticos e seus partidos. Na disputa eleitoral do próximo ano, os grandes partidos servirão de “arranjo institucional” para salvar seus líderes do desgaste da Operação Lava-Jato; os pequenos partidos, que estão condenados ao desaparecimento gradativo, servirão de salva-vidas para que seus lideres sobrevivam no Congresso. Os políticos se comportam naturalmente como genes egoístas. Raros são os líderes altruístas.

Meu País

Tô vendo tudo, tô vendo tudo
Mas fico calado, faz de conta que sou mudo

Um país que crianças elimina
Que não ouve o clamor dos esquecidos
Onde nunca os humildes são ouvidos
E uma elite sem Deus é quem domina

Que permite um estupro em cada esquina
E a certeza da dúvida infeliz
Onde quem tem razão baixa a cerviz
E massacram-se o negro e a mulher

Pode ser o país de quem quiser
Mas não é, com certeza, o meu país

Um país onde as leis são descartáveis
Por ausência de códigos corretos
Com quarenta milhões de analfabetos
E maior multidão de miseráveis

Um país onde os homens confiáveis
Não têm voz, não têm vez, nem diretriz
Mas corruptos têm voz e vez e bis
E o respaldo de estímulo incomum

Pode ser o país de qualquer um
Mas não é com certeza o meu país





Um país que perdeu a identidade
Sepultou o idioma português
Aprendeu a falar pornofonês
Aderindo à global vulgaridade

Um país que não tem capacidade
De saber o que pensa e o que diz
Que não pode esconder a cicatriz
De um povo de bem que vive mal

Pode ser o país do carnaval
Mas não é com certeza o meu país

Um país que seus índios discrimina
E as ciências e as artes não respeita
Um país que ainda morre de maleita
Por atraso geral da medicina

Um país onde escola não ensina
E hospital não dispõe de raio - x
Onde a gente dos morros é feliz
Se tem água de chuva e luz do sol

Pode ser o país do futebol
Mas não é com certeza o meu país

Tô vendo tudo, tô vendo tudo
Mas, fico calado, faz de conta que sou mudo

Um país que é doente e não se cura
Quer ficar sempre no terceiro mundo
Que do poço fatal chegou ao fundo
Sem saber emergir da noite escura

Um país que engoliu a compostura
Atendendo a políticos sutis
Que dividem o Brasil em mil Brasis
Pra melhor assaltar de ponta a ponta

Pode ser o país do faz-de-conta
Mas não é com certeza o meu país

Tô vendo tudo, tô vendo tudo
Mas, fico calado, faz de conta que sou mudo

'Novo analfabetismo': por que tantos alunos latino-americanos terminam ensino fundamental sem ler ou fazer contas

A conclusão do ensino fundamental é uma etapa essencial da vida estudantil, mas para grande parte dos alunos latinos-americanos ela é concluída sem que sejam aprendidas habilidades mínimas.

Segundo um informe recente do Instituto de Estatísticas da Unesco, braço da ONU para a educação, grande parte dos jovens da América Latina e do Caribe não alcançam os níveis exigidos de proficiência em capacidade leitora ao concluírem o que no Brasil equivale à segunda etapa do ensino fundamental, em geral, aos 14 anos.

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O estudo diz que, em média, 36% das crianças latino-americanas no ensino fundamental não estão atingindo as habilidades mínimas de leitura. Em matemática, esse índice sobe para 52%.

Em números absolutos, 19 milhões de adolescentes do continente concluem o fundamental "sem conseguir níveis mínimos" de compreensão nessas áreas.

Especificamente no Brasil, dados compilados pela plataforma QEdu com base no Prova Brasil 2015 dão a dimensão do problema nessa etapa do ensino: apenas 30% dos alunos da rede pública saem do 9º ano com aprendizado adequado em leitura e interpretação.

Em matemática, apenas 14% dos alunos do 9º ano aprenderam o adequado em resolução de problemas.

Silvia Montoya, diretora do Instituto de Estatísticas da Unesco, considera "dramática" a ausência de compreensão de leitura em tantos estudantes do continente.

"O fato de haver crianças sem competências básicas, no que se refere a ler parágrafos simples e extrair informações deles, é o que eu consideraria uma nova definição de analfabetismo", diz ela à BBC Mundo, serviço em espanhol da BBC.

"No mundo de hoje, ter um nível mínimo de alfabetização já não é (apenas) saber ler o próprio nome e escrever algum fato da vida cotidiana. Carecer de compreensão leitora é uma espécie de incapacidade de se inserir na sociedade, poder votar e entender as propostas dos candidatos, entender seus próprios direitos e deveres como cidadão. Afeta todas as dimensões."

E, prossegue Montoya, a leitura é uma habilidade básica, sobre a qual se constroem as demais capacidades estudantis.

"Sem essa competência, estamos gerando crianças e adolescentes que vão (vivenciar) diretamente muitas frustrações pessoais e de integração social e profissional. Sem entender textos, é muito difícil avançar em qualquer área."

A situação se agrava quando se leva em consideração o grau de exigências do mundo atual, em que a informação disponível é complexa e tem diferentes graus de qualidade e confiabilidade - o que exige leitores com senso crítico e habilidade de interpretação.
Uma escola que não funciona

E se antes o desafio da América Latina era o da inclusão dos alunos ao sistema de ensino, hoje a questão é mais qualitativa do que quantitativa.

O desperdício de potencial humano evidenciado pelos dados confirma que levar as crianças à sala de aula é apenas metade da batalharelatório da Unesco

O relatório da Unesco afirma que "o desperdício de potencial humano evidenciado pelos dados confirma que levar as crianças à sala de aula é apenas metade da batalha. Agora, temos de garantir que todas as crianças naquela sala de aula estejam aprendendo as habilidades básicas de que precisam em leitura e matemática, no mínimo".

"Agora, a realidade é que as crianças estão dentro do sistema educativo, mas há uma inabilidade da escola em dotá-los do nível de aprendizado razoável e mínimo para as circunstâncias que demanda o mundo hoje e no futuro", afirma Montoya.

E isso é resultado de uma série de problemas, como formação deficiente que não prepara os docentes para lidar com os desafios de sala de aula, problemas de infraestrutura, numerosas perdas de dias letivos por conta de greves e outras questões - além, também, da própria situação socioeconômica dos estudantes, que "podem vir de lares de baixa renda e contar com menor apoio familiar".

"Há uma combinação de fatores que podem variar em cada lugar, mas evidentemente há uma ausência de políticas específicas para enfrentar o problema", afirma Montoya.

Ela agrega que é preciso analisar os currículos, a formação de docentes - para garantir que sejam capazes de ensinar crianças vindas de contextos sociais difíceis -, contar com um ambiente e uma infraestrutura adequados e ter uma rede de políticas sociais de apoio.

No Brasil, uma nova base nacional curricular, documento do Ministério da Educação que vai definir diretrizes de ensino, está atualmente em fase de consulta pública.

"Não há como resolver (o problema da educação) sem uma visão integral do sistema educacional", opina Montoya.

O problema não se restringe à América Latina - é um drama global.

O relatório da Unesco calcula que, no mundo, haja 617 milhões de crianças e adolescentes - o equivalente a três vezes a população total do Brasil - incapazes de entender minimamente um texto ou resolver problemas matemáticos básicos, o que seria esperado em sua idade escolar.

Na África Subsaariana, 88% dos alunos concluem os estudos equivalentes ao fundamental com problemas de compreensão em leitura. Para efeitos comparativos, esse índice cai para 14% na América do Norte e na Europa.

Paisagem brasileira

BAPTISTA DA COSTA, João, Rio Piabanha (Sapucaieiras),ost, 1904, 61 x 95 cm
Rio Piabanha ou Sapucaieras (1904), João Batista da Costa 

Julgamento do STF decide que país é o Brasil

Nem todo mundo se deu conta. Mas o julgamento que o Supremo Tribunal Federal realiza nesta quarta-feira tem importância transcendental. Numa visão reducionista, a Suprema Corte define se tem ou não poderes para impor aos congressistas sanções cautelares como as que foram atravessadas no caminho do investigado Aécio Neves. Em verdade, está em jogo algo muito maior. Os 11 ministros do Supremo decidem que país é o Brasil.

No momento, o humor do Brasil é sombrio. Flerta com a depressão. Compreensível, pois já não há beira do abismo. O que existe agora é a vida no abismo. A corrupção, por epidêmica, levou lama demais ao noticiário. Surgiu um desejo convulsivo de limpeza. Há no ar uma fome de lei. Imaginou-se que a safra punitiva de Curitiba e do Rio de Janeiro aplacaria os apetites. Engano. Enquanto não chegar a Brasília, a higienização parecerá tragicamente incompleta.

Na primeira instância de Curitiba, produziram-se 165 condenações contra 107 pessoas, entre elas Lula. Juntas, somam 1.635 anos, 7 meses e 25 dias de cadeia. No primeiro grau do Rio, emitiu-se uma sentença com 13 condenados, incluindo Sergio Cabral. Somadas, as penas chegam a 153 anos e 4 meses de cadeia. Em Brasília, no foro privilegiado do Supremo, não há vestígio de condenações. Repetindo: nenhum ministro ou congressista encrencado na Lava Jato foi condenado pela Suprema Corte. Denunciado um par de vezes, o presidente despacha como se nada tivesse sido descoberto sobre ele.

Reza a Constituição que o Supremo não pode mandar prender parlamentares senão em casos de flagrante de crime inafiançável. Deseja-se agora sonegar às togas supremas também o poder de impor aos parlamentares sanções cautelares diferentes de prisão. Estão enumeradas no artigo 319 do Código de Processo Penal. Incluem o afastamento das funções públicas, como decidido em relação a Eduardo Cunha, em 2016. Prevêem também o recolhimento domiciliar noturno, como foi adicionado no caso de Aécio Neves.

Em ação ajuizada em maio de 2016, partidos aliados de Eduardo Cunha alegaram que, a exemplo do que já ocorre com a prisão em flagrante, também as sanções cautelares contra parlamentares teriam de ser submetidas em 24 horas à Câmara ou ao Senado. Que poderiam anular as punições. Pior: em pareceres anexados à ação dos amigos de Cunha, hoje utilíssima para Aécio, a Advocacia-Geral da República e as duas Casas do Legislativo sustentam que o Supremo não tem poderes para punir cautelarmente um congressista.

Se o Supremo exibir nesta quarta-feira um comportamento de Supremo, revelará que o Brasil é um país com direito a um começo. Se decidir que a palavra final sobre sanções cautelares cabe aos congressistas, demonstrará que o Brasil é um país em que as pessoas que vivem de esperança arriscam-se a morrer de fome. Se o Supremo se autoconverter em sub-Supremo, decretando que não tem poderes para adotar providências acauteladoras contra eleitos que assaltam os eleitores… Bem, neste caso, ficará entendido que o Brasil é um país sem jeito.

Mentiras em pés de verdade


Muito tempo há que a mentira se tem posto em pés de verdade, ficando a verdade sem pés e com dobradas forças a mentira; e é força que, sustentando-se em pés alheios, ande no mundo a mentira muito de cavalo; e se houve filósofo que com uma tocha numa mão buscava na luz do meio-dia um sábio, hoje, por mais que se multipliquem luzes às do Sol, não se descobrirá um afeto verdadeiro.
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Buscava-se então a ciência com uma vela, hoje pode-se buscar a verdade com a candeia na mão, que apenas se acha nos últimos paroxismos da vida
Padre António Vieira (1608 - 1697)

Cruzada moralista

Nestes tempos de anátema e de obscurantismo, constantemente a cultura e a educação têm sido alvo de uma cruzada retrógada. Os episódios se sucedem aos borbotões, dando conta de que estamos diante de algo muito mais extenso e profundo do que as exóticas “Senhoras de Santana” dos anos 80 ou dos estandartes medievais da antiga TFP - Tradição, Família e Propriedade. Vamos aos fatos:

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1 - O prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, impediu o Museu de Arte do Rio de abrigar a exposição QueerMuseu, a mesma que o Santander suspendeu por pressões de brigadas virtuais. Evangélico, o alcaide carioca atribuiu-se à função de censor e de crítico de arte, com poderes de determinar o que seus munícipes podem ou não ver.

2 – O ministro da Cultura Sérgio Sá Leitão reuniu-se com parlamentares das frentes Evangélica, Católica Apostólica Romana e em Defesa da Família irritados com a exposição QueerMuseu e a performance Le Bête, realizada no Museu de Artes de São Paulo. O ministro fez coro às críticas da bancada religiosa a Le Bête, e se comprometeu em introduzir um artigo na Lei Renault para atender aos reclamos dos religiosos.

O prefeito João Doria também não deixou por menos. Surfou nas críticas ao MAM por meio de um vídeo comentado por 157 mil pessoas em suas redes sociais. Perfil de seus comentadores: 62% homens, 40% evangélicos e 82% de direita. Na sua esmagadora maioria são brancos da classe média entre 35 e 45 anos.

3 – A coluna Poder em Jogo, do jornal O Globo, informa que o ministro da Educação Mendonça Filho vem sendo pressionado pela bancada evangélica para impedir o Conselho Nacional de Educação de inserir menções sobre identidade de gênero e orientação sexual na versão final de Base Nacional Curricular Comum. Se ceder aos religiosos, o ministro contrariará recomendação de educadores, especialistas e instituições da Educação consultados pelo Ministério.

4 – O Colégio São Luiz, um dos mais tradicionais de São Paulo, foi alvo do ataque – os quais o seu reitor, padre Carlos Alberto Contieri, chamou de “cibermilícias católicas” – devido uma palestra do médico, cientista e escritor Dráuzio Varella para pais de alunos. Fundamentalistas como os membros da Fraternidade Laical São Próspero acusaram o São Luiz, uma instituição com 150 anos de existência e dirigida por jesuítas, de promover a ideologia de gênero, pois a palestra abordaria temas transversais de gênero e de sexualidade.

5 – Tramitam no Congresso Nacional e em diversas casas legislativas projetos de lei inspirados no programa Escola sem Partido, que tem por objetivo monitorar os professores nas salas de aula e promover verdadeira caça às bruxas. Propositadamente, confundem a abordagem pedagógica sobre identidade de gênero e orientação sexual com proselitismo do que chamam de “ideologia de gênero”. As milícias do Escola sem Partido hostilizam educadores e instituições que não rezam por sua cartilha.

6- Sem o mesmo teor fundamentalista, mas nem por isso menos lamentável, o STF fez o Brasil retroagir ao período do império, quando não havia a separação entre religião e Estado. A Suprema Corte considerou constitucional o ensino confessional nas escolas públicas, uma violação ao caráter laico da educação pública.

Não estamos diante de fatos sem relação entre si, mas sim de um movimento engendrado por forças conservadoras e moralistas para fazer o pais retroagir em matérias de valores tão caros aos brasileiros, como o respeito à diversidade, ao pluralismo, à livre circulação das ideias e à liberdade de expressão.

A supressão de tais valores é pré-condição para a imposição do pensamento totalitário que, à exemplo da Santa Inquisição, usa a religião para coibir a ciência e as artes e impedir o desenvolvimento do ser humano. Não há criatividade artística sem liberdade de expressão, assim como é impossível uma educação de qualidade em ambiente de macarthismo nas escolas.

Vivemos no limiar de uma nova era, onde a robótica e a inteligência artificial terão tremendos impactos sobre o mundo do trabalho e a sociedade. Nesse novo quadro, cada vez mais a educação é solicitada a dar uma formação holística aos seus alunos, ensinando-os a discernir o certo do errado, a relacionar a parte com o todo e a desenvolver o pensamento crítico.

É impossível o sistema educacional formar profissionais e cidadãos para este novo mundo em uma redoma de vidro ou em ambiente monocromático, como querem impor os neofundamentalistas -, laicos ou religiosos.

O inquietante da cruzada moralista é que tem contado com aquiescência de autoridades e instituições que se deixaram emparedar. Ou por populismo demagógico ou porque elas mesmas buscam impor suas concepções religiosas e morais ao conjunto da sociedade. Por aí, a educação e a cultura estarão sob o tacão da ditadura do pensamento único.

Quando Che Guevara deitou no chão da Capela Sistina

Che Guevara tinha 29 anos quando, de passagem por Roma, em 27 de agosto de 1959, da cidade sagrada só quis visitar a Capela Sistina. “Quando chegou, ele se deitou no chão para ver melhor os afrescos de Michelangelo”, me contou, em sua casa em Roma, o romancista asturiano Luis Amado Blanco, que foi o lendário embaixador de Cuba junto à Santa Sé e chegou a ser o decano dos embaixadores.

O Che estava de passagem, a caminho do Sudão em uma turnê pela Ásia e o norte da África. Tinha apenas uma manhã em Roma antes de seguir viagem. Quando lhe perguntaram na embaixada cubana o que queria visitar em Roma, esperando que respondesse o Coliseu, as Termas de Caracalla ou o Circo Máximo, surpreendeu a todos dizendo que só queria ver a Capela Sistina no Vaticano.

Não foi uma visita relâmpago, como a da maioria dos milhares de turistas que desfilam diariamente pela cidade. O revolucionário cubano dedicou toda a manhã à Capela Sistina. Ele a esquadrinhou – me contou o embaixador Amado Blanco – em todos os seus ângulos. Ficou horas ali, imóvel, às vezes deitado no chão, enquanto os turistas passavam.

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Nove anos depois, faz agora meio século, o guerrilheiro em conflito com Fidel Castro e que sonhava com uma América Latina comunista, seria fuzilado na Bolívia aos 39 anos. O mito continua vivo e as relações entre a Cuba de Fidel e a Santa Sé ainda são misteriosas. Fidel sempre quis manter boas relações com os papas e teve a inteligência de deixar seu embaixador na Santa Sé durante quase 15 anos sem substituí-lo. Assim, Amado Blanco tornou-se o decano dos embaixadores no Vaticano, encarregado de fazer, uma vez por ano, um importante discurso diante do Papa e de todo o Corpo Diplomático credenciado junto à Santa Sé. Assim, durante anos, era o embaixador da Cuba comunista que pronunciava seu discurso ao Papa e aos embaixadores de todo o mundo.

Aquele estratagema de Fidel me foi contado pelo embaixador, que era um asturiano simpático, cujos pais tinham mudado para Cuba quando ele ainda era criança. Devorador de charutos habanos, ele me obrigava a acender um cada vez que me convidava à embaixada, quando eu era correspondente em Roma. Como nunca fumei, meu charuto apagava imediatamente. O embaixador – que tinha um grande senso de humor e era muito severo naquele rito – dizia que “reacender um habano era um sacrilégio papal”. Quando um apagava, era preciso acender outro novo.

O que me impressionou do embaixador quando me contou sobre a visita do comandante Che Guevara à Capela Sistina foi a surpresa que ele mesmo teve diante da insistência do jovem comandante de não querer ver mais nada em Roma, assim como as horas que passou imóvel contemplando os afrescos hoje totalmente restaurados.

São os mistérios dos personagens que entram na história, tornam-se mitos e nunca conhecemos totalmente. E essa história do Che absorto diante das pinturas da Capela Sistina me fez lembrar que no Brasil está acontecendo uma caça às obras de arte que algumas pessoas consideram provocantes. Também aquelas figuras nuas de Michelangelo sofreram a censura do papa Pio IV, mas foi em 1564, quando mandou o pintor Danielle di Volterra cobrir os nus do Juízo Final com uma braguetta, uma espécie de cueca, razão pela qual foi apelidado de il braguettone. No fim do século XX, o Vaticano, mais liberal, mandou desnudar novamente as pinturas que o Che Guevara pôde desfrutar, como continuam fazendo milhões de pessoas de todo o planeta. Poderíamos dizer hoje que os brasileiros pudicos com os nus da arte podem ser considerados “mais papistas do que o Papa”. A Capela Sistina permanece “nua”.

Mais papista do que o Papa também foi o primeiro-ministro Silvio Berlusconi, que em 2008 mandou cobrir com um sutiã os seios da famosa obra A Verdade Desvelada pelo Tempo, de Giambattista Tiepolo. A obra estava exposta no Palazzo Chigi, residência do primeiro-ministro, e aparecia na televisão toda vez que este era filmado. Temendo que os telespectadores pudessem ficar escandalizados, decidiu censurá-la. O polêmico político, que chegou ao poder depois da operação Mani Pulite, a Lava Jato italiana, ainda carrega processos judiciais por supostos escândalos relacionados a sexo.

Às vezes a vida é muito curiosa.