segunda-feira, 28 de janeiro de 2019

O Brasil é redondo

Durante séculos, os navegantes tinham razão em evitar o oceano, por causa dos limites da Terra plana. Tinham razão, mas estavam errados, porque a Terra era redonda. Estamos fazendo o mesmo no Brasil: enfrentamos nossos problemas sem perceber que as soluções propostas são baseadas em ilusões. Nossa democracia precisa redondear o Brasil, buscando soluções que combinem a razão imediatista dos eleitores com a lógica necessária ao enfrentamento de nossos problemas. Diante de tanta violência e do descrédito da polícia, o eleitor tem razão em querer armas para se defender. Mas, apesar da razão, o eleitor está errado, porque estas mudanças não levarão ao fim da violência.

A razão de que mais armas diminui violência se baseia em falsas premissas, como ao dizer-se, olhando para o horizonte, que a Terra é plana. O argumento de que as armas irão apenas para as mãos dos homens de bem não se sustenta, porque antes do primeiro crime os atuais bandidos tinham bons antecedentes. Com mais armas nas mãos, disputas entre vizinhos com bons antecedentes poderão se transformar em guerras, quando eles puderem usar as armas guardadas em casa; a raiva transforma a posse em porte, automaticamente, mesmo que ilegal. O direito à posse vai levar os bandidos a assaltarem casas de bons cidadãos em busca de armas, em vez de dinheiro; diante do risco de uma arma guardada, entrarão atirando. A generalização da posse de armas vai provocar duelos dos cidadãos de bem reagindo ao assaltante que entrará atirando.

O mesmo serve para a redução da maioridade penal. Tem razão o eleitor em não se conformar com um delinquente juvenil matar e continuar solto: impune e ameaçando. Mas universalizar a redução da maioridade pode ampliar a criminalidade: a cadeia será a universidade dos pequenos delinquentes para depois cometerem crimes maiores. A solução é construir uma sociedade pacífica sem armas nem raiva; graças a um longo projeto de pacificação nacional, onde o principal vetor será a educação. Para enfrentar a violência imediata, é preciso fortalecer a polícia, valorizar o policial. Ao armar a população, estamos passando a mensagem de que a polícia é ineficiente, incompetente e desnecessária. Isto é como ver a Terra plana, olhando apenas para o horizonte.

A diferença entre a “razão” e o “certo” também aparece nos demais problemas. Queremos resolver os problemas do desemprego, da concentração de renda, da baixa produtividade, da persistência da pobreza, mas, no lugar de iniciarmos o processo de redondear o Brasil por meio da necessária revolução — para termos uma educação de base com qualidade e igual para todos —, preferimos soluções simplistas. O problema é que, para redondear os problemas, seria preciso eleger políticos que acreditem que o Brasil é complexo, é redondo, e digam isso aos eleitores, desde a campanha. Mas para o eleitor é mais obvio e crédulo ver o Brasil plano e votar com a razão do horizonte curto, mesmo que as propostas escolhidas não resolvam, mas iludam, como a visão da Terra plana iludiu por milênios.
Cristovam Buarque

A pessoa sem nome

Na minha cidade natal nos Açores, havia uma pessoa sem-abrigo, quando ainda era eu criança e passava o tempo a correr na rua com o meu cão amarelo de nome "Jáki". Esse senhor era a única pessoa em situação de sem-abrigo, um gigante de barbas e vestes compridas até aos pés, que vagueava pelas ruas sozinho em silêncio. A maior marca de imagem desta pessoa era um bastão que o apoiava no andar, como se de um velho mago se tratasse. Ele sempre me fascinou durante a minha infância, mas ninguém me dizia nada sobre ele e eu nada sabia dele. Eu devia ter oito anos, ou talvez nove ou dez, na realidade não sei bem situar-me no tempo.

Naquela altura, em criança, não percebia bem estas coisas da pobreza e da riqueza. Sabia que os meus vizinhos da frente, do lado e do outro lado eram todos ricos, pois tinham umas casas grandes, ao contrário da minha. Sabia que as crianças do orfanato perto da minha casa eram pobres, pois não tinham família e vestiam roupa usada. E depois havia esse homem que nem casa nem nome tinha. Na minha pouca sabedoria de criança, decidi que o queria ajudar! Assim fui ter com a minha mãe e disse:

- "Mãe quero ajudar aquele senhor."

- "Filho, podes levar comida."

Comida. Isso mesmo! Levar comida, pois ele precisa de comer, deve ter fome! Enchi um saco de pão e levei. Corri ferozmente pela rua como se tivesse encontrado o sentido da vida. Quando lá cheguei, parei e fiquei a olhar para ele, como um anão olha para um gigante. O sentido da vida estava assim mais para o congelado.

- Que queres, disse ele num tom rouco e forte.

- Aah, trago comida...

- É pão?

- Sim...

- Então deixa aí (no mesmo tom rouco e com o olhar desviado).

Deixei o saco de pão e corri para casa como se tivesse ganho um bilhete de regresso à realidade. Qual sentido da vida? Perdi-o logo! O pior é que não tinha percebido nada daquilo e no caminho vim a pensar que aquele homem não queria pão. Essa era uma imagem tão forte na minha cabeça que rapidamente se transformou numa pergunta: "Mas o que quereria ele?". No fim de tudo isto e mais do que tudo, mais do que ajudá-lo, mais do que sentir que fui útil, mais do que qualquer grandeza, senti que o humilhei, dando-lhe aquele pão seco.

Não sei quando vi essa pessoa pela última vez. Talvez dias depois, talvez nunca mais, mas o sentimento acompanhou-me ao longo da minha vida até ao dia em que escrevo este texto. É muito fácil humilharmos as pessoas mesmo com a melhor vitalidade solidária. Mas não há nenhuma dignidade na pobreza nem numa caridade desempoderadora (a chamada "caridadezinha"), ainda muito presente em nós e nas nossas organizações. Os pobres são como que adotados nesta caridade que lhes retira, muitas vezes, qualquer réstia de identidade. Por vezes nem o nome sabemos e se o sabemos pronunciamos com um tom condescendente e infantil. E quando alguém almeja mais do que uma sopa e um canto para dormir, é pobre e mal-agradecido, dizemos com facilidade.

Esta expressão ainda ecoa bem na nossa consciência coletiva enquanto sociedade e quando confrontados com pessoas que, apesar da sua situação de pobreza, ainda querem ser alguém, querem ter escolhas e mostram que tem desejos, como eu e o leitor. É bom ter desejos e sonhos, mostrar que os temos e lutar por eles. É bem mais importante isso do que o pão seco que eu pensava dar àquele homem todos os dias. É isso que nos tira da pobreza.

Então, e por fim, respondendo à questão "o que quereria ele?", encontrei a resposta perguntando a mim mesmo "o que quero eu para mim".

Duarte Paiva

Será isso Pátria?


Brasil na lama e em ruínas

Faz mais de cinco anos, a gente tem a impressão de que o Brasil está em ruína progressiva. O sabor político do sentimento depende do gosto ideológico do freguês. Quanto ao sentido literal da expressão “ruína”, há sinais e sintomas evidentes de que o país está caindo aos pedaços.


Por exemplo, qualquer pessoa sensata vai se perguntar como é possível que se repita em três anos um horror como esse das barragens de Minas Gerais, essa desgraça revoltante na represa de lixo da Vale. Mas a coisa já ia longe.

A gente está com a pulga atrás da orelha de uma cabeça com cabelos em pé, aqui em São Paulo. Há notícias em série sobre o mau estado das pontes e dos viadutos da capital do estado mais rico e mais cheio de universidades de ponta do país.

No final do ano passado, um viaduto da marginal do Pinheiros cedeu e foi interditado. Na semana que passou, foi a vez de um viaduto que liga a marginal do Tietê à Via Dutra.

Oito pontes e viadutos vão passar por vistoria de emergência, entre eles duas pontes sobre a marginal do Tietê.

As marginais são uma das duas grandes vias de circulação expressa e de saída da cidade. Se param, a cidade não consegue chegar nem na breca.

Problema local? Hum.

O investimento do setor público, a despesa em “obras”, afunda mais que viaduto paulistano. Na soma dos gastos dos governos federal, estaduais e municipais, o investimento médio de 2015 a 2017 baixou 36,6% em relação à média dos anos “bons” de 2004 a 2013.

Baixou em termos relativos, em proporção do PIB, um desastre (estas contas são baseadas nas séries de investimento calculadas pelos economistas Rodrigo Orair e Sérgio Gobetti, do Ipea).

O investimento é insuficiente para manter e reparar a infraestrutura, segundo os especialistas (é menor que a depreciação). A baixa é brutal nos governos estaduais, o dobro da queda relativa do investimento feito pelo governo federal e pelos municípios.

Em português claro, isso quer dizer que não há dinheiro suficiente para manter, que dirá melhorar, estradas, pontes, viadutos, açudes, barragens etc. O país está apodrecendo fisicamente.

Para piorar, sem obras novas ou consertos, a economia demora a se recuperar. A construção civil foi o grande setor mais desgraçado da economia durante a recessão. Parou de piorar, mal e mal, apenas no ano passado.

Além da falta de dinheiro, escassearam vergonha na cara e competências. Convém lembrar que as maiores empreiteiras eram comandadas por gângsteres, máfias que compravam governos, leis etc. Sabe-se lá mais o que aprontaram.

Desconhece-se o motivo da nova desgraça mineira, mas sabemos de algumas coisas:

1) leis ambientais rigorosas não faltam; há baderna ou coisa pior na fiscalização;

2) muita gente e negócios estão no rastro possível do vômito letal dessas barragens que se esboroam;

3) não há meios de avisar essa gente que fica no caminho do mar de lama tóxica ou modo de tirá-las de lá a tempo. Quando acontece um desastre, por acidente ou incompetência criminosa (a ver), as pessoas morrem como vítimas de bala perdida nos tiroteios das metrópoles brasileiras. Isso é descaso.

Incúria, corrupções, burrices e ignorâncias brasileiras básicas e, ainda pior agora, a falta de dinheiro devem nos deixar mais alertas. Alguém ainda se lembra da desgraça, da tristeza infinita, do Museu Nacional? A queima da memória brasileira, a ponte que caiu ou a lama da mineração podem ser sintomas de coisa pior.

Palhaçada de lá para palhaços de cá

Tenho a impressão de que ainda não perceberam a seriedade do que é exercer um cargo, a seriedade do momento que a gente está atravessando, a expectativa que o País colocou em cima dessas pessoas.
 
Não foi uma eleição como outra qualquer. Foi uma eleição que veio depois de um sofrimento. E esse pessoal está com palhaçada. É muito grave. Eu não tenho como dizer que não estou preocupada
Janaína Paschoal, deputada PSL-SP 

'Aqueles que governam baseados no medo se valem de ideias retrógradas'

Quando criança, me mudei algumas vezes de Havana. Meu pai era diplomata e vice-ministro de Fidel Castro. Em 1979, depois de morar em Paris, Líbano e Panamá, voltamos para Cuba. Mas meu ativismo começou mesmo quando fui morar em Chicago, em 2001. Descobri a rica história ativista daquela cidade e, ao ver que todos lutavam por seus direitos, entendi o verdadeiro sentido de uma manifestação pública, porque em Cuba o governo se apropriou do ativismo e o converteu em subserviência.


Meu trabalho artístico sempre foi um ato de rebeldia contra o que me parecia injusto e uma maneira de conectar passado e presente. Em 2009, criei uma instalação na Bienal de Havana em que deixava um microfone aberto para que qualquer pessoa pudesse exercitar ali seu direito de liberdade de expressão. O governo cubano fechou minha instalação, e foi quando me dei conta do poder ativista que a arte poderia ter.

Foi também quando comecei a ser perseguida pelo governo sistematicamente. A primeira prisão ocorreu em 2014. Fazíamos uma manifestação pública, e fui detida e solta três vezes. Depois, fui presa novamente em 2015. Agora, em dezembro do ano passado, foram quatro prisões em quatro dias. Era presa de manhã e solta à noite. Esta é a tática do governo cubano: fazer detenções de curto prazo, para que não possam ser registradas como prisões, de acordo com a lei. E então o governo pode dizer nas Nações Unidas e em outros organismos internacionais que não houve prisões em Cuba por motivos políticos. Não importa se você ficou dez dias entrando e saindo da cadeia. Não importa se sua família não sabe onde você está ou que a delegacia negue que você está detida quando lhe procuram.

Foi assim que me prenderam quatro vezes em quatro dias no mês passado. Na primeira detenção, eles me pegaram na esquina de casa. Um grupo de artistas havia decidido ir para a porta do Ministério da Cultura protestar contra o Decreto 349, uma regulamentação do governo cubano que prevê, em resumo, que as obras de arte sejam aprovadas pelo Ministério da Cultura antes de ser expostas ou antes de entrar em circulação. Nós todos sabemos que o que é autorizado em Cuba passa pelo filtro político, e as autorizações são dadas aos que estão alinhados com as políticas oficiais. Há uma longa história de censura de artistas em Cuba, e o Decreto 349 legaliza isso. Pois resolvemos nos manifestar contra isso, mas, naquele primeiro dia de protestos, eu decidi que não iria até o Ministério da Cultura. Queria que o ato desse visibilidade para aqueles que estavam na campanha antes de mim. Mas fui pega já na esquina de casa, e não adiantou dizer que não iria ao protesto. Eles me colocaram dentro de um carro e me detiveram até tarde da noite.

Quando me soltaram, perguntei se havia outros na prisão. Não me responderam, porque sabem que, para mim, uma ativista, é inaceitável saber que há outro ativista preso. Naquela mesma noite, já em casa, liguei para um contato na imprensa e confirmei que havia outros prisioneiros. Na manhã seguinte, vesti a camiseta impressa com a frase “Não ao 349” e fui para o Ministério da Cultura sozinha. Quando cheguei, um grupo de pessoas, vestidas em trajes civis, estava me esperando, e uma delas tinha um grande pano para cobrir a mensagem da minha camiseta. Duas mulheres me agarraram violentamente, e pedi que não houvesse violência, já que eu não estava resistindo. Mas me tiraram o celular, me revistaram como a um criminoso comum e me colocaram em um carro da polícia.

Sempre que sou detida, deixo de comer ou beber água. Da primeira vez, isso aconteceu espontaneamente: eu estava tão chateada com a injustiça que sofríamos que comer não passava por meu pensamento. Foi quando eu percebi que a injustiça tem uma manifestação física, não é apenas uma ideia, um conceito, mas algo a que todo o seu corpo responde. Sei que para muitos é difícil entender e que alguns até rejeitam (a greve de fome),mas, quando você não tem nenhum amparo da lei, é a única maneira de comunicar que suas ideias são mais importantes do que qualquer outra coisa em sua vida.

Em Cuba, você não tem direito a um advogado quando é preso. E, pior, quando você pede um, eles respondem com grande sarcasmo que “você vê muitos filmes americanos”. Também não permitem que você faça chamadas telefônicas. Essa é a parte mais angustiante, porque a gente sabe que é um momento difícil para a família, que ela sofre mais. Você está de fato disposto a fazer tudo por suas ideias, mas a família, mesmo que as apoie, não quer lhe perder.

Depois de um tempo trancada na viatura, quase sem ar, dois coronéis das Forças Armadas chegaram e, fazendo o papel de “policiais bons”, tentaram me convencer de que tudo ficaria bem. Foi um pouco irônica a primeira frase que eles disseram: “Você viu como nós mudamos?”.

É algo que os agentes do governo dizem agora, com a intenção de indicar que há uma democracia em Cuba. “Você pensa do seu jeito, e nós pensamos do nosso jeito”, continuaram, ao que eu respondi: “Mas estou neste carro com dois coronéis do Estado e não posso sair justamente por causa de meu modo de pensar. Seu argumento é um pouco ridículo dadas as circunstâncias”. Eu percebi que o mais ridículo é que eles e as pessoas do governo acreditam que basta mencionar a palavra “democracia” para que ela exista, ou melhor, para que todos pensem que existe uma democracia em Cuba.

Democracia não é uma palavra, é uma forma de agir e ser e inclui, por exemplo, o direito ao protesto pacífico. Tenho uma carreira artística de 25 anos, que o governo cubano sempre “esquece” de contar, ao me apresentar como uma artista “improvisada”, alguém que apareceu de repente. Mas não conseguem. Sigo fazendo minha arte e tento exigir dela o mesmo que exijo da política: que transgrida.

Há alguns anos, um movimento artístico independente vem crescendo e já é muito forte. Hoje, o maior número de filmes cubanos apresentados ao Festival de Cinema foi feito de forma independente. Espaços privados para a arte proliferam, e os artistas preferem expor lá do que em instituições oficiais. Há mais de uma companhia de dança e teatro que fazem seus trabalhos sem pedir espaço ou permissão do governo. Essa é a verdadeira razão pela qual o Decreto 349 foi criado, porque o Ministério da Cultura falhou em sua missão de controlar artistas.

A relação entre arte e governo está em constante diálogo desde o triunfo da Revolução Cubana. Nos anos 60, a arte manifestou a esperança de uma nova sociedade e, portanto, houve uma grande experimentação formal e de conteúdo que se moveu entre realidade e utopia, com grande fervor. Uma revolução é um ato de criatividade inebriante, onde quer que aconteça, e atrai quem a vive e quem a observa. Nos anos 70, a arte tornou-se uma arma da revolução, e a criação parecia servir de propaganda. A censura aberta começou a funcionar contra qualquer arte que não servia aos propósitos do governo. Nos anos 80, surgiu um novo grupo de artistas, com autoconfiança. A perestroika chegou e os influenciou, e a constante censura fez com que deixassem o país em massa. Foi o maior êxodo de artistas de todas as manifestações em Cuba em tão pouco tempo. Nos anos 90, jovens artistas já conheciam o preço da rebelião, e, simultaneamente, o governo introduziu o mercado de arte como analgésico. Então a censura foi substituída pela autocensura: tudo parecia correr bem porque quem protestava ou fazia arte crítica era uma minoria fácil de ridicularizar, considerada pobre, nostálgica, tola. Nos anos 2000, artistas se dedicaram a produzir mais fora do país do que dentro, como numa autocensura para não perder privilégios. Agora, os mais jovens, conhecendo a história da luta por seus direitos, sabem que é o Decreto 349 que vai defini-los.

Desde a morte de Fidel, a única transformação de fato em Cuba é que o governo se apropriou das palavras “mudança” e “democracia”. É o governo quem define o que esses conceitos significam. É uma grande ironia que nós, que trabalhamos por mudanças, acreditamos na democracia e que durante anos fomos proibidos de falar sobre essas questões, continuemos não tendo o direito de tratar disso, porque se tornou um território que os que estão no poder usam para construir sua imagem pública e internacional.

Às vezes eu me sinto cansada. São 25 anos de carreira e de ativismo. Sinto que, desde que Trump assumiu o poder nos Estados Unidos, tenho um cansaço crônico, porque não só vejo as desumanidades que ele comete, mas vejo que sua doutrina de medo, polarização e autoritarismo está se espalhando pelo mundo. Rapidamente, perigosamente. Hoje, quantos presidentes autoritários existem no mundo? Erdogan, Duterte... Quantos são ligados aos que apoiaram ditaduras anteriores? Bolsonaro, Macri... O mundo está nauseabundo com tanto ódio e irracionalidade. Aqueles que governam baseados no medo fazem isso se valendo de ideias retrógradas. São tempos de definições, sem nuances. A realidade e as leis estão radicais. Nós, artistas, precisamos ser radicais.

Pensamento do Dia


'Tecnologia permite destruir Amazônia mais rápido do que fizemos com a Mata Atlântica'

Em 2005, então recém-formado na faculdade de Biologia da USP, o botânico Ricardo Cardim teve a ideia de percorrer áreas desflorestadas da Mata Atlântica atrás de árvores gigantes que haviam sobrevivido isoladas no meio de plantações e pastagens.

A pesquisa ganhou corpo ao longo dos últimos 13 anos e se transformou numa das maiores investigações sobre a história da destruição de uma das regiões mais biodiversas do planeta.

Em "Remanescentes da Mata Atlântica: As Grandes Árvores da Floresta Original e Seus Vestígios" (ed. Olhares), livro lançado em novembro, Cardim documenta a vertiginosa expansão econômica sobre o bioma, que, em pouco mais de um século, o fez perder 90% de sua vegetação original e dividiu as áreas sobreviventes em 245 mil fragmentos.

Ao lado do fotógrafo Cássio Vasconcellos e do botânico Luciano Zandoná, Cardim também elaborou um inventário de tesouros que resistiram às derrubadas - entre os quais exemplares centenários de figueiras, perobas e paus-brasil, retratados em expedições por seis Estados das regiões Sul, Sudeste e Nordeste.

A árvore mais alta identificada, numa antiga fazenda de cacau em Camacã (BA), foi um jequitibá com 58 metros de altura e tronco com 13,6 metros de circunferência - dimensões extraordinárias, mas aquém das árvores gigantes do bioma no passado, como um jequitibá na região de Campinas (SP) cujo caule alcançava 19,5 metros de circunferência no início do século 20.

Em entrevista à BBC News Brasil, Cardim diz que as condições que permitiram o desenvolvimento das árvores gigantes da Mata Atlântica não existem mais. Compartimentadas e cercadas por lavouras, muitas áreas de floresta sobreviventes se despovoaram de animais - essenciais para a renovação das plantas - e sofrem com a invasão de espécies exóticas e alterações climáticas.

Ele diz acreditar, porém, que as próximas gerações conseguirão reconectar os fragmentos da floresta e trazer os bichos de volta, garantindo a sobrevivência do bioma, ainda que sem a mesma riqueza original.

Cardim não nutre o mesmo otimismo em relação à Amazônia - que, segundo ele, vive hoje, passo a passo, o mesmo roteiro da destruição da Mata Atlântica. Segundo o botânico, enquanto o desflorestamento da Mata Atlântica parece ter sido contido, a Amazônia sofre com a ação "de um arco de aventureiros que são incontroláveis" e fragmentarão o bioma antes que a sociedade se conscientize sobre sua importância. "Hoje a tecnologia permite que a gente faça a destruição da Amazônia com a mesma velocidade, ou até mais rápido, do que fizemos na Mata Atlântica. Com nossas estradas, caminhões, motosseras, o ganho de escala é absurdo".

BBC News Brasil - O livro mostra que, ao contrário do que muitos pensam, a destruição da Mata Atlântica foi um processo bem recente. Como o bioma foi aniquilado tão rapidamente?

Ricardo Cardim - Até 1890, o que estava mexido no Brasil era um pedacinho de Pernambuco, por causa do ciclo do açúcar no século 17, e do Rio de Janeiro, por causa das fazendas de café. O resto era mata fechada, com índios dentro.

Parece incrível, mas a destruição da Mata Atlântica se deu mesmo no século 20. A grande cobiça era pelos húmus que fertilizaram o solo da Mata Atlântica ao longo de milênios. A madeira era muito mais um empecilho do que um benefício. Só no final do processo, quando já tínhamos muito caminhão e transporte facilitado pelas ferrovias, que a madeira começou a ser aproveitada. Mesmo assim, o índice de aproveitamento da madeira foi de cerca de 3% de tudo o que foi derrubado.

A ordem era "limpa logo para a gente começar a colher o ouro verde", que era o café. Fizemos como aquele cara que herda uma fortuna e na mesma noite vai gastar tudo em farra, e acorda pobre. Demoramos milhares de anos para formar aquele solo, criar aquelas condições perfeitas, e em cinco ou dez anos, aquilo não existia mais. Os solos que a gente cultiva hoje só são cultiváveis por causa da tecnologia, porque já foram exauridos.

BBC News Brasil - Você destaca no livro a destruição das matas de araucárias, na porção sul da Mata Atlântica. O que houve de peculiar nesse processo?

 A velocidade com que ocorreu. Essa é uma floresta que passa do século 19 ao 20 praticamente intacta. Brincava-se que era possível atravessar os Estados do Paraná e de Santa Catarina nos galhos das araucárias, de tão grudadinhas que elas estavam.

Até a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), o Brasil importava madeira - o que era surreal para um país que estava destruindo florestas adoidado para plantar café. Mas, quando a Primeira Guerra impede esse comércio, o mercado começa a lembrar a araucária - um pinheiro maravilhoso, muito fácil de cortar. Começa um saque da floresta voltado para a madeira como se nunca viu.

A araucária vira uma grande divisa. Todo mundo que quer ficar rico vai para a floresta de araucária montar sua serrraria. Isso chega no auge nos anos 1950 e 1960. Cortavam tanta madeira que boa parte dela apodrecia antes de ser escoada para o mercado. Nos anos 1970, a floresta acabou. Houve uma quebradeira geral nas serrarias. Famílias que eram riquíssimas ficaram pobres.

A araucária simplesmente acabou. O que temos hoje são araucárias rebrotando, pequenas. O que sobrou hoje é uma sombra.

BBC News Brasil - O quão virgem era a Mata Atlântica antes de 1500?

(O antropólogo) Darcy Ribeiro falava que havia entre 4 e 6 milhões de índios vivendo aqui no território. Acho possível, mas não acho que o impacto deles na floresta foi tão grande quanto o historiador americano Warren Dean falou em "A ferro e fogo: a história da devastação da Mata Atlântica brasileira" (1996). Ele diz que não existia floresta intocada, porque os índios já tinham cortado aquilo pelo menos uma vez em um milênio.

Eu acredito que os índios tinham capacidade de alterar o meio, mas com ferramentas muito primitivas - machados de pedra, fogo -, e também tinham populações muito pulverizadas. As coivaras que eles faziam para queimar e plantar roças não eram suficientes para gerar uma extensa derrubada. Acho que os índios deixavam as árvores grandes no meio da coivara e plantavam embaixo delas. E não acho que tenham conseguido trabalhar todo o território a ponto de alterá-lo.

A jaula que lhe cabe


Todos vivemos em uma espécie de jaula. Pode ser de ouro e bonita, mas é a jaula que cabe a cada um
Haruki Murakami

Almas e demônios

Entenda-se a metáfora com espírito aberto e generosidade: governos costumam ter alma. Os melhores caracterizam-se por ter uma consistente, que lhes dá força, coesão e audácia nos campos político e administrativo. Os piores, ao contrário, vivem sem eixo.

Como não são integrados por anjos, mas por homens, mulheres e partidos, com suas paixões, suas idiossincrasias e seus apetites, governos sempre tendem a se dividir em pedaços, pequenas almas que competem entre si pelas luzes da ribalta, pelos aplausos do público, pelos mimos do chefe. Somente uma alma que se destaque e se imponha – uma anima magister – consegue domar os demônios que brotam do cotidiano governamental. Tem sido assim em todos os governos, dentro e fora do Brasil.

O Estado e, sobretudo, a sociedade sofrem quando são governados por governos desprovidos de alma: sem um programa, um núcleo coordenador, um partido ou uma liderança inconteste, qualificada para fazer que prevaleça uma direção. Por não saberem que rumo tomar, governos sem alma agem por impulso, por espasmos, ao sabor dos interesses parciais que nele preponderam e nem sempre coabitam. Deixam assim de poder cumprir a missão que deles se exige. No limite, vivem em turbulência, aos solavancos, espalhando crises por todos os lados. Natural que, nessa situação, tudo o que acontece de problemático em seu interior reverbere no exterior, desgastando-lhes ainda mais a imagem.

Passados 26 dias de sua posse, o governo Bolsonaro não mostrou ter uma alma. Falta-lhe quase tudo: programa, projeto de País, discurso, comunicação, temperança, conhecimento do terreno, prudência, capacidade de articulação, quadros técnicos e políticos competentes. Exceção feita às áreas da Economia, da Justiça e de Infraestrutura, o restante é um amontoado de figuras menores, com mentalidade provinciana, que falam pelos cotovelos, mas dizem pouco, como se tivessem, repentinamente, caído do céu para realizar uma tarefa que desconhecem e para a qual não foram treinadas. A improvisação dá o tom.

Os ataques ao “globalismo” feitos em nome de uma “Pátria soberana” que abaixa a cabeça para os poderosos do mundo são acompanhados de um esforço contumaz para desmontar os pilares institucionais, éticos e políticos da política externa brasileira. Desprezam as perspectivas que trabalham pela construção de um sistema internacional mais cooperativo e sustentável, livre de muros e barreiras ideológicas. O presidente disse em Davos que praticará uma política econômica de abertura e acima de ideologias, ao passo que seu ministro do Exterior se derrama em pregações ideológicas e fala em fechar o País aos “globalistas”. É uma dentre várias dissonâncias.

Entoar a cantilena autoritária da “caça aos marxistas” nas escolas só serve para ocultar a falta de um plano de ação que se dedique a recuperar o sistema escolar. A política educacional desponta com um vezo moralista e conservador que ignora as graves deficiências que minam a educação brasileira. Há, também, falas ministeriais despropositadas, sem pés nem cabeça, feitas como se estivessem referidas a outro tempo histórico e a um País datado.

Estão a ser rasgados importantes mapas de navegação, que poderiam dar ao governo alguma direção. Desprezam-se tradições consolidadas, práticas administrativas bem-sucedidas e atitudes políticas que contribuíram de forma decisiva para erguer o Brasil moderno que conhecemos e, no momento inaugural de um novo governo, serviriam de base operacional e fator de equilíbrio. Submete-se assim a máquina governamental a um estresse perigoso, fazendo-a funcionar com uma bomba-relógio amarrada ao corpo, a marcar o estouro da próxima crise.

A população torce para que o novo governo acerte. É a maior interessada em que isso se concretize e sabe que é preciso dar tempo ao tempo, não atropelar as coisas, não pedir o impossível. Mas o governo não se ajuda. Como será quando o jogo começar para valer, daqui a poucos dias, com o novo Congresso devidamente empossado e funcionando a todo vapor? A articulação política e o desempenho técnico que não existiram no primeiro mês serão ainda mais indispensáveis e o governo precisará encontrar, em seu interior, uma dinâmica que o auxilie a modelar sua alma e a domar seus demônios.

Não é por acaso que setores do governo, incentivados, ao que parece, pelos generais e pelo vice-presidente Mourão, começam a se mexer para blindar o presidente das estripulias de seus filhos e dos efeitos do caso Flávio Bolsonaro e para reforçar a agenda positiva na Economia e na Justiça, as únicas áreas que demonstram ter, até agora, capacidades executivas. Procuram assim emprestar uma alma ao governo, no mínimo para lhe fornecer um mínimo de capital político para lidar com o Congresso e a opinião pública.

A extrema direita que sustenta o governo parece por ora imune aos conflitos e tensões que espocam no seu interior. Demonstra tanta autoconfiança que se dá ao luxo de descuidar do fundamental. Continua em campanha, quando precisa governar. O excesso de confiança, nesse caso, produz arrogância e exagero nas relações com o poder, rei de todos os demônios.

O governo ainda tem tempo, pode aproveitar a lua de mel dos primeiros meses. Mas o bloco que o sustenta parece ter uma solidez mais aparente que real. Beneficia-se, em boa medida, da inoperância oposicionista, ainda sofrendo as dores da derrota do centro-esquerda em outubro, que desbaratou e desorientou seus grupos e partidos. É um quadro que não se prolongará no tempo. No momento em que a vida política recuperar o fôlego e os democratas liberais e progressistas voltarem a se movimentar com desenvoltura, será, então, a hora de ver quanto o governo avançou ao encontro de si próprio, modelando uma alma que o guie e oriente, ou se permanecerá atormentado pelos demônios de que não consegue se livrar.

Procure lembrar

“Tente esquecer em que ano estamos.”
De vez em quando, ouço Luiz Melodia, que sempre me apoiou nas campanhas claramente perdidas, antes mesmo do começo. O verso foi escrito num contexto amoroso, no qual os amantes se esquecem do mundo. Infelizmente, não posso seguir o amigo, nesse verso de “Pérola negra”.

Minha tarefa é exatamente procurar lembrar em que ano estamos. Não é fácil. Para quem viveu longamente, muitos anos disputam o lugar de modelo, referência para compreender o que se passa. Pouco servem diante da singularidade de 2019.

A chegada de um novo grupo ao poder trouxe consequências imprevistas. 


O novo chanceler Ernesto Araújo escrever que o aquecimento global é uma invenção do marxismo global.

Não conheci Osvaldo Aranha, embora tenha visitado seu túmulo no Sul. 

Entrevistei, ainda jovem, Augusto Frederico Schmidt, leio constantemente sobre a trajetória de Afonso Arinos, San Tiago Dantas. E há ainda os grandes diplomatas de carreira. Nenhum desses homens, creio, seria capaz de se antepor tão ousadamente às evidências científicas colhidas pela humanidade.

Araújo é um intelectual. Fiquei até agradecido por aconselhar a leitura de Clarice Lispector. Não sei bem o que ela estava fazendo no seu discurso. 

Mas é sinal de bom gosto. A própria Clarice ficaria perplexa como se estivesse diante de um búfalo ou de uma galinha.

Realmente, tenho de me esforçar muito para entender a política ambiental de Bolsonaro. Antes de partir para Davos, aprovou para o Serviço de Florestas um homem que quer liberar a caça de animais silvestres no Brasil.

Esforço-me por entender o universo ético da família do presidente. Flávio Bolsonaro apegou-se ao foro privilegiado para enfrentar denúncias de movimentação financeira atípica. Em seguida, soube-se que ele empregou em seu gabinete a mulher e a mãe de um matador ligado às milícias.

Sua posição sobre as milícias admite que são vantajosas porque expulsam os bandidos. Isso só pode ser entendido na linha do tempo.

A defesa das milícias nos dias de hoje não pode ignorar que controlam o gás, parte do comercio imobiliário, do transporte coletivo e até do tráfico de drogas. E matam muito.

O tempo torna mais aceitável a posição de Flávio. O desconcertante é que a mulher e a mãe do bandido trabalharam até 2018 no seu gabinete. E isso num período em que ele já estava na cadeia.

Minha perplexidade aumentou com o decreto de Mourão autorizando funcionários de segundo escalão a classificar os documentos como secretos. O projeto deles, com apoio da maioria, era o de combater a corrupção. O decreto enfraquece precisamente a melhor arma contra esse crime: a transparência.

Qualquer movimento de volta à opacidade serve apenas para levantar suspeitas de concentração de poder. Ou de riqueza. A história recente no Brasil deixou nas mãos da sociedade escaldada pelo menos um instrumento de defesa, que é a transparência.

O fato de haver muitos militares no governo para mim não tem conotação negativa. Considero-os uma força moderadora. Mas qualquer recuo na transparência fica parecendo um enfoque militarizado do governo.

Mourão afirmou que o decreto já estava pronto no governo Temer. 

Levamos anos discutindo essa lei de acesso. Se o decreto tinha mesmo uma justificava racional, por que não discuti-lo?

Estou muito velho para ficar desapontado, reclamando de governos. Mas nem tanto para iniciar um leve combate agora que estou com a carteira praticamente vencida.

Por que conciliar com a ignorância humana que pode arruinar nossos recursos naturais? Por que aceitar um recuo na lei da transparência que ajudei a construir na Câmara?

Espero que os eleitores de Bolsonaro não fiquem muito zangados. Nada contra eles. O que penso sobre milícias, transparência e aquecimento global não depende tanto de eleições. A ideia não é conhecer a verdade e se libertar através dela? A minha é essa: milicianos são criminosos, o planeta está se aquecendo, e não há nada mais suspeito do que golpear a transparência.