Meu trabalho artístico sempre foi um ato de rebeldia contra o que me parecia injusto e uma maneira de conectar passado e presente. Em 2009, criei uma instalação na Bienal de Havana em que deixava um microfone aberto para que qualquer pessoa pudesse exercitar ali seu direito de liberdade de expressão. O governo cubano fechou minha instalação, e foi quando me dei conta do poder ativista que a arte poderia ter.
Foi também quando comecei a ser perseguida pelo governo sistematicamente. A primeira prisão ocorreu em 2014. Fazíamos uma manifestação pública, e fui detida e solta três vezes. Depois, fui presa novamente em 2015. Agora, em dezembro do ano passado, foram quatro prisões em quatro dias. Era presa de manhã e solta à noite. Esta é a tática do governo cubano: fazer detenções de curto prazo, para que não possam ser registradas como prisões, de acordo com a lei. E então o governo pode dizer nas Nações Unidas e em outros organismos internacionais que não houve prisões em Cuba por motivos políticos. Não importa se você ficou dez dias entrando e saindo da cadeia. Não importa se sua família não sabe onde você está ou que a delegacia negue que você está detida quando lhe procuram.
Foi assim que me prenderam quatro vezes em quatro dias no mês passado. Na primeira detenção, eles me pegaram na esquina de casa. Um grupo de artistas havia decidido ir para a porta do Ministério da Cultura protestar contra o Decreto 349, uma regulamentação do governo cubano que prevê, em resumo, que as obras de arte sejam aprovadas pelo Ministério da Cultura antes de ser expostas ou antes de entrar em circulação. Nós todos sabemos que o que é autorizado em Cuba passa pelo filtro político, e as autorizações são dadas aos que estão alinhados com as políticas oficiais. Há uma longa história de censura de artistas em Cuba, e o Decreto 349 legaliza isso. Pois resolvemos nos manifestar contra isso, mas, naquele primeiro dia de protestos, eu decidi que não iria até o Ministério da Cultura. Queria que o ato desse visibilidade para aqueles que estavam na campanha antes de mim. Mas fui pega já na esquina de casa, e não adiantou dizer que não iria ao protesto. Eles me colocaram dentro de um carro e me detiveram até tarde da noite.
Quando me soltaram, perguntei se havia outros na prisão. Não me responderam, porque sabem que, para mim, uma ativista, é inaceitável saber que há outro ativista preso. Naquela mesma noite, já em casa, liguei para um contato na imprensa e confirmei que havia outros prisioneiros. Na manhã seguinte, vesti a camiseta impressa com a frase “Não ao 349” e fui para o Ministério da Cultura sozinha. Quando cheguei, um grupo de pessoas, vestidas em trajes civis, estava me esperando, e uma delas tinha um grande pano para cobrir a mensagem da minha camiseta. Duas mulheres me agarraram violentamente, e pedi que não houvesse violência, já que eu não estava resistindo. Mas me tiraram o celular, me revistaram como a um criminoso comum e me colocaram em um carro da polícia.
Sempre que sou detida, deixo de comer ou beber água. Da primeira vez, isso aconteceu espontaneamente: eu estava tão chateada com a injustiça que sofríamos que comer não passava por meu pensamento. Foi quando eu percebi que a injustiça tem uma manifestação física, não é apenas uma ideia, um conceito, mas algo a que todo o seu corpo responde. Sei que para muitos é difícil entender e que alguns até rejeitam (a greve de fome),mas, quando você não tem nenhum amparo da lei, é a única maneira de comunicar que suas ideias são mais importantes do que qualquer outra coisa em sua vida.
Em Cuba, você não tem direito a um advogado quando é preso. E, pior, quando você pede um, eles respondem com grande sarcasmo que “você vê muitos filmes americanos”. Também não permitem que você faça chamadas telefônicas. Essa é a parte mais angustiante, porque a gente sabe que é um momento difícil para a família, que ela sofre mais. Você está de fato disposto a fazer tudo por suas ideias, mas a família, mesmo que as apoie, não quer lhe perder.
Depois de um tempo trancada na viatura, quase sem ar, dois coronéis das Forças Armadas chegaram e, fazendo o papel de “policiais bons”, tentaram me convencer de que tudo ficaria bem. Foi um pouco irônica a primeira frase que eles disseram: “Você viu como nós mudamos?”.
É algo que os agentes do governo dizem agora, com a intenção de indicar que há uma democracia em Cuba. “Você pensa do seu jeito, e nós pensamos do nosso jeito”, continuaram, ao que eu respondi: “Mas estou neste carro com dois coronéis do Estado e não posso sair justamente por causa de meu modo de pensar. Seu argumento é um pouco ridículo dadas as circunstâncias”. Eu percebi que o mais ridículo é que eles e as pessoas do governo acreditam que basta mencionar a palavra “democracia” para que ela exista, ou melhor, para que todos pensem que existe uma democracia em Cuba.
Democracia não é uma palavra, é uma forma de agir e ser e inclui, por exemplo, o direito ao protesto pacífico. Tenho uma carreira artística de 25 anos, que o governo cubano sempre “esquece” de contar, ao me apresentar como uma artista “improvisada”, alguém que apareceu de repente. Mas não conseguem. Sigo fazendo minha arte e tento exigir dela o mesmo que exijo da política: que transgrida.
Há alguns anos, um movimento artístico independente vem crescendo e já é muito forte. Hoje, o maior número de filmes cubanos apresentados ao Festival de Cinema foi feito de forma independente. Espaços privados para a arte proliferam, e os artistas preferem expor lá do que em instituições oficiais. Há mais de uma companhia de dança e teatro que fazem seus trabalhos sem pedir espaço ou permissão do governo. Essa é a verdadeira razão pela qual o Decreto 349 foi criado, porque o Ministério da Cultura falhou em sua missão de controlar artistas.
A relação entre arte e governo está em constante diálogo desde o triunfo da Revolução Cubana. Nos anos 60, a arte manifestou a esperança de uma nova sociedade e, portanto, houve uma grande experimentação formal e de conteúdo que se moveu entre realidade e utopia, com grande fervor. Uma revolução é um ato de criatividade inebriante, onde quer que aconteça, e atrai quem a vive e quem a observa. Nos anos 70, a arte tornou-se uma arma da revolução, e a criação parecia servir de propaganda. A censura aberta começou a funcionar contra qualquer arte que não servia aos propósitos do governo. Nos anos 80, surgiu um novo grupo de artistas, com autoconfiança. A perestroika chegou e os influenciou, e a constante censura fez com que deixassem o país em massa. Foi o maior êxodo de artistas de todas as manifestações em Cuba em tão pouco tempo. Nos anos 90, jovens artistas já conheciam o preço da rebelião, e, simultaneamente, o governo introduziu o mercado de arte como analgésico. Então a censura foi substituída pela autocensura: tudo parecia correr bem porque quem protestava ou fazia arte crítica era uma minoria fácil de ridicularizar, considerada pobre, nostálgica, tola. Nos anos 2000, artistas se dedicaram a produzir mais fora do país do que dentro, como numa autocensura para não perder privilégios. Agora, os mais jovens, conhecendo a história da luta por seus direitos, sabem que é o Decreto 349 que vai defini-los.
Desde a morte de Fidel, a única transformação de fato em Cuba é que o governo se apropriou das palavras “mudança” e “democracia”. É o governo quem define o que esses conceitos significam. É uma grande ironia que nós, que trabalhamos por mudanças, acreditamos na democracia e que durante anos fomos proibidos de falar sobre essas questões, continuemos não tendo o direito de tratar disso, porque se tornou um território que os que estão no poder usam para construir sua imagem pública e internacional.
Às vezes eu me sinto cansada. São 25 anos de carreira e de ativismo. Sinto que, desde que Trump assumiu o poder nos Estados Unidos, tenho um cansaço crônico, porque não só vejo as desumanidades que ele comete, mas vejo que sua doutrina de medo, polarização e autoritarismo está se espalhando pelo mundo. Rapidamente, perigosamente. Hoje, quantos presidentes autoritários existem no mundo? Erdogan, Duterte... Quantos são ligados aos que apoiaram ditaduras anteriores? Bolsonaro, Macri... O mundo está nauseabundo com tanto ódio e irracionalidade. Aqueles que governam baseados no medo fazem isso se valendo de ideias retrógradas. São tempos de definições, sem nuances. A realidade e as leis estão radicais. Nós, artistas, precisamos ser radicais.
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