sábado, 2 de maio de 2020

Um presidente que odeia pelas manhãs

Quase todo mundo sabe que política é a arte do entendimento, a busca do possível, a técnica de guiar ou orientar um grupo, uma comunidade, uma cidade, um estado ou uma nação através de argumentos e medidas que atendam ao interesse da maioria. É isso o que se espera do homem público, seja ele um veterano conservador ou um novato reformador. Ele precisa pensar muito antes de tomar uma decisão, calcular antecipadamente o impacto de cada passo que for dar, cada frase que for pronunciar. Procurar não cometer erros e evitar turbulências que o atrapalhem alcançar o objetivo da maioria. Ter jogo de cintura, buscar a paz. Exatamente o contrário do que faz cotidianamente o presidente Jair Bolsonaro.

Quando as coisas chegam a um ponto de ebulição capaz de gerar uma explosão, o bom político recolhe-se, cala-se, conta até dez, dorme sobre o problema para ter tranquilidade para decidir no dia seguinte. Comete o conhecido “sleep on it”, que é a técnica de deixar a matéria esfriar antes de nela tocar, ou consultar o travesseiro antes de reagir. Com Bolsonaro ocorre o oposto. Ele quase sempre amanhece atazanado, pronto para dar uma bronca em repórter, para reagir ao que considerou um insulto recebido na véspera, a reverberar sobre algo que por prudência deveria ter sido deixado para trás ou sobre o qual seria melhor discorrer com a calma das manhãs.


Duas razões parecem estar por trás dessa volúpia matinal do presidente. A primeira e mais evidente é que no “sossego do lar”, Bolsonaro passa horas sem ouvir seus assessores, seus generais, aqueles que tentam e muitas vezes conseguem colocar freios em seus ímpetos. No Alvorada, quando a noite cai, o presidente só tem os seus filhos, os três zeros que entopem sua cabeça com as ideias que ele vai desovar ao longo do dia e expelir de modo mais direto e sem rodeios na entrevista que dá na porta do palácio aos jovens repórteres atônitos, que produzem as principais manchetes de quase todos os dias.

A segunda razão tem natureza emocional. Bolsonaro sente-se encorajado pela claque que amanhece diariamente com ele na saída da residência oficial. Dá para ver como ele se regozija com os aplausos e palavras de apoio quando fala, quando ofende jornais ou manda jornalista calar a boca, quando desce o pau em governadores, deputados e senadores ou quando ataca ministros do Supremo Tribunal Federal. Percebe-se em alguns momentos que ele fala e olha para a claque rindo, buscando incentivo, que obviamente obtém. Essa turma o incensou mesmo quando defendeu o fim do isolamento e disse que a Covid-19 não passava de uma gripezinha.

Se da claque não se deve esperar mesmo muita coisa, afinal essa turma é composta por seguidores e admiradores fiéis e cegos, o mesmo não devia se dizer do presidente. Mas é o que ocorre. Não se pode esperar muito de Jair Bolsonaro. Sobretudo pelas manhãs. O ataque ao ministro Alexandre de Moraes é um exemplo da clássica frase “de onde menos se espera daí é que não sai nada mesmo”, do Barão de Itararé. Quando sai alguma coisa, vem nesse formato que atenta contra o mais elementar dos mandamentos do bom político, que é não permitir que a coisa fuja do seu controle. No episódio, Bolsonaro entregou o controle ao Supremo, que reagiu em coro contra ele.

E não adianta tentar explicar os arroubos presidenciais pela lógica bolsonarista de que o mundo mudou com o fim da política clientelista. Até porque essa máxima besteira, que há muito tempo tinha sido explodida, foi agora soterrada pelo acordo com o centrão. E depois não é disso que se trata. O que ocorre é que o presidente se vê esvaziado dos ensinamentos do dia quando se deixa contaminar pela ignorância da noite. Woodrow Wilson, que governou os Estados Unidos de 1913 a 1921, produziu um frase que qualquer brasileiro adulto que acompanhou a política nacional dos últimos 20 anos entende bem: “Nos assuntos públicos a burrice é mais perigosa do que a desonestidade, porque é mais difícil de ser combatida”.

Brasil da pirataria


'Presidente, assuma sua irresponsabilidade'

Desde que tivemos conhecimento da primeira transmissão comunitária da Covid-19, no dia 13 de março, tomamos imediatamente as medidas restritivas no estado do Rio, que estão sendo tomadas em todo o mundo, cada país com suas peculiaridades e características. Todas as decisões foram baseadas em autoridades sanitárias, infectologistas e nosso secretário de Saúde, Edmar Santos. As ações de contenção do vírus, todos sabemos, são duras e têm consequências econômicas. Sempre soubemos disso. Mas a decisão sempre foi priorizar a vida das pessoas. Pessoas que perdem suas vidas não trabalham.

O coronavírus atinge o mundo inteiro. Mas só no Brasil isso virou política. O núcleo bolsonarista e seu gabinete de "fake news" insiste na estapafúrdia tese de conspiração política. Algo como “os governadores querem destruir a economia para enfraquecer o Bolsonaro”. Ora, se essa tese fosse transportada para todo o mundo, seria o caos mundial. Em todos os lugares do mundo, o isolamento social foi entendido como absolutamente necessário. Como uma ação de sobrevivência em meio a uma guerra. Uma guerra humanitária e de saúde como nunca vista antes.

Logo depois da iniciativa do estado do Rio, governadores de todo o Brasil seguiram a mesma linha. E decidiram por proteger seus cidadãos desse vírus letal. O mais letal da nossa geração.

Sabíamos que, com o comércio fechando as portas, com os empresários em dificuldade, com as pessoas que mais precisam em desespero, que o estado teria que atender a todos. Mas é aí que a tese de bolsonaristas, defendida pelo presidente da República, nos deixa atônitos. O presidente, que trata o Covid-19 como uma "gripezinha” ou “resfriadinho”, manda-nos recados semanais de que a conta a ser paga pela decisão dos governadores pelo isolamento social é nossa. E esse é o absurdo dos absurdos. O papel do governo federal é imediatamente socorrer os estados. Não é um favor. É uma obrigação. Não é uma perseguição pessoal, como faz crer o presidente da República. Socorrer os estados é socorrer o povo. Essa narrativa pobre e pueril de que devemos pagar a conta não vai prosperar. 

Algumas palavrinhas

Bolsonaro confessou que nem sempre lê os decretos que assina. São textos longos e que além de lidos têm que ser compreendidos… É muita letrinha e isso é muito cansativo.

Não dá para transformá-lo, nessa altura do campeonato, num grande leitor, mas pelo menos podemos usar apenas outras poucas letrinhas para fazê-lo ver o que está perdendo.

Ou não?

Sou teimosa, vou tentar.

De Cicero, o grande tribuno romano: “Uma sala sem livros é um corpo sem alma”.

De Jane Austen a grande escritora inglesa: “Uma pessoa, seja um cavalheiro ou uma dama, que não sente prazer em ler um bom romance, deve ser intoleravelmente estúpida”.

De Mark Twain, o admirável escritor americano: “Bons amigos, bons livros e uma consciência tranquila, eis a vida ideal”.

De Neil Galman, novelista britânico: “Os contos de fadas são mais do que verdadeiros. Não é somente porque nos contam que os dragões existem, mas porque garantem que eles podem ser vencidos”.

De Groucho Marx, o magistral cômico do cinema: “Fora do cachorro, o melhor amigo do homem é o livro. Dentro do cachorro é muito escuro para ler”

De Paul Valéry, o notável poeta francês: “Os livros têm os mesmos inimigos que os homens – fogo, umidade, bichos, tempo e seu próprio conteúdo”.

De Jorge Luis Borges, o gênio literário argentino: “Imagino que o Paraíso seja uma espécie de biblioteca”

De Ernest Hemingway, o brilhante escritor americano: “Não há amigo mais leal que um livro”.

De Winston Churchill, o estadista a quem o mundo todo muito deve: “Ele tem o dom de comprimir a maior quantidade de palavras na menor quantidade de ideias”.

Será de quem que Churchill falava? Se não fosse a brutal diferença de geração, eu diria que era do Bolsonaro. Cai como um luva, não cai?
Maria Helena Rubinato Rodrigues de Sousa 

Soneto da covid-19

Talvez um dia andemos novamente
Pela Consolação, pela Paulista,
E consigamos, milagrosamente,
Chegar salvos e sãos à Bela Vista.

Talvez possamos, como se ontem fosse,
Cantar aquela cálida canção
E achá-la muito mais intensa e doce
Do que nós a julgáramos então.

Talvez nos seja um dia restituída
Aquela nossa venturosa vida
E voltemos a andar pela cidade

Alegres, sorridentes e confiantes
Como naqueles belos dias antes
Dos longos dias de calamidade.
Raul Drewnick

Para não cair, Bolsonaro rende-se ao 'é dando é que se recebe'

Estelionato eleitoral é se eleger prometendo uma coisa e, depois, fazer o seu oposto. Lembra algo? Calma! Jair Messias Bolsonaro, que esta semana acusou seus desafetos de conspirarem para transformá-lo num pato manco, poderá ser lembrado por último.

Estelionato eleitoral, por exemplo, lembra o presidente Fernando Henrique Cardoso, que sucedeu a Itamar Franco. Para se reeleger em 1998, ele garantiu que o Real manteria seu valor em relação ao dólar. Eleito e reempossado, desvalorizou o Real.

Lembra mais o quê? Sim, Dilma Rousseff, que se reelegeu prometendo manter a política econômica do seu primeiro mandato, nada ortodoxa. Fez o contrário, para desencanto dos que votaram nela e horror do PT que passou a criticá-la.

Fernando Henrique não conseguiu eleger seu sucessor, o ex-ministro da Saúde José Serra. Para não amargar uma derrota fragorosa, Serra se apresentou como se fosse candidato de oposição ao governo. No caso de Dilma, ela foi derrubada.

Governantes procedem assim quando a realidade os contraria. Não o fazem necessariamente por maldade. Dão o dito pelo não dito para sobreviver. Fernando Henrique e Dilma sabiam que não teriam como honrar sua palavra. Esperavam retomá-la depois.


Não é o caso de Bolsonaro, incapaz de enxergar um palmo à frente. Ele acreditou que se imporia à realidade. Inventou formas bizarras de superá-la. E terceirizou a solução de problemas que seria incapaz de resolver por não ter se preparado para tal.

Em breve, o que restará das promessas que ele fez para se eleger? Combate à corrupção? Abandonada desde que a dupla dinâmica formada por Flávio, o Zero Um, e Queiroz, o seu faz tudo, passou a ser investigada pelo Ministério Público no caso da “rachadinha”.

O ex-ministro da Justiça Sérgio Moro, expelido do governo por se opor ao aparelhamento da Polícia Federal, tem muito que contar a esse respeito. Suas principais iniciativas contra a corrupção foram sabotadas, ora pelo Congresso, ora por Bolsonaro.

Crescimento econômico? O pibinho de 2019 foi menor do que o pibinho deixado como herança por Michel Temer. O próximo será negativo – algo como menos seis por cento ou até pior. O projeto neoliberal do ministro Paulo Guedes foi para o espaço.

Bolsonaro prometeu governar em harmonia com os demais poderes? Em algum discurso, uma vez eleito, prometeu. Em campanha, não, porque não combinava com seu perfil. Pois vive em guerra permanente para dominar os demais poderes.

O presidente eleito para “quebrar o sistema”, agora com medo de que lhe abreviem o mandato, está prestes a se aliar ao sistema. O Centrão vem aí! Em breve, numa repartição de sua cidade, a fina flor do fisiologismo político estará em cartaz.

Centrão é como foi batizado o grupo de partidos que adere a qualquer governo desde que possa faturar cargos, emendas ao Orçamento da União, e outros favores impróprios de ser mencionados. Melhor, antes, retirarem as crianças da sala.

Foi na Assembleia Nacional Constituinte de 1988 que o Centrão nasceu. Inicialmente, sua razão de ser era contrapor-se à esquerda no debate das questões econômicas. De lá para cá, Centrão virou sinônimo de coisa ruim, que se vende em troca de sinecuras.

Bolsonaro não quer saber disso, não. Sem partido, sem base de apoio no Congresso porque nunca se interessou em construí-la, precisa, às pressas, de pelo menos o voto de 171 deputados para barrar na Câmara a abertura de um processo de impeachment.

Por isso ele declarou aberta a temporada do “é dando que se recebe”, uma máxima de São Francisco de Assis. Como, por aqui, o que o santo rezava acabou desvirtuado, Bolsonaro sempre poderá apelar para Lucas, versículo 6:38: “Dai, e ser-vos-á dado”.

É verdade que, segundo o apóstolo Paulo, Jesus ensinou: “Mais bem-aventurada coisa é dar do que receber” (Atos 20:35). Mas Bolsonaro e o Centrão pularam essa página da Bíblia.

Pensamento do Dia


Como uma onda no mar?

“Nada do que foi será de novo do jeito que já foi um dia.” Sem dúvida alguma. E, sim: “tudo passa, tudo sempre passará”. Mas a epidemia não vem em ondas mais ou menos simétricas, como o mar. A epidemia vem em onda forte seguida de outras ainda fortes, em onda moderada seguida de ondas fortes, em onda que tudo varre e ainda pode ser seguida do mais profundo descalabro. A evolução depende de como os governos se comportam. Também depende de como os governos se comportam dentro da realidade de cada país. Não adianta imitar a Suécia, apostar na imunidade de rebanho e deixar a onda passar. Primeiramente porque não sabemos o que haverá de ser das escolhas da Suécia. Depois, porque o Brasil não é a Suécia. Por fim, porque os suecos estão respeitando o distanciamento social sem quarentena, por conta própria. Trata-se de questão de comportamento.

Muito me preocupam os cenários econômicos. Não por sua extrema gravidade. Eles me preocupam porque muitas vezes se baseiam em premissas equivocadas, como a de que haverá uma primeira onda — essa que estamos atravessando — seguida de onda mais mansa, ou de uma sequência de ondinhas. É este tipo de premissa que escora as projeções do FMI: a onda forte é agora, no segundo semestre haverá outra, mais fraca, e, depois, vida que segue. Muitos economistas estão seguindo essa linha de raciocínio para justificar suas posições. Alguns resolveram inclusive ignorar já a primeira onda, voltando a apoiar uma agenda de reformas que, francamente, diz respeito a um mundo que não existe mais. Entre esses consta o ministro da Economia brasileiro, que resolveu mudar o tom no momento em que o país entra na fase mais crítica da crise humanitária. Com ele foram os economistas de mercado e todos aqueles que preferem ignorar a realidade. A realidade é que a capacidade hospitalar da cidade de São Paulo está se esgotando. A realidade é que a taxa de mortalidade no Rio de Janeiro entre os mais pobres já é muito mais elevada do que entre os mais ricos. Quem prefere encarnar o surfista alienado cuja imagem ficou associada à música que intitula este artigo — nada contra a música, gosto muito — está, neste momento, agindo de forma imoral. Queiram os economistas ou não, há uma dimensão moral nesta crise que não será esquecida.
Se alguém parasse para olhar os dados brasileiros — que estão subnotificados —, observaria que o número de casos no país está subindo rapidamente a cada dia. O número de mortos já é maior do que o da China. Quando vocês estiverem lendo esta coluna, já teremos superado a China no número total de casos. Não estamos na crista da onda, prestes a nela deslizar com a destreza daqueles que o fazem de forma incansável nas praias do Rio. Estamos no pé de uma montanha cujo pico nos ilude. E do pé dessa montanha resolvemos, de uma hora para outra, ignorar nossos mortos, nossos doentes, os do presente e os do futuro, voltando à ladainha das reformas.

Porque soberano é o vírus, não o presidente da República ou o ministro da Economia.

Cadê a renda básica emergencial, que não chega nas mãos das pessoas? E as filas criminosas em frente à Caixa Econômica Federal para sacar o benefício? O que dizer da ausência de repasses fundamentais para os estados e municípios? O que falar do desembolso de apenas R$ 5 bilhões para o SUS até agora? Como se pode pensar em defender a redução de tributação sobre os bancos neste momento? E por que cargas d’água vamos querer avançar com medidas de austeridade contidas nas reformas se o que precisamos é de mais endividamento público para ao menos atenuar a depressão econômica?

O Brasil nunca viu uma deflação. O modo-padrão é logo morrer de medo de inflação, é dizer que não podemos nos endividar porque cairemos na espiral inflacionária de eras passadas. Mas não. Essa não é mais a realidade. A realidade é uma espiral de queda de preços extremamente danosa para a economia, para as pessoas. Nos vídeos que tenho feito para o YouTube tenho explicado o que é uma espiral deflacionária. Para os leitores interessados, recomendo assisti-los, pois, para nós, brasileiros, é algo inédito. Mas não é algo que, nós, economistas, desconheçamos, ainda que alguns não a tenham visto de perto.

Como uma onda no mar? Não. Como um tsunami a chegar no oceano de ignorância deste desgoverno.

Profetadas

Ouve-se e custa a acreditar, mas o “Polígrafo SIC” comprovou a veracidade dos factos relatados, no âmbito duma parceria de fact-checking com o Facebook, destinada a avaliar a veracidade das informações que circulam nessa rede social. Bolsonaro determinava uma “proclamação santa” anunciando um jejum religioso contra a pandemia do coronavírus, à qual teriam aderido os “maiores líderes evangélicos” do país.

Segundo o El País (Brasil) no dia 5 de Abril o presidente participou numa “roda de orações” pelo fim da pandemia que serviu também como cerimónia de encerramento do jejum, reunindo-se com pastores e fiéis evangélicos que o foram ver ao Palácio Alvorada. Na altura ouviu de um dos religiosos “a afirmação de que a partir desse domingo, dia 5 de Abril, dia proclamado de jejum, não haveria mais mortes nem doentes infectados pelo coronavírus“. Bolsonaro atendeu o pedido de um pastor e ajoelhou-se com o grupo que fez orações e cantou músicas de louvor. Em silêncio, o presidente ouviu o pastor, em tom exaltado, dizer que, a partir daquele instante, não haveria mais nenhuma morte pela Covid-19 no Brasil, porque o país estaria abençoado por Deus e pelo presidente Bolsonaro”.


Como é evidente continuaram a morrer pessoas de Covid-19 e, passada pouco mais de uma semana, o governo informou que o país tinha atingido um recorde diário de 217 mortos e 3.257 novos casos de infecção, tendo até duplicado as percentagens anteriores de vítimas mortais e de infectados. A profecia falhou porque era falsa. A promiscuidade entre política e religião constitui a negação do que deve ser um estado moderno e laico, e leva o sagrado a reboque de interesses políticos. De facto, a Igreja brasileira perdeu há muito qualquer autoridade profética para falar à nação, por se ter envolvido até ao pescoço na política partidária.

Por outro lado, este triste episódio revela uma série de equívocos perigosos. Antes de mais, qual é a legitimidade de um chefe de estado para convocar um acto religioso? Se o estado é laico e a constituição garante rigorosa isenção face às religiões, por que motivo se poderá justificar tal convocação, agravada pela associação a uma pequena parte dos líderes cristãos, excluindo assim a maioria deles? Bolsonaro é presidente de todos os brasileiros e não só dos neopentecostais. Aliás, tal convocação só faria sentido se viesse duma plataforma religiosa que não excluísse nenhuma confissão à partida. O argumento bíblico de que terão havido precedentes de reis do Antigo Israel que o fizeram esquece que os tais eram também sacerdotes e viviam num estado confessional, o que muda tudo.

E por que razão o presidente da república aceitou sem pestanejar uma oração manipuladora e patética que apenas expressou um desejo humano, apresentado em forma de declaração profética? Já agora, visto que não se confirmou, e porque tais sectores religiosos gostam tanto de imitar o Antigo Testamento, será bom lembrar que os falsos profetas hebreus na altura eram punidos com a morte… O que lhes vale é que já não vivemos nesse tempo de que eles tanto gostam, caso contrário seriam executados.

Por último, como é possível a um líder religioso dizer que o país estava abençoado “por Deus e pelo presidente Bolsonaro”, colocando ambos em pé de igualdade?

Estes falsos profetas são ainda mais censuráveis do que os charlatães que no início de cada ano vão à televisão fazer previsões a partir do alinhamento dos astros e dizendo normalmente o que as pessoas gostariam de ouvir. Todos eles sem excepção auguraram um ano de 2020 espectacular, extremamente positivo, e não houve nem um que falasse da eventualidade duma pandemia que viria a provocar centenas de milhares de mortos e o colapso das economias em todo o mundo.

Mas os falsos profetas são ainda mais censuráveis também porque põem os seus desejos na boca do divino, pretendendo falar em seu nome, enquanto os astrólogos supostamente se limitam a fazer uma leitura dos astros. Sobre os que debitam profetadas já o sacerdote-profeta Jeremias alertava há 2600 anos: “Os profetas profetizam falsamente no meu nome; nunca os enviei, nem lhes dei ordem, nem lhes falei; visão falsa, e adivinhação, e vaidade, e o engano do seu coração é o que eles vos profetizam” (Jeremias 14:14).

Entretanto o ministro Sérgio Moro, a estrela maior deste governo, bateu com a porta e deixou acusações gravíssimas ao presidente, que exigem investigação judicial, agravando assim a crise política e desferindo um profundo golpe no bolsonarismo.

Falta pouco

É tempo de reconhecer a magnitude do problema e tomar medidas. Não ajuda politizar neste momento. Essa é hora de todos os atores do país estarem unidos em torno de um objetivo comum: lidar com a questão de saúde. Ninguém quer que uma crise de saúde se transforme numa crise de direitos humanos
Joel García Hernández, o presidente da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos

O fim da Nova Política ou 'me salvem, se puderem!'

A junção da pandemia com as crises econômica e política, autoimpostas pelo presidente, fez com que a “nova política”, do velho político Jair Bolsonaro, viesse abaixo. Alguns dias atrás, o presidente esteve na manifestação em frente ao QG do Exército, onde anunciou que “não iria negociar nada”. Entretanto, logo depois, Bolsonaro se encontrou com um dos líderes do “centrão”, o deputado federal Arthur Lira (PP-AL). Em seguida, ainda compartilhou uma “live” na qual o ex-deputado Roberto Jefferson (PTB-RJ) denunciava um suposto golpe preparado pelo presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ).

Paralelamente, também foram sinalizadas aproximações com o PP, PSD, Republicanos e PL, de Valdemar da Costa Neto. E justamente Lira, Jefferson e Valdemar, figuras da velha política, com “passagem” pelos casos do mensalão e “vítimas” da Operação Lava Jato.

A compra de muitas brigas, principalmente com Rodrigo Maia, a saída de Mandetta e o turbulento pedido de demissão de Moro, tudo isso gerou um certo senso de urgência no chefe do Executivo. E o “não quero negociar nada” desmanchou-se no ar, em função da necessidade de se constituir uma base para impedir um possível processo de impeachment.


Bolsonaro acumula, até a data de hoje, um total de 31 pedidos de impeachment contra ele. A esses pedidos, somam-se a CPI da “Fake News”, que ameaça atingir seus filhos, e o inquérito autorizado pelo ministro Celso de Mello, sobre as denúncias feitas por Moro. Pronto, estão dadas as condições para o presidente esquecer a “nova política” e voltar os olhos para a velha, porém “enxuta”, política.

A investida no centrão também visa dividí-lo para quebrar o poder de Rodrigo Maia, podendo desembocar num possível candidato à presidência da Câmara dos Deputados, apoiado pelo governo, para disputar contra alguma preferência de Maia em fevereiro de 2021.
O presidente da República comprou muitas brigas e queimou rapidamente o seu capital político. A saída de Moro, além de tirar parte da sua base de apoio popular, também deve encarecer a relação com o centrão.

A distribuição de cargos é a condição para a formação dessa base-proteção. Mas, como tudo que deixamos para “comprar” de última hora, sairá mais caro; e pode ser que o presidente “compre”, mas não leve. Parte do centro político não parece estar disposto a embarcar nisso que, para muitos, parece uma furada.

Paulinho da Força (Solidariedade-SP), conhecido pela sua volatilidade ideológica, recusou-se a entrar para a base, ainda que, segundo ele, tenham lhe oferecido a gestão do Porto de Santos.

Sobre a aproximação com o “centrão”, Bolsonaro afirmou que vai encarar com naturalidade qualquer negociação de cargos na administração pública federal. “Acham que eu tenho controle em tudo o que acontece?”

Realmente, a negociação na política, dentro de limites republicanos, é normal e necessária, há cargos políticos a serem preenchidos, no entanto, o presidente se esquece de que foi ele mesmo quem reforçou a demonização dos acordos. Não que os combinados que estejam em curso sejam os mais republicanos, visto que, aparentemente, o preço da construção da base de apoio sobe na mesma proporção do enfraquecimento do governo. A saída de Moro, sem dúvidas, inflacionou as negociações.

A desconfiança é mútua: da parte de Bolsonaro, por não ver comprometimento dos novos apoiadores; por parte do “centrão”, por ver em Bolsonaro um arrombo de contradições, que gera insegurança.

Em seu próprio discurso durante a posse do novo ministro da Justiça, o presidente falou acerca de respeito e independência entre os três poderes. Paradoxal quando sabemos que, outro dia, ele estava em um carro de som numa manifestação que pedia a volta do AI-5, o fechamento do Congresso e do STJ.

O centrão conta com mais ou menos 160 deputados federais. Estes, somados com a parte dos parlamentares do PSL que ainda apoiam o presidente, e o grupo do MDB, vinculados à bancada do boi, bala e bíblia, onde Bolsonaro ainda tem apoio, resultariam no número necessário para barrar qualquer tentativa de processo de impedimento. Resta-nos conferir se esse casamento se concretiza e o preço da festa.

Bolsonaro, ricos e pobres

A última fornada de pesquisas traz dados relativamente desencontrados a respeito do governo Bolsonaro, mas os diversos institutos mostram, de forma inequívoca, o país dividido diante da principal dúvida em relação ao futuro: o impeachment do presidente da República, apoiado por 45% dos entrevistados, contra 48%, segundo o Datafolha. Com esse placar, não há hoje chances para um processo de afastamento de Jair Bolsonaro. Mas as pesquisas apontam também um quadro que parece extremamente volátil, o que talvez explique suas divergências em relação à popularidade presidencial neste momento. As águas da opinião pública estão se movimentando com rapidez, ao sabor da pandemia do coronavírus e das crises criadas dentro do Planalto. Em vinte dias, a situação poderá estar bem diferente.

Os levantamentos dos institutos Atlas e Jota/Quaest apontam queda consistente na aprovação de Bolsonaro algo como 8 p.p. a mais na desaprovação, pelo primeiro, e uma queda de 11 p.p no índice de bom e ótimo no segundo. O Datafolha, embora reflita desaprovação clara em relação à condução das políticas contra a Covid-19, traz intacto um núcleo de 33% dos entrevistados que continuam apoiando o governo.


A curiosidade, contudo, vem na composição desse bloco de um terço do eleitorado que considera Bolsonaro bom ou ótimo. Aos poucos, parece estar havendo uma substituição de apoiadores com maior nível de renda e mais alto grau de escolaridade por outros situados na faixa que recebe até dois salários mínimos e tem instrução primária. Traduzindo, no grosso modo: os ricos estariam abandonando Bolsonaro e os pobres se aproximando dele. Um movimento aparentemente provocado pelas medidas de auxílio emergencial na crise da pandemia, como o pagamento de R$ 600 a desempregados e autônomos, e que teria significado porque essa faixa da população tem maior peso do que as demais, chegando a mais de 70% do eleitorado.

Dificilmente, porém, seria essa uma tendência duradoura, a ponto de garantir a popularidade de Bolsonaro. Em primeiro lugar, porque os programas de ajuda federal aos mais pobres têm deixado muito a desejar em termos de eficiência e efetividade. As longas filas nas portas de agências da Caixa Econômica e as trapalhadas nos anúncios do Ministério da Cidadania vem deixando claro que falta a esse governo capacidade para executar políticas sociais. Em segundo, porque, lamentavelmente, a situação tende a piorar muito, tanto em relação à tragédia da pandemia, com suas mortes e hospitais em colapso, quanto nas previsões de desemprego e recessão nos próximos meses. E sabe-se que não há recursos para a continuidade desses programas ou, ao menos, não há intenção da equipe econômica de Paulo Guedes de dar recursos para isso quando seus três meses de vigência se esgotarem.

A falta de empatia do presidente da República em relação às vítimas da pandemia é algo que só Freud poderia explicar. Mas está diariamente nos meios de comunicação, e evidentemente não ajuda nada na preservação de sua imagem mesmo junto àqueles que são favoráveis à flexibilização do isolamento social. Insensibilidade jamais será bem recebida pelo grande público. Quando ficar claro o quanto está sendo nociva sua influência na questão das medidas de proteção ele baixa um decreto ampliando os serviços considerados essenciais no dia em que houve recorde de vítimas, sobretudo se houver mais mortes relacionadas a essa flexibilização, a responsabilização, para ricos e para pobres, terá nome e endereço certo: Jair Bolsonaro, Palácio da Alvorada, sem número, Brasilia, DF.