sábado, 22 de fevereiro de 2025

Pensamento do Dia

 


A vez do fascismo

Depois do socialismo fracassar, sem ter gerado igualdade e nem liberdade para os cidadãos; depois da democracia entrar em declínio, na expectativa frustrada de que a representatividade política iria gerar a distribuição de renda pela mediação dos grupos; vem aí agora o fascismo, na autocrática quebra das regras sociais, que também há de falhar. E a razão é simples: todos que lá chegam se locupletam e nada fazem.

Impera o capital.

Os grandes intérpretes do fascismo são Hannah Arendt, De Felipe, e George Mosse.

Os termos “fascismo” e “nazismo”, aplicados aos contextos históricos da Itália e da Alemanha dos anos de 1930 e 1940, são denominações de contextos específicos, mas com fortes similaridades com os eventos atuais. Atualmente, alguns autores têm utilizado o termo “populismo” para estes fenômenos, no que prefiro o termo “fascismo”, mais explanatório de suas causas, enquanto o termo “populismo” é mais uma descrição de seus efeitos.


O fenômeno do “fascismo” tem a sua origem na compressão econômica das classes médias, que, desesperadas, na rejeição de propostas à esquerda e questionamento das lideranças institucionalizadas, passam a dar suporte a líderes radicais, contra as elites tradicionais que supostamente lhes representam; na esperança de que o mundo, mais radical, vai lhes dar a estabilidade que anteriormente experimentaram, e que têm que ter para as suas vidas e criação dos filhos. Esganiçam a voz, a má educação, e a violência, que imperam. Seguem a seus novos líderes como se fosse uma cegueira, no caminho indelével do tentar vir a ser.

Os outcomes históricos podem ser diferentes em forma e intensidade, mas o “fascismo” tem sempre três pontos em comum: as decisões autocráticas, um inimigo interno, e um inimigo externo, como base de sustentação, na corrosão da ordem institucional.

A Alemanha “nazista” é o caso clássico desta expressão. O Acordo de Versailles pós Primeira Guerra Mundial impôs pesadas multas à Alemanha, com a Alemanha emitindo papel moeda em 1922 para pagar suas dívidas, gerando a hiperinflação. O Partido Social Democrata, então, declinou, com a ascensão do Partido Nazista, que chegou ao Parlamento em 1933 com 32% dos votos. O inimigo interno foi atribuído aos “judeus”, e o externo ao “comunismo”. As consequências, todos nós sabemos.

Dados do “World Inequality Report” mostram o declínio na participação do PIB de 1980 para cá pelas classes médias e trabalhadoras, dando suporte a líderes radicais como Bolsonaro, Miley e Trump. Na Europa, as forças extremistas de direita se aglutinam, na orientação do amanhã.

Mas o “fascismo” também falhará. Seus mandantes, em verdade, são somente os representantes do capital, do grande capital, da versão mais extrema, da falta de ideologia, ou ética. O “fascismo” concentrará ainda mais a renda, até a hora em que as hordas enfurecidas que os elegerem se virem contra eles, sem nada mais ter a repor.

Somente má educação “não põe mesa”.

Mas o preço será alto.

Calor escancara desigualdades e flerta com a tragédia

Outrora invisível, o inimigo está mais evidente do que nunca. É implacável o calor extremo que alcança, em particular, o Rio de Janeiro desde a virada do ano. O segundo mês de 2025 nem chegou ao fim, e os especialistas já atestaram a terceira onda de calor da temporada. É fenômeno que impacta a saúde, a mobilidade, a aprendizagem, a atividade econômica. Como de resto, escancara desigualdades tatuadas na sociedade. E flerta com a tragédia.


A Prefeitura do Rio, via secretarias de Saúde, Meio Ambiente e Centro de Operações, elaborou protocolo de enfrentamento ao calorão. O conjunto de alertas e ações tomou forma no ano passado, meses depois da morte, por exaustão térmica, da jovem Ana Clara Benevides Machado, aos 23 anos. Ela sucumbiu à sensação de 60 oC que a cidade experimentou em novembro de 2023, durante o show da mega-star Taylor Swift no Engenhão.

Na ocasião, ficou exposta a desumanidade das condições impostas aos fãs: proibição de entrada com garrafas nas arenas, bem como de oferta gratuita do líquido vital. Prioritárias eram as receitas financeiras dos patrocinadores. O episódio fatal selou a série de normas impostas pela Secretaria Nacional do Consumidor do Ministério da Justiça aos organizadores de eventos de massa. Tem de haver atendimento médico e ambulância, mangueiras para banhar e resfriar a plateia. Foi autorizada a entrada com recipientes para bebidas; tornou-se obrigatória a hidratação gratuita. Água, afinal, é direito, não item de consumo.

Nesta semana, a capital fluminense alcançou pela primeira vez o nível 4 na escala de calor, que varia de 1 a 5. Significa dias seguidos com temperatura de 40 oC a 44 oC. Nenhuma hipótese de chuva. Equipamentos públicos, de naves do conhecimento a bibliotecas e museus, foram indicados como pontos de resfriamento com ar-condicionado, água potável, área de descanso. Distribuidoras saíram às ruas para entregar copos d’água em pontos de grande circulação e calor, como costumavam fazer apenas nas áreas de dispersão do carnaval.

São medidas bem-vindas, necessárias, mas ainda insuficientes. Alunos se manifestaram contra ambientes escolares tornados saunas de aula. Há estudos que confirmam que o calor excessivo é inimigo da aprendizagem, tal como a fome e a violência. Os chamados ao Samu saltaram 45% nos dias de temperatura recorde, segundo a Secretaria estadual de Saúde. Na capital, em 15 dias, houve 2.400 atendimentos em unidades de saúde em razão do calor.

O sistema de transportes aprofunda o inferno, com a combinação de longos trajetos em veículos sem refrigeração, como se ar-condicionado fosse luxo, não necessidade. O sol, de tão forte, fez um trem da Supervia descarrilar após um trilho do ramal Guapimirim derreter sob o calor de 71 oC.

Nas favelas, multiplicam-se as interrupções de energia em decorrência do excesso de carga. A demanda por energia na Região Sudeste bateu dois recordes em um mês, segundo dados do Operador Nacional do Sistema. A Light, concessionária em 31 municípios fluminenses, reportou 1.150 transformadores queimados por sobrecarga em 45 dias deste ano. O consumo adicional na primeira quinzena de fevereiro foi equivalente ao de todo o estado de Roraima.

Na Rocinha, no Alemão, em comunidades da Zona Oeste e da Baixada Fluminense, o emaranhado de fios em curto entra em chamas. Inflama-se pela energia consumida pela avalanche de aparelhos ligados simultaneamente. Prenúncio de castatrofe.

Na favela da Zona Sul, a associação de moradores apelou a comércio e serviços por extintores. A população formou brigadas de incêndio improvisadas para deter o fogo até a chegada dos bombeiros. Homens, mulheres, crianças contam consigo e com Deus, na falta de condições de moradia, infraestrutura adequada, assistência do poder público. Residências ficam mais de 24 horas sem energia. Há casos de pessoas dormindo ao relento, diante da impossibilidade de suportar o calor em imóveis densamente habitados com circulação de ar deficiente.

Até a inflação do ovo se relaciona ao calor extremo. Sim, as galinhas, afetadas, também produzem menos. Hortaliças e frutas historicamente ficam mais caras na temporada. Ainda que anuncie medidas de emergência, o poder público segue devendo. A conta de anos, décadas, séculos de descaso e urbanização mal feita chegou pesada com o calorão. Todo mundo paga, mas os de sempre (pobres, pretos, favelados, subocupados) pagam muito mais. E as chuvas nem deram as caras. Ainda.

Árvores, sinal de atraso

Isso que vou contar foi um goiano que me contou... Aconteceu numa cidadezinha, no interior do estado. Ficava num vale que terminava numa serra no meio de uma verdadeira floresta de mangueiras, jabuticabeiras, laranjeiras e árvores nativas, seculares... As árvores eram tantas que o viajante, no alto da serra, quase não percebia a cidade, no vale. Foi então que um prefeito moderno e dinâmico fez uma campanha entre os moradores para que cortassem as árvores dos seus quintais para que a cidade fosse vista pelos viajantes. E argumentava: “Todo mundo sabe que árvore é sinal de atraso...”.

Rubem Alves, "Pimentas: para provocar um incêndio, não é preciso fogo"

A melhoria imparável

Há muita gente que acha que as minorias — e maiorias — estão a abusar, que se deviam satisfazer com o que já conseguiram

Se tivesse de ser muito abstrato sobre os últimos 100 anos, e dizer numa só frase aquilo que tentámos fazer, comparados com o século anterior, diria que tratamos melhor as pessoas e, para além das pessoas, os animais que não têm a sorte de ser pessoas.

Tratamos melhor quase todos os grupos, a começar pelo maior de todos, que constitui a maioria: as mulheres.

Tratámos melhor as minorias étnicas e sexuais. Tratamos melhor as crianças. Tratamos melhor os trabalhadores, os pobres, os doentes, os emigrantes, os deficientes e os doentes mentais.



Aqui, “melhor” não quer dizer “mais bem” nem “bem”. Quer dizer menos mal. Pode ser apenas reconhecer a existência e deixar viver. Pode ser apenas deixar de perseguir e castigar.

“Melhor” é só uma tendência, mas é uma tendência importantíssima, indo na direção geral de um objetivo ainda muito, muito distante, que é tratar todos os seres humanos da mesma maneira. O resto é a discussão de graus: quem deve avançar à custa de quem, a que velocidade e com que tipo de encorajamento.

Abolir a escravatura, por exemplo, não é um passo positivo. É apenas a eliminação de um passo negativo. Não deu nada aos escravizados: apenas lhes restitui o que lhes foi tirado

Pensa-se que é humano nunca estar satisfeito com o que se tem. Os malandros dos gays, por exemplo, não se contentaram com o já não serem presos por serem gays. Quiseram casar. E depois, quando conseguiram casar, quiseram adotar filhos.

Há muita gente que acha que as minorias — e maiorias — estão a abusar, que se deviam satisfazer com o que já conseguiram. Só falta chamá-las ingratas. E quem chama são aquelas bestas que acham que “deram” essas melhorias básicas que são banais para a maioria dos cidadãos.

Mas essa vontade nem sequer é humana: é mamífera.

Os gatos também são assim: quanto mais camas têm, mais camas querem. Se calhar, são assim todos os animais: quanto mais bem se tratam, mais bem querem ser tratados. É assim que está certo.

Proezas do nazitrumpismo


Deus!, ó Deus!,onde estás que não respondes?
Em que mundo, em que estrela tu te escondes
Embuçado nos céus?
Há dois mil anos te mandei meu grito,
Que embalde desde então corre o infinito…
Onde estás, Senhor Deus?…

Castro Alves – Vozes D’África





Nestes dias de trombadas do agente laranja – as “trumpadas” – é recomendável não tirar o olho da sucessão de atentados trumpistas às instituições republicanas. Pensei em escrever liberais-republicanas. Recuei porque, no momento atual, o pretendido liberalismo político-econômico se transmuta em nazifascismo.

Veja o caro leitor que Elon Musk e os demais ricaços do trumpismo não exibem originalidade. São descendentes de antecessores da mais elevada estirpe. A sociedade norte-americana apresenta uma trajetória marcada pelo liberal-oportunismo consubstanciado no mando e controle do Estado pelos ricaços.

Nos Estados Unidos das últimas décadas do século XIX e no início do século XX, as peripécias financeiras, especulativas e corruptas dos “barões ladrões” levaram a sucessivos episódios de destruição da riqueza e das condições de vida dos mais frágeis. As falcatruas se desenvolveram à sombra de um Estado cúmplice da concorrência darwinista. O Estado deixou-se contaminar de alto a baixo, da polícia ao Judiciário, pela lógica da grana.

Na posteridade da Grande Depressão, do sofrimento popular, FD ­Roosevelt e o New Deal inauguraram tempos de respeito às instituições democráticas e republicanas. Em 1936, na convenção do Partido Democrata, Roosevelt disparou contra “os príncipes privilegiados das novas dinastias econômicas”, que, “sedentos de poder, avançaram no controle do governo, criaram um novo despotismo e o cobriram com as vestes da legalidade. Os mercenários a seu serviço buscaram submeter o povo, seu trabalho e suas propriedades”.

Durou pouco o ethos do New Deal. Nos mandatos de Ronald Reagan e de ­George Bush Father & Son, a promiscuidade era escancarada: difícil dizer se estávamos diante de um governo eleito ou de um escritório de corretagem. Mas os ex-presidentes republicanos não eram exceções. O democrata Bill Clinton protagonizou a façanha de impor os interesses dos “príncipes privilegiados” da alta finança sob os aplausos e o apoio entusiasmado dos endinheirados do planeta.

Reportagem no New York Times assevera que “em menos de um mês no poder, os plutocratas do presidente Trump embarcaram em um esforço violento e sem remorso para impor sua vontade ao Departamento de Justiça, buscando justificar suas ações como a simples reversão da ‘politização’ da aplicação da lei federal sob seus antecessores da era Biden”.

O texto prossegue: “A campanha feroz, executada por Emil Bove III, ex- advogado de defesa criminal do senhor Trump, agora o segundo maior funcionário do departamento, é realizada em público, em tempo real, por meio de uma série de movimentos que ressaltam a intenção do senhor Trump de dobrar a equipe de carreira tradicionalmente apartidária da polícia federal para atender aos seus objetivos”.

Retomo ao que ousei escrever nas generosas páginas de nossa ­CartaCapital. Vou me valer da sabedoria de Herbert Marcuse. Autor do ensaio O ­Estado e o­ ­Indivíduo no Nacional-Socialismo, ­Marcuse considerava a ordem liberal um grande avanço da humanidade. Sua emergência na história submeteu o exercício da soberania e do poder ao constrangimento da lei impessoal e abstrata.

Marcuse também procurou demonstrar que a ameaça do totalitarismo está sempre presente nos subterrâneos da sociedade moderna. Para ele, é permanente o risco de derrocada do Estado de Direito: os interesses de grupos privados, em competição desenfreada, tentam se apoderar diretamente do Estado, suprimindo a sua independência formal em relação à sociedade civil.

No regime nazista, o Estado foi apropriado pelo “movimento” racial e totalitário nascido nas entranhas da sociedade civil. Os tribunais passaram a decidir como supremos censores e sentinelas do “saudável sentimento popular”, definido a partir da legitimidade étnica dos cidadãos. A primeira vítima do populismo judiciário do nazismo foi o princípio da legalidade, com o esmaecimento das fronteiras entre o que é lícito e o que não é.

Os cânones do Estado de Direito impõem aos titulares das funções públicas, particularmente àquele que exerce a Presidência da República, a obrigação da publicidade dos atos praticados, o dever da impessoalidade nos procedimentos e na escolha de ministros e auxiliares. O sistema de regras positivas emanadas dos poderes do Estado, legitimado pelo sufrágio universal, é o único critério aceitável para as decisões emanadas do chefe da nação.

No Project Syndicate, Richard K. Sherwin apresenta declarações do vice-presidente dos EUA, JD Vance. O vice trumpista declarou recentemente que “os juízes não têm permissão para controlar o poder legítimo do Executivo”. Sherwin adverte que “esse tiro, disparado contra o Judiciário Federal, ameaça interromper um entendimento há muito estabelecido de que os tribunais devem ter a última palavra sobre o que as leis significam e exigem. Visto no contexto dos decretos executivos constitucionalmente suspeitos do presidente Donald Trump – como acabar com a cidadania por direito de nascença e desmantelar agências administrativas aprovadas pelo Congresso – o desafio de Vance coloca em nítido relevo a crise constitucional em desenvolvimento nos Estados Unidos”.

Para homenagear Mark Twain, vou reproduzir um dos seus mais instigantes aforismos: “A História não se repete, mas rima”. Asseguro que os maltrapilhos versos do trumpismo rimam com as proezas jurídico-políticas do nazismo de Adolf, o Hitler. Adendo: Não vou mencionar rimas de menor porte, tal como os desastres poéticos de Jair Bolsonaro & família.

Seguem os rastros do passado no presente. Hitler dirigiu-se ao Judiciário em um discurso no Reichstag, em 26 de abril de 1942. Entre outras coisas, disse: “Espero que a profissão jurídica alemã entenda que a nação não está aqui para eles, mas eles estão aqui para a nação… De agora em diante, intervirei nos casos e removerei do cargo os juízes que evidentemente não entendem a demanda do momento”.

No Brasil varonil, os asseclas bolsonaristas de Trump veem nas formalidades do direito um obstáculo ao exercício da moral. Na verdade, nada é mais imoral nas sociedades modernas do que o moralismo dos beldroegas.